sábado, 27 de junho de 2009

Puto interesseiro

Na rua,na estrada, no meio das vendedoras de mangas e de fritos, ladeados pelas boutiques de alfaitates e de quinquilharia chinesa, há dois miúdos que flirtam connosco. Um deles tem uma cara amorosa, deliciosa, de spot televisivo. Devia fazer publicidade aos danoninhos.

- Como é teu nome? – pergunta-lhe o André, seduzido, para meter conversa.

- Situ.

- Quantos anos tens?

- Seti.

- Tás feliz?

- Compra bulacha.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Bissau. 2ª declinação

Homem em Bissau Fotografia de Francesca Fedi


I.

Um elemento unânime de todos os lugares por onde passámos até agora foi essa falta de controlo sobre os dias, que, de rédeas soltas, galopavam para longe de nós próprios. De Ouarsasate a Banjul, de Laayoune a Palmarin, o tempo foi sempre um fluxo de vida que nos foi extraído, manipulado por terceiros a seu bel-prazer. Um sim a um convite para um passeio termina cinco horas depois na enésima dose de chá verde na casa de um camponês desdentado, uma conversa iniciada ao pequeno-almoço ainda não foi rematada com um aperto de mão ao jantar. E depois essa solicitação constante de tudo e de todos, e nós, orgulhosos e exaustos ao mesmo tempo, feitos centros de mesa de nações inteiras.

E, inesperadamente, chegamos à Guiné e estranham-se as ruas embaciadas, estranham-se as pessoas apartadas de nós por uma força centrípeta a que nos tínhamos desabituado. Não se percebe o que se passa. Não se percebe logo, pelo menos. Lentamente, damos por nós a recuperar hábitos antigos: repescar a agenda diária, consagrar períodos matinais e nocturnos, pré-adormecimento, a reflexões de delineação temporal, de construção de itinerários. Impera de novo decidir o que fazer. De repente, também há tempo para ler, para pensar, para escrever (e há muito menos para escrever porque há demasiado tempo para o fazer). Vamos decifrando o fenómeno: é que já não nos chamam para jantar, para ir dormir a casa deles, para irmos submeter a alma à análise de um curandeiro, para passear, para ir dar uma prenda monetária a uma tia que acabou de dar à luz, para ir ver uma circuncisão comunitária de iniciação dos rapazes de uma aldeia no Sábado seguinte. E pensar nesses 5.000km anteriores que me tinham deixado a impressão de uma lei geral africana do magnetismo humano…

Eternamente insatisfeito, dou por mim a sentir saudades da tagarelice marroquina, desses mauritanos fala-barato, dos melgas gambianos, da asfixia social senegalesa.

Não julgo que fale ao acaso, que esteja a fantasiar uma psique comunitária, mesmo tendo tão pouco tempo de Guiné-Bissau, quando digo que esta é uma África hiper-paquidérmica. É certo, as outras também o são, e estou a mentir se não admitir que julguei ter encontrado nas esteiras que cobrem os alpendres das casas e a sombras das árvores de toda costa ocidental africana, de Rabat a Banjul, sucessivos arquétipos do ócio, habitados por legiões de preguiçosos, inúteis, mandriões, indolentes. Mas a Guiné surpreendeu-me. À modorra junta indiferença, compenetração individual.

Num certo sentido psicológico, a Guiné é uma África mais europeia, tímida, retraída, ou, se quisermos, precisamente mais portuguesa, discreta, ou talvez, como elegantemente taxaria o José Gil, com medo de existir. Investigam-nos primeiro, olham-nos de longe, e às vezes não nos chegam mesmo a dizer nada. Um branco pode sentar-se uma tarde inteira no degrau de uma boutique no cruzamento principal de uma vila ou aldeia sem que ninguém venha falar com ele: cenário inconcebível no Senegal, na Gâmbia, na Mauritânia.

Calcorreiam-se as ruas mas a gente é esquiva, escorrega-nos das mãos, responde-nos com monossílabos, parece preferir gozar a sua apatia individualmente. Hedonistas da letargia, é o que eles são. Estão sentados pela terra e pelos degraus com os seus saquinhos de sumo de “cabaceira” (baobá), “bissap” e “veludo” enfiados na boca, estão a chupá-los, embalados pelo vai e vem dos próprios maxilares e bochechas, a fitarem o vazio e as cabras que estão por todo o lado, e não nos ligam nenhuma. Sinto-me sozinho. Afinal de contas, os outros países tinham-me criado a ilusão de que esse simples movimento – caminhar – era suficiente para fazer amigos. Sinto-me sozinho, mas sinto-me em casa.

- Parece Lisboa. – diz uma espanhola que conhece ambos os aglomerados de torpor melancólico.

É isso mesmo. Sem dúvida alguma, andou por aqui muito tempo gente que eu conheço muito bem. E agora estão todos contaminados, infectados, prostrados desse mal.


II.

O país não tem empresas próprias, o mercado do Bandim em Bissau – o principal mercado do país – foi sendo crescentemente dominado por outros africanos, mais espevitados, minimamente maquiavélicos, com espírito de negócio (e como sobreviver em África sem este traço de personalidade?) e agora está absolutamente entregue a oriundos da Conacry, do Senegal, da Libéria, do Mali. A arte de regatear, aqui, quase desapareceu. As coisas custam o que custam, mesmo sem preços tabelados. Pela primeira vez em África, mesmo sendo branco, se me esqueço do troco numa boutique (guineense), o empregado vem atrás de mim para o devolver. Assim não dá.

Este país é inédito. Vive aqui muito boa gente. Mas não parece talhado para o desenvolvimento.

domingo, 21 de junho de 2009

Bissau. 1ª declinação

Para qualquer português, creio que a primeira impressão infligida por Bissau é geradora de uma profunda nostalgia. Mesmo para quem tenha nascido não só depois do fim do ultramar como para quem tenha crescido contemporaneamente à operação de lobotomia social que vai eficazmente extraindo as ex-colónias do dia-a-dia nacional. O facto é que é difícil chegar a Bissau pela primeira vez e sentir que nunca lá se tinha estado.

Mas não é a presença das barraquinhas de cerveja Sagres, dos sumos Compal, da papelaria Benfica, de uma zona chamada Alvalade ou o facto de se conseguir comprar um pastel de nata em plena costa ocidental africana que torna Bissau familiar. Não é sequer o facto de, esporadicamente, ouvirmos o português, ou aquilo que a princípio inevitavelmente parece uma distorção a roçar o grotesco e o criminoso do nosso vocabulário.

Ao novo explorador, Bissau estimula uma nostalgia muito mais difusa, desamparada e intensa que, precisamente por ser alicerçada em bases tão pantanosas, se ignora ser possível.

Quando chega, um português nascido nos anos 80 ainda não o sabe, não o suspeita, mas não tarda a compreender que Bissau tinha estado sempre presente na sua vida. São talvez – especulo – memórias partilhadas entre ex-combatentes numa mesa contígua de um café às quais prestámos atenção sem o sabermos, fotografias nos livros de História nas quais mergulhámos para escapar à voz monocórdica de um professor, postais velhos a preto e branco de um tio-avô que se aventurou pelos trópicos. É, muito, a arquitectura. Os edifícios na Bissau velha, que se propagam na margem Norte ao longo de um Tejo tropical, são meros cambiantes, variações de coisas que vi em Lisboa. As vivendas lembram Benfica, a zona das embaixadas o Restelo, a Igreja não teria destoado na Avenida de Roma. Do outro lado do rio, por vezes, fico à espera de entrever o Cristo Rei. Mas isto é ainda uma comparação superficial. Quase sempre, as semelhanças são muito mais viscerais, microscópicas e indetectáveis. Estão grudadas a coisas que não sabemos ou não conhecemos bem: estão nas formas dos degraus e das escadas, nos motivos geométricos que adornam os muros das casas, nos postes da electricidade (se calhar em pormenores tão absurdos inimagináveis como numa espécie distância padrão comum entre os candeeiros públicos), na disposição dos canteiros.

Frequentemente, nos sonhos, um amigo ou familiar visita-nos num outro corpo e com um rosto diferente do seu rosto habitual. Mas reconhecemo-lo. O Diabo também costuma transformar a sua aparência. Mas sabemos que é ele. Nestes casos, como em todos os outros em que as entidades se assemelham de forma alquímica, em que partilham a alma mas não a forma, não conseguimos explicar porquê, mas sabemos sempre reconhece-las. Bissau é assim: nunca a vimos mas conhecemo-la de algum lado.

Ou, para por as coisas de outra forma, a Lisboa que senti em Bissau foi uma das infinitas versões possíveis de Lisboa. E a nostalgia de que falo advém precisamente dessa sensação arrepiante de se estar de visita a um universo paralelo ou a uma encarnação.

Depois, claro, há o outro lado. Os sincretismos são sempre palcos de guerra. As roseiras dos canteiros convivem com trepadeiras cefalópodes, nas esquinas, umas pretas orgulhosas da sua gordura assam caju em vez de castanha, os pombos e os pardais deram lugar a corvos e abutres, a cor parece borbulhar das sarjetas, gorgolejar das fissuras das paredes, e tudo querer infectar: as roupas, as fachadas, as plantas.

Um terceiro lado está ligado a estes dois, faz parte da mesma declinação. É um lado igualmente místico. É que em Bissau há fantasmas. E ainda gemem, teimosos, as promessas de um projecto de sincretismo entretanto gorado. Não poderia ser de outra maneira.

No primeiro andar da pensão colonial, agora fechada, um homem de fraque ainda toca um bolero no piano de cauda. Lá dentro ainda dança um casal: um branco com brilhantina no cabelo e uma negra de vestido leve e florido. Ainda há um preto aprumado e cheiroso a servir mojitos ao balcão. Nas estradas esburacadas da cidade ainda circulam automóveis antigos. No Palácio da República, cravado de balas e escavacado por granadas, ainda se discute a exportação do amendoim. Bissau ainda é essa declinação de Lisboa dos anos 50, capital do Império, que eu nunca vi, mas da qual, não se sabe como, julgo lembrar-me muito bem.



Um aparte:

Escrever sobre a Guiné-Bissau é-me muito difícil. A culpa é do meu país, que nunca me disse categoricamente que este lugar existia. Talvez por isso essa nostalgia debilmente cimentada em murmúrios, segredos e imagens embaciadas.

O que é feito da imagem?

Para quem se perguntou o que é feito das fotografias, fica a informação de que a máquina se avariou. Não foi descuido, não foi má qualidade do produto. Como ouvi aqui alguém dizer, África precisa de todo um novo conceito de tecnologia. Ao pó, aos buracos, à energia dos corpos, vão resistindo os Mercedes e as velhinhas cassetes de música. Tudo o que veio depois disto já se estragou ou está em vias de se estragar.