domingo, 31 de maio de 2009

Geografia

Um dos mais belos e recorrentes momentos do branco em África é a inevitável lição improvisada de geografia. Basta perguntarmos os projectos de vida a um jovem africano para garantirmos uma boa possibilidade de sermos convertidos em cartógrafos. Numa das recorrências da lição, no Sul senegalês, terminava um almoço num restaurante de liberianos: um cubo feito de ripas de cana entrelaçada com um tecto de leques de folhas de palmeira que pareciam papel de parede, dentro do qual se chupam as cabeças dos peixes em cima de uma enorme porta de madeira estendida sobre dois jerricans de água. Alguém me berra, como que subitamente espantado de me ver ali, violando o silêncio salivante dos maxilares:

- Mas então tu…? Estás aqui e porque é que não nos explicas como fazemos para ir para o teu país, se sabes que queremos ir para lá?

Aturdido, olho para o preto espadaúdo e indignado. Demoro a responder:

- Mas o senhor nem sabe de que país é que venho.

- Vem da França.

- Por acaso não, venho de Portugal.

- Mas eu também quero ir para lá. Ah! Ah! – retorque, e os restantes clientes riem-se também. – E quero ir para a América!

- Mas então quer ir para todo o lado? Tem que se decidir.

- Eu quero é sair daqui! – e a gente volta a rir-se, mas ele adopta repentinamente uma postura séria, e pergunta – Mas diga-me lá: como faço para ir para a América? Tenho que passar pela França?

Talvez devido à entoação da voz, que pede resposta concreta, há quem pouse colheres e peixes nos pratos de plástico para ouvir o que tenho a dizer. Começo por uma revelação escandalosa: digo que os Estados Unidos estão praticamente à mesma distância de Portugal que do Senegal. Mas a minha precipitação em largar esta novidade bombástica gera um gargalhar geral que me estremece as têmporas e as paredes de folhas do restaurante e me impede de concluir que é devido a ela que não é necessário passar pela França, que fica a Leste. O problema é que a gente ri disparatadamente. Agarram-se uns aos outros, guincham, e cochicham sobre o que eu disse em línguas que me são estranhas como se eu tivesse pronunciado as palavras mais incríveis.

Olho em volta, para aquela balbúrdia, dou por mim a rir sozinho, como um louco, e parece-me subitamente impossível não achar graça à barbaridade que eu próprio disse. Quando as coisas acalmam, esforço-me por recuperar a sanidade mental e desenho um mapa no chão do restaurante, para ver se torno as minhas palavras credíveis. Homens, mulheres, crianças, há um magote de gente que se aproxima e se acotovela sobre as minhas linhas de areia.

- Está a ver senhor: o Senegal é aqui. Por cima fica a Mauritânia, depois o Sara, Marrocos, Espanha e Portugal. O Atlântico está para este lado, pelo que os Estados Unidos são do outro lado. Para ir até lá…

Mas o tipo interrompe-me:

- E os Estados Unidos são mais longe de Portugal do que Portugal da França?

- Sim, muito mais.

- Quanto mais?

- Não sei. Umas cinco vezes.

- Cinco?! – exclama-se por todo o lado. Ribombam novas explosões de risos histéricos por todo o restaurante. Percebo que, noutras línguas, comunicam o que eu disse aos que não me compreenderam. Percebo-os a gritar uns aos outros: “cinco vezes!“, “cinco vezes!”. Por fim, quando os ânimos serenam, volto ao planisfério e ponho-me a exemplificar o que disse. Há cada vez mais gente debruçada sobre mim.

- Mas tu… – diz um rapaz num tom que é quase de protesto, meneando a cabeça, arrastando a voz ao mesmo compasso que escancara as pálpebras. – Tu podes ir a todo lado. Sabes as estradas todas.

Olho, sem saber o que dizer, para o meu mapa tosco: a silhueta deselegante de África, a Europa circuncidada da bota italiana, o Mediterrâneo encolhido e uma América do Norte desproporcionada.

- Não. Eu não sei ir a todo o lado. – e tento explicar que conheço as distâncias por alto e alguns países também, mas que não conheço as estradas dentro deles, nem as aldeias ou as cidades, que sei apenas direcções gerais, e que é apenas isso.

- Não, não, não. – discordam todos, e há um homem, dos seus quarenta anos que me tenta persuadir – Se eu soubesse assim os lugares como tu sabes, sabia sempre onde estava. Nunca me poderia perder. Podia ir onde quisesse.

Não os posso convencer. Este último insiste:

- Tu – e arrasta também ele o “tu”, que adquiriu um “T” tão monstruoso que eu nunca me senti tão importante na minha vida – Tu és um grande professor. Sabes muitas coisas.

- Já foste à América? – pergunta um terceiro.

- Não.

Noto algum desapontamento no mar de caras pretas que me fixa.

- Então és europeu e não foste à América?

- Não estás a prestar atenção. – respondo a este, que me está a tentar pôr em xeque – Então olha lá para o mapa. Vê lá as distâncias. Então não acabei de dizer que estamos à mesma distância? Para mim a América é tão longe como para ti. – respondo. E venço. A lógica da minha tirada é aprovada, e desata-se tudo a rir e a galhofar. Os homens protestam com ele, chamam-lhe burro, espetam-me safanões amigáveis nas costas e apertam-me a mão. Há quem fale consigo próprio e se abandone a uma ruminação meio extasiada da minha reafirmação de divórcio entre Europa e States.

- E de Portugal a Paris, pode-se ir de metro? – pergunta-me a custo um velho, no qual já há muito tinha visto vontade de falar, exprimindo a ideia com gravidade, como se essa fosse uma dúvida profunda e antiga (o metro é uma pergunta recorrente. Não sei a que túnel o foram buscar, mas toda a gente acha que se pode ir de metro para todo o lado. Não tenho a certeza se é porque não têm noção das distâncias, se porque o metro, por ser o único meio de transporte inexistente em África, se tenha transformado num pedaço de civilização mítico, arquétipo do desenvolvimento, quintessência tecnológica de propriedades excepcionais).

- Não.

- E Cabo Verde? Onde é? – pergunta outro.

- Cabo Verde é aqui – aponto na areia.

- Ouvi dizer que de Cabo Verde se vê a luz de Lisboa ao fundo no mar. – diz um rapaz.

Atrapalho-me.

- Não sei. Não sei se se consegue ver. – tento explicar – Estão a ver a distância aqui no mapa… talvez se veja luz de outra ilha… E além disso a Terra é curva… é por isso que o horizonte é finito… – e perco-me nestas explicações inúteis.

- Mas um amigo meu esteve lá e viu as luzes de Lisboa.

Hesito.

- Bem, mas… sim, sim, porquoi pas? – acabo por concordar. – É possível caramba!

E enche-se tudo de sorrisos à minha frente. Festeja-se. Parece que vamos todos partir de viagem juntos. O mundo inteiro cabe dentro da nossa barraca. Cada cabeça aqui flutua pela crosta terrestre a uma velocidade super-sónica e, tenho a sensação, com um ímpeto tão mais pujante que aquele que me fez partir de Lisboa. Se pudesse, naquele momento, levava-os todos comigo

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor castrejo

Como dizia um personagem de certo filme francês, o amor foi uma invenção de um trovador numa corte, acesso imaginativo entretanto transformado em justificação da vida por gente entediada. Os séculos amadureceram a ideia, a moda pegou, e o amor culminou nesta lavagem cerebral injectada à força nas nossas cabecinhas vulneráveis de crianças pela “Bela Adormecida”, pela “Música no Coração”, pelos “Beatles”, por milhares de desenhos animados, comédias românticas lamechas de Domingo, romances e canções. Formataram-nos nessa ilusão de bem-estar fusional profundo, de salvação no outro, de príncipes azuis, escravizando-nos a essa demanda impossível e ocultando-nos tudo sobre o quotidiano, sobre autoclismos não puxados, bloqueios emocionais, divisão de tarefas e despertares rabugentos, que continuam e continuarão a existir, para além do casamento, dos filhos, e de todo e qualquer progresso civilizacional.

Mas o amor de Romeu e Julieta, o “meant to be”, essa ideia de colisão de duas almas prevista numa espécie de Livro do Tempo no início do Universo, esse amor – como lhe chamar (?), amor castrejo? – não tem a universalidade que ostenta. Aqui, por exemplo, não é assim.

Para começar, faz demasiado calor para andarmos de membros e corpos embaraçados e aos beijos e a dormir enrolados, e é um pesadelo ficar-se abraçado depois de fazer amor, a trocar carícias e afectos submersos em poças de suor, emaranhados na rede mosquiteira desfeita, a deixar passar os mosquitos que se vêem afogar na pele encharcada.

Também não há cinemas. O jantar à luz das velas é uma obrigação, não um prazer, e o pôr-do-sol é um filme já visto, um casaco coçado. Aliás, não se percebe esta lírica fixação ocidental com o pôr-do-sol. No meio da natureza, na terra do horizonte descoberto, sem betão a perfurá-lo, o pôr-do-sol é aquela banalidade que está lá sempre.

E depois é só problemas: ele é fula, ela é balanta, ele é manjaco, ela é nálu, ele é cristão, ela é muçulmana, amo-te a ti mas o meu pai prometeu-me à filha de um amigo seu há vinte anos atrás depois de um negócio entre ambos. Até queremos ficar juntos mas eu quero emigrar. Até me casava contigo, mas nesta aldeia o matrimónio implica no mínimo 50.000 CFAs à tua família. Onde é que raio vou eu desencantar 50.000 CFAs? É melhor pensar noutra coisa.

Vocês europeus é que têm essa coisa do amor. – diz-me o Mali – Aqui em África o amor é outra coisa e é muito fácil: se tens dinheiro, tens amor. Tens uma mulher, duas mulheres, três mulheres. As que quiseres. Se estás doente, se estás triste, se não tens dinheiro, se perdes emprego, aí já a mulher te deixa por outro. É assim. Não há essa coisa de cuidar do outro… Como é que vocês dizem? - e o Mali ri-se - Na alegria e na tristeza e na dificuldade e na doença… – e o Mali não termina o raciocínio, porque se continua a rir – Essas coisas… Sabes do que é que estou a falar não sabes?

No alpendre da sua casa, onde vive com uma dessas famílias nucleares que fazem inveja às nossas famílias extensas, e cujo almoço de dia de semana mete num canto as nossas ceias de Natal, Moustapaha fala-me e confunde-me com a vida e os nomes de alguns dos seus vinte e um irmãos. São filhos de três madrastas que deram ao mundo e ao seu pai, quatro, quatro e seis filhos, mais os quatro de sua mãe e dois de uma mulher anterior. Mas Moustapha tem uma postura crítica, escarnece desta manada de gente, e demarca-se:

- Mas eu quero casar-me com uma branca porque sou diferente. Não quero saber o que o meu pai diz. Para além disso a mulher negra gosta de ti enquanto lhes carregas o telemóvel. Mesmo a minha namorada, numa altura em que eu não tinha dinheiro, começou a dizer que eu já não gostava dela, e deixou-me. Mas não era verdade. Eu gostava dela. – e depois o Moustapha diz-me assim de repente o mundo em quatro ou cinco frases – Eu quero casar por amor. É por isso que me quero casar com uma branca, só uma, e ter dois ou três filhos. Mais não. Eu sei como é lá no teu país. Já vi nos filmes na televisão.

É tão verdadeira a ideia que o amor castrejo vem dos filmes que aqui ainda há quem tenha ouvido falar dele, justamente, através dos filmes.

domingo, 24 de maio de 2009

Neo-colonialismo

Sentamo-nos para jantar num restaurante na vila de Kafountine. De um lado da prancha de madeira, eu e um ex-mecânico de caças francês de 32 anos que acabou de largar o emprego para vir procurar no Senegal o que não encontrou de chave-inglesa na mão dentro das turbinas. Do outro lado da barricada, um velho francês ladeado por duas jovens irmãs senegalesas, uma mais açucarada, bonita, com um bebé às costas, na casa dos vinte, a outra, muito tímida, melancólica ou enjoada – não cheguei a perceber – e mais nova. Este velho vive espojado no ócio africano há 28 anos, e tem andado aparentemente por aqui a gozar dos privilégios associados à tez caucasiana, ou não se babasse com tamanho à vontade e abundância para cima das duas moças. Quando nos sentamos, enlaça-as com os braços e ri, com regozijo. Humedece os lábios engelhados com a língua antes de falar:

- Bela moldura, hem? Olhem para a minha sorte. Vocês é que são os miúdos, e a mim é que me saíram estas duas na rifa.

O velho tem essa postura desdenhosa de macho quarentão, com que deve ter desembarcado aqui 28 anos antes, que consiste numa atitude estandardizada de sarcasmo para com a realidade, independentemente de a situação o justificar ou não, e que pretende dar a entender aos outros o seu distanciamento completo de todos os pormenores mesquinhos da existência, da estupidez individual intrínseca de cada um e de cada situação, pose de superioridade omnisciente que se torna patética porque o velho já não compreende parte das situações que se desenrolam à sua volta (dos velhos, frequentemente, fica-lhes só o tom da voz que usaram para viver; uma prepotência discursiva sem conteúdo, que já não tem relação com o que se passa, que já não diz nada senão sobre eles, que é apenas som – por vezes tenho medo disto).

Irrequieto, olhos cintilantes e boca a salivar, vai afagando as lombas de carne mais salientes das duas meninas com as mãos mucosas e aracnídeas: as pregas fofas que lhes pendem, consistentes, dos antebraços, as bochechinhas, os queixos, a pança rechonchuda da mais espevitada. Vai também saturando o diálogo de entrelinhas porcas:

- Com que então gostas de vinho minha filha! Tens bom gosto. Preferes o que leva tempo a madurar. – depois reclama, entre dois tragos do anis que se lhe tem vindo a acumular no nariz bolboso e vermelho – Ah, meus amigos, puseram-me numa situação difícil. São duas princesas tão encantadoras que não sei qual é que hei-de escolher.

O decorrer da refeição, e o nariz dilatado, vão-lhe progressivamente soltando as mãos, que se entregam a locomoções larvares, como dois tentáculos gordurosos e irrequietos, que se ocupam de investigar os recantos do corpo das duas, guardando evidentemente as prospecções mais insistentes para a mais bonita. Eventualmente, os seus braços acabam por submergir de vez debaixo da mesa, irresistivelmente enclausurados nas pernas das duas. Por esta altura, o velho já não bebe nem come, porque já não tem mãos para isso. Tem os maxilares cerrados, os lábios entreabertos, e os dentes amarelos a rangerem e a esguicharem pelas frestas convulsões de ar respirado sem coordenação. Está descontrolado.

A sua excitação contrasta com a cara da pretinha acanhada, solidificada numa apatia incomodada, como se estivesse nauseada, e que não deixa perceber o que lhe faz o velho com a mão; a da mais bonita, sempre sorridente, vai balançando e contraindo-se em trejeitos, e transparece pelo menos a resignação de quem reconhece nada poder fazer perante o poder indiscutível de uma mão branca. Esporadicamente, o velho mete-se com a irmã mais feia e diz disparates do género:

- Uma rapariga tão bonita mas tão tímida. Non Non Non. Tens que aprender a ser com a tua irmã. – e os presentes riem-se, como se aquilo fosse coisa que se dissesse a alguém – Ela sabe o que um pobre homem velho cansado como eu gosta.

Eu também estou descontrolado. Sei vagamente que deveria abandonar a mesa mas não abandono: paira sobre ela uma conivência relaxada que me confunde, uma atmosfera ébria de descontracção tropical tão absoluta, que a minha rigidez moral me suscita dúvidas, me parece exagerada. Para além disso, deduzo que o velho me vá pagar o jantar. Sou pior que ele.

E, de repente, muito naturalmente – eu já o tinha previsto –, a senegalesa mais bonita pesca o bebé do pano que o sustém e espalma contra as suas costas, tira o seio murcho para fora, e começa a dar-lhe de mamar. O velho, apanhado de surpresa, demora um bocado a arranjar uma reacção adequada:

- Oh la la! Mas de onde é que este veio? – diz, já fora de tempo – Ah! Em África os putos saltam de todo o lado. – e percebe-se que estava tão vidrado no seu próprio gozo que não tinha antes reparado que ela trazia um bebé consigo.

Depois de um breve compasso de desilusão, recompõe-se e cessa de dirigir a palavra à jovem mãe. O jantar aproxima-se do fim, e, como se não soubesse como penetrar na apatia da outra, troca a voz irónica e ácida por um falsete meloso em baixo volume e por um discurso mal soletrado, imitando a forma como se dizem parvoíces a um bebé:

- Meu docinho… Meu amorzinho… – sussurra-lhe, embora se oiça – Tu es si belle.

Ela não reage. Conserva a expressão muda, alienada, como se não estivesse ali, e que a torna ainda mais feia. A irmã continua a rir, e a criança a mamar tem dificuldade em abocanhar o seio, que sacoleja e lhe salta dos lábios.

-Já te tinham dito que és linda não já? – prossegue o ancião, aproximando-lhe os lábios do ouvido – Quero que venhas comigo. Hoje à noite vamos brincar, meu bebé.

Mas ela nada diz. Limita-se a fitar uma perna de frango inacabada no prato à sua frente, e a brincar com o garfo com o seu osso feito antena, feito cano de tanque, apontado ao velho.

- Vens comigo não vens? – diz o decano, agora mais imperativo, mas não obtém reacção e, como que desesperado, redobra os esforços de insinuação: chega-se, faz-lhe perguntas, propaga os membros viscosos debaixo da mesa. – Então, o gato comeu-te a língua? – e a irmã ri exageradamente – Porque é que não falas? Tens vergonha? Não precisas de ter vergonha. Tens medo. É isso, não é? Mas eu não te vou fazer mal nenhum... – diz, deixando escorregar as palavras da boca como chocolate derretido.

Admiravelmente, a rapariga resiste, e provoca-me nesse momento a impressão violenta de ser a única pessoa a portar-se condignamente nesta espelunca: é a única que não faz teatro. Porta-se como o insecto a que está reduzida. A sua circunspecção é uma muralha majestosa e impenetrável. Por detrás dessa face de betão armado, dos seus lábios grossos de cimento castanho, pode estar a acontecer tudo: do mais atroz sofrimento, a um passeio nas nuvens, num qualquer castelo de fadas, muito longe dali. Os outros que apreciem as baboseiras do polvo francês.

- Gostavas muito de passar a noite comigo, não gostavas?

E por esta altura, tardia e passivamente, a mesa sofre um click subliminar. Eu, como provavelmente os outros, sinto-me subitamente sugado para fora da peça de deboche representada à mesa, saído de dentro de um filme, e a minha cabeça cansada discerne enfim um limiar cristalino da razoabilidade, ultrapassado há tanto. Não sou o único. Já ninguém ri deste calor, do álcool, da comédia da vida, dos desvarios de um velho febril e castiço, afectado pelos trópicos e pelo sexo fácil: a cena tornou-se crua, degradante, a tragédia de um homem patético.

Gosto de pensar que esta transformação se dá devido ao silêncio invencível da preta enjoada. Todavia, não é suficiente para que alguém manifeste uma centelha de indignação.

- Não gostavas? Responde-me. – diz o velho com brusquidão, impacientando-se finalmente, esquecendo-se da voz mimada, e criando um momento de tensão.

E os senegaleses que andam ali pelo restaurante fitam a rapariga, um rasta que a meio do jantar me fazia uma conversa sobre colonialismo francês cheia de moralismos fita-a, a irmã, que também já não ri, fita-a, eu fito-a, o mecânico francês também, a dona do restaurante também, e ela, mergulhada num poço de olhos, vai preservando com todas as forças uma indiferença insustentável

- Talvez. – murmura, por fim.

- Não é talvez. É sim. É sim. Vá, diz que sim, para me fazeres feliz.

E ela não diz. Vale mais que nós todos juntos.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O enclave

I.

Em Sukuta, a uns 20km de Banjul, capital da Gambia, existe um parque de campismo gerido por um casal de alemães que aí também habitam, e que poderia ser descrito sobretudo como um enclave de lei e ordem em solo babilónico: do gerador que carrega baterias de máquinas fotográficas ou telemóveis que tem que ser a Claudia (a alemã) a ligar (embora não passe de um estúpido botão), há hora dos check-outs, à impossibilidade de se trazer comida de fora para o agradabilíssimo alpendre que está sempre vazio e a cheirar a lixívia e que não se percebe para que serve, ao quadro de giz onde devemos escrever o nosso nome até duas horas antes da refeição se pretendemos almoçar ou jantar, tudo está submerso numa aura densa de regras e normas que delimitam, categorizam e definem espaços, tempos e tarifários para todas as situações possíveis dentro deste pequeno mundo, como se o objectivo fosse esquecermo-nos – ou esquecerem-se – que estamos em África.

A situação que relato, por insignificante que seja – a história é sobre a secagem de um alguidar de roupa lavada – não deixa, creio, de servir de ilustração etnográfica da persistência de fronteiras mentais dos povos, mesmo depois de décadas de íntima convivência.

Para dizer o que quero dizer devo começar por referir dois detalhes: o parque de campismo tem um estendal com cinco cordas, e o parque estava, no momento da nossa estada, a uns 10% da sua ocupação (havia apenas 5 pessoas).

Naquela manhã, durante uma hora, lavei quase toda a minha roupa – que cabe numa mochila de 40L (umas dez peças diferentes) – e chegou eventualmente o momento em que pergunto a uma funcionária do parque se a posso estender nas tais cinco cordas, que se encontram meio ocupadas.

- Claro – diz-me a gambiana – as cordas estão aí para isso.

Estendo parte da minha roupa em duas dessas cordas. Passado um bocado, a Claudia vem ter comigo à tenda:

- Peço-lhe desculpa, mas tem que tirar a sua roupa dali. É que hoje temos muita roupa lavada.

Não consigo evitar olhar à minha volta para me certificar que ainda estamos no mesmo acampamento deserto. Depois admiro o alguidar que a Claudia segura nas mãos, olho para o espaço que resta na corda, mas não me atrevo a dizer que existe espaço para tudo.

- Com certeza. Há algum outro sítio onde a possa estender?

- Sim, numa corda entre duas árvores. – responde ela, resolutamente.

- Ok. E onde é que ela está?

- Tem que ser o senhor a montá-la.

- Ah… não existe. Bem, se tem que ser, não tem problema. Tem aí a corda para eu a meter? – pergunto naturalmente, e nem me ocorre que a resposta possa ser negativa.

- Não. Desculpe. – e a Claudia ri-se – não temos cordas. Tem que ser uma corda sua. – e, como que para vincar que o problema da minha roupa estendida nas suas cordas, apesar de eu ser hóspede do seu parque de campismo, é radicalmente meu e termina ali (pelo menos para ela), e que as posso meter onde bem quiser desde que as tire do estendal, vira as costas e vai-se embora (mas será que ela percebe que eu não vim para África com cordas da roupa na insignificante mochila que trago às costas, e, afinal de contas, estamos num parque de campismo: não terão algures uma corda?).

Resignado, derrotado, retiro a minha roupa das cordas e começo a estende-la por cima da tenda e nos ramos das árvores em volta, e dói-me o coração por cada peça de roupa tão esmeradamente lavada que agora entrego ao pó das novas superfícies de secagem. E eis que, subitamente, uma preta que vive com os filhos e o marido numa barraca num recanto dentro do parque (é uma família africana que está toda empregada aqui: são guardas-nocturnos, cozinheiros, mulheres da limpeza, jardineiros e construtores civis) me começa a chamar:

-Oh! Tu! Que é que estás a fazer? Vem aqui meter a roupa! – diz, ao mesmo tempo que me acena. Está a oferecer-me a sua própria corda da roupa, que fica por cima do fogo onde estão a fazer a comida, por cima do espacinho onde cinco miúdos estão a brincar, por cima do banco onde ela própria está sentada.

- Não é preciso. – digo eu, receoso de arranjar trabalhos – Vou armar aí uma confusão.

- Não vais nada! Não tem problema. Anda! – retorque a preta, com uma gentileza que tinha ficado sobretudo bem aos donos do parque, de quem sou cliente, e não a esta mulher, que não ganha nada com a minha roupa encharcada.

Dirijo-me a ela e à sua corda, e começo a estender a roupa. Ela observa os meus movimentos, e às tantas escangalha-se a rir. Sem uma palavra, tira-me uma camisola das mãos, enrola-a e começa a espreme-la com toda a força.

- Assim é melhor. – diz, categórica, enquanto força um rio de água a espirrar com toda a violência da camisola.

Rio-me perante a eficácia do método e digo:

- Tem razão.

E entretanto, sem ninguém lhe pedir nada (e esta não é minimamente a obrigação dela, que está, afinal, na sua casa), começa a pegar-me nas calças, camisolas, e roupa interior e espreme-las e a ajeitá-las na corda, escarnecendo o tempo todo da minha falta de jeito.

Regressando da sua barraca, passo pelo estendal do parque e contemplo, com tristeza, a enorme quantidade de espaço livre deixado: teria sido suficiente retirar o espaçamento de meio metro entre cada lençol da Claudia para permitir que coubesse toda a minha roupa. Uns vinte minutos mais tarde, ao dirigir-me à casa de banho, deparo-me com toda a família gambiana a almoçar do mesmo prato precisamente debaixo da minha roupa molhada, e contemplo, quase comovido, os pingos esporádicos provenientes dos meus boxers ou t-shirts que vão caindo em cima dos seus pescoços dobrados sobre o prato ou em cima do arroz com peixe (djebujen), situação que não parece aquecer nem arrefecer ninguém, uma vez que bastava deslocarem o prato meio metro para o lado para evitar esse contacto excessivo com a minha roupa lavada.

II.

É bem possível que se a preta não me tivesse oferecido tão desinteressada e, ouso dizer, humanamente a sua corda, nunca tivesse chegado a ganhar verdadeiramente a perspectiva da dimensão da antipatia comichosa alemã. Não que fosse grande surpresa comprovar que são os alemães que detêm o parque de campismo, mas que são os gambianos que sabem como se tratam as pessoas. Porém, não consigo perceber o que é que este casal está aqui a fazer há 11 anos. Se o objectivo era virem para aqui mas continuarem numa Alemanha com 35 graus Célsius, conseguiram-no.

Neste duelo local de titãs entre os dois grandes pragmatismos do globo, concluo que a badalada praxis alemã é uma parente muito pobre do pragmatismo e facilitismo africanos, e é talvez erroneamente denominada. Trata-se porventura mais de uma bóia de salvação: uma espécie de meio único de acesso ao oxigénio no meio de um mundo (talvez não apenas africano) de um caos asfixiante e sob a ameaça implacável da essencial componente de incerteza da vida (com que os alemães decididamente não sabem lidar). O pragmatismo alemão (de que os países protestantes padecem um pouco mais, e a Europa do Sul um pouco menos) é menos uma simplificação do que um meio de fuga à angústia da desordem e tende a reduzir-se a uma mera aplicação das regras (do livro, da lei) e de pré-determinações, sendo rígido e inflexível, ao passo que o pragmatismo africano não parte de um livro, de uma lei ou de nenhuma pré-determinação, mas surge no momento, improvisado na dificuldade da situação, e é completamente plástico e adaptativo.

Isto não deixam de ser resmunguices necessariamente enviesadas pela minha posição de cliente: o pragmatismo alemão, tão bem oleado, tão funcional, tão escrito, foi incapaz de lidar com a minha roupa lavada. O pragmatismo africano, tão etéreo, sem recibos, sem preços tabelados, secou-me a roupa. Mas estou convencido que se tratam também de emblemáticas contingências de um povo hiper-funcionalista, destinado a vencer, mas a chatear-se sempre com os outros.