domingo, 13 de setembro de 2009

Fim

Um agradecimento muito especial a todos os que me acompanharam na aventura escrita como na física.

Continuarei a publicar, neste espaço, quatro ou cinco textos que, a bem dizer, já pouco ou nada têm a ver com a minha viagem e que, talvez, já aqui não pertençam.

Tenciono também utilizar este espaço para publicitar futuros projectos.

Até a uma próxima viagem.

sábado, 12 de setembro de 2009

Viagem de regresso

I.

O enorme contentor que me transporta é feito de chapas rectangulares e coloridas de metal soldado. Junto com mais umas vinte e cinco pessoas, viajo dentro desse curioso exoesqueleto desengonçado de retalhos, que chia como uma espécie de palacete de madeira com pernas. São 11 horas da manhã, quando abandonamos a alegre, frondosa e húmida Ziguinchor em direcção a Dakar, 700km a Norte. O percurso, sou informado, é estimado em dez horas de viagem.

Mal a camioneta arranca, compreendo ter elegido o lugar errado. O tubo de escape fica mesmo debaixo dos meus pés e a chapa de metal carcomida pela ferrugem permite que vaze parte significativa dos seus despejos para dentro do veículo, mergulhando-me, durante tanto tempo quanto durará a viagem, num atordoante jacuzzi de monóxido de carbono. Nem dez minutos depois, já me sinto nauseado com o banho de vapores antracite. Tento tapar a boca, depois enfio-a dentro camisola mas perturba-me o odor do meu próprio corpo. Um pouco de escape mais tarde, e o meu corpo parece-me mais agradável. É impossível, porém, realizar a viagem toda com a camisola no nariz e o próprio tecido é trespassado pelas baforadas quentes de monóxido de carbono. Estou no Senegal mas não consigo evitar os constantes flashes do parque de estacionamento das Amoreiras.

Por volta da uma da tarde, começa subitamente a sair fumo debaixo de um banco lá à frente, quase junto aos motoristas. Enquanto alguns passageiros se afastam violentamente, preparando-se para fugir, rebenta um géiser de vapor de água debaixo do banco de um velhote, que manda um piparote fenomenal.

Entra-se em pânico mas o jacto perde fulgor. As pessoas imobilizam-se e passam ao protesto. Porém, a contestação é mero fogo do momento. Depois de solucionado o problema, quando se tenta reatar a viagem – meia hora depois – são os próprios indignados que se recusam a aparecer, perdidos sabe-se lá onde na tabanca vizinha: procuram água, casas de banho, mangas por bom preço. De facto, volvido esse período de penosa espera sob o sol tórrido, que parece ganhar ânimo a cada quilómetro que se galga em direcção ao Sara, decido ir perguntar aos motoristas porque não andamos. São três e estão espojados nos bancos, com os pés fora das janelas, a mascar os ossos de choco das mangas e a fumar cigarros. Como se a minha pergunta fosse em si um elemento enzimático, dinamizador, um deles responde:

- Tout de suite – e, magicamente, a camioneta é posta a trabalhar. Convocados pelo ronco espalhafatoso do motor, alguns passageiros acorrem ao veículo. Eu próprio me vou sentar. Mas, como se ninguém estivesse verdadeiramente convencido que seja chegado o momento de seguir caminho, cai sobre tudo um manto de hesitação. Há quem recomece a sair para a rua, há quem se volte a perder na aldeia. Eventualmente, uma vez que a situação tarda a ganhar indícios de resolução – como se tivesse sido transportado para uma outra dimensão, para um planeta onde a poderosa força entrópica da indecisão tenha modificado irreversivelmente a estrutura do pensamento dos homens – o carro reaquece e há que o desligar de novo perante os novos espasmos pré-ejaculativos de água furiosa, o que só vem tornar o acto de ter ligado o motor deliciosamente mais absurdo.

Apesar da estranha conjectura psicológica, julgo que, mesmo para o Senegal – onde uma lei absurda proibiu a entrada no país de veículos com mais de cinco anos e transformou metade da população em mecânicos – este pedaço de lata é demasiado mau.

Meia hora depois, o motor parece de novo entregue à sua sadia convulsão e, aparentemente, não falta ninguém. Então porque não partimos? Durante algum tempo, ninguém parece saber porquê, ou ninguém se quer dar ao trabalho de mo explicar em francês, língua que, com este calor todo, lhes dá tanto trabalho a eles como a mim. Pelos vistos, há uma gorda imensa, um estafermo de carantonha sapiforme, que decidiu comprar mangas suficientes para encher dois enormes sacos de serapilheira, que uma catrefada de raparigas trazem de todos os lados em baldes ou nas camisolas a fazer de recipiente. Estão lá fora a enche-los paulatinamente e, para cúmulo, a retirar-lhes as folhas que as adornam (para caberem mais mangas? – não consigo compreender). Há quem se ria, há quem expresse a sua impaciência, mas, como se torna óbvio que ninguém sairá daqui sem a mulher ou sem as mangas, acabamos todos a ajudar a encher os sacos.

II

Já de noite, pelas 23h, sem aviso e contra tudo o que estava planeado, paramos para passar a noite no meio de nenhures, 50 km antes da fronteira com a Gâmbia. Têm havido assaltos rodoviários no troço que se segue, levados a cabo pelos rebeldes da Casamance, e os motoristas têm receio de prosseguir. Esta justificação, porém, só me será comunicada mais tarde, porque o procedimento de interrupção da viagem, esse, é executado com uma leviandade deliciosa. O “expresso”, se assim se lhe pode chamar, limita-se a encostar à berma e os passageiros (sem aviso, sem consulta prévia), ainda que visivelmente irritados, limitam-se a sair, deduzindo do comportamento do veículo a súbita adição de sete horas e de uma noite de mau sono ao plano de viagem. Uns vão á procura de comida, outros de água para os bebés, outros encontrarão uma festa onde dançarão, embriagados, até de madrugada, para, no dia seguinte, prosseguirem, ressacados e insones, esta interminável odisseia.

Quanto a mim, já completamente rendido a este ritmo de viagem perpétua, debelador de ansiedades, método eficaz de desagregação do acto da viagem do objectivo da chegada (O que importa é partir, não é chegar, não é? Talvez o Torga tenha passado pelo Senegal), saio cá para fora, descontraído e, durante horas perdidas, fico à conversa com um senegalês. Não recordo patavina do diálogo ou detalhe algum da face do homem. Procedesse eu assim, agisse eu desta forma liquida a vida toda, e já ela teria passado toda, fosforescente, um ridículo relâmpago.

A conversa enche-me o estômago de fome mas não há nada para comer. Regresso à camioneta mas o interior do cachalote de lata – os bancos, o chão – está absolutamente coberto por uma alcatifa de corpos derretidos a ressonantes. É impossível entrar – só o grande sapo humano ocupa meia fila de bancos – e tenho que me resignar a passar a noite com o que trago no corpo.

Volto cá para fora. Não há ninguém. Estou sozinho num mundo do qual só resta uma estrada de alcatrão a perder de vista para os dois lados, traço pálido e infinito, atiçado pela luz lunar. Estou exausto, cheio de fome e sinto-me a cambalear de sono. Sento-me numa raiz virada do avesso, que é a ilusão mais parecida com um maple ou um cadeirão que consigo entrever, imaginar. Tento adormecer, encaixando-me nos rígidos tentáculos e, embora o consiga fazer devido ao cansaço extremo, acordo constantemente com o corpo em posições contorcionistas e a cabeça pendida, a sacudir-se da gravidade. Sem saber para onde ir, sem sequer poder tirar as minhas coisas da camioneta (uma camisola para fazer de almofada, por exemplo), desespero. Faltam pelo menos seis horas para partir e não sei o que hei-de fazer. Cinco minutos depois, estou deitado no alcatrão, cabeça apoiada no cotovelo dobrado. Trata-se de um novo marco na minha incursão à vadiagem e não posso dizer que não aprecio a experiência.

Dormir no alcatrão quente é sobretudo uma experiência olfactiva: o piche exala um bafo quente que aquece as costas, odorado a óleo queimado, ao próprio alcatrão ateado pelo dia de sol e a algo mais horrível e subtil que não sei definir.

Não sei precisar quanto tempo depois, sou acordado pelo negro com quem estive à conversa. Meio a cambalear, meio a flutuar, sigo-o dentro de um sonho em forma de túnel de metropolitano. Sou conduzido à luz, a uma barraca onde um outro homem, que parecia estar ali à minha espera desde o início dos tempos, está a colocar um colchão de casal no chão, ao relento, com um lençol lavado e um copinho de água ao lado. Deito-me nesse sonho e o homem volta com uma manta para me cobrir. Este é o lado mais incrível de África.

III

Quando o sol raia, alguém me acorda. Trôpego, entro na camioneta e deparo-me com a impressão inaceitável de conhecer intimamente todos os seus ocupantes. Ver esta gente de novo no mesmo espaço relaciona-se com um grau de bizarra familiaridade que não sei definir. Tenho a sensação de ter ficado preso numa realidade que não é a minha.

Nem cinco minutos depois de arrancarmos, paramos de novo. Agora, enchem a carrinha com dez imensos sacos de carvão. Ainda é de madrugada, mas a mulher-sapo já está activa.

- O problema é que é preciso gastar dinheiro para fazer dinheiro. – diz ela, para a camioneta e para a minha cara antipática, mas o que ela queria dizer era que o problema é que é preciso interromper um transporte publico até ao cúmulo do desespero para fazer dinheiro.

Como não sobra espaço no tejadilho, alguns dos sacos têm que vir para dentro da camioneta. Apetece-me disparatar, mas, subitamente, dou por mim a apreciar o facto de poder estender as pernas sobre os sacos (outra lição africana: é preciso saber apreciar as vantagens de todas as desvantagens). Agora, a saída da camioneta está completamente bloqueada, o que constitui mais uma desvantagem: se há um acidente, se a camioneta pega fogo (o que, dadas as condições do chaço, não é um cenário irreal), ninguém sai daqui. Ardemos bem ardidos, com a ajuda extra do carvão. Não sei, porém, qual é a vantagem desta desvantagem. Talvez seja terminar esta peregrinação mais depressa.

Numa das cinco intermináveis pausas que se seguem nas cinco horas seguintes – respectivamente: fronteira do Senegal, ferry, fronteira da Gâmbia, fronteira da Gâmbia, fronteira do Senegal – sou hipnotizado por este preto incrível, seboso e com ar de idiota, com os dois incisivos de fora como um roedor, que ainda não saiu do mesmo sítio. Ainda não o vi comer, beber água, dormir, nem falar. A sua viagem tem sido feita numa espécie de estado drogado ou semi-consciente que eu apreciaria muito poder induzir a mim mesmo.

IV

Pelas 9:30 da manhã, o corpo recomeça a transpirar e a sensação de viscosidade que ficou do dia seguinte desaparece, substituída por novo alagamento dérmico. Às 11 horas o forno sobre rodas que é a camioneta devora-nos vivos.

Percorremos um troço de 20km de terra que me introduz a um novo patamar de tortura física. Os bancos não pertencem originalmente a esta camioneta (nada pertence originalmente a esta camioneta), foram soldados à chapa que cobre o piso. Para além disso, são unicamente constituídos por várias arestas perpendiculares de metal e possuem apenas uma fina almofada (uns dois centímetros de esponja tenra) a atenuar os disparos cinéticos do piso que, tirando a deficiente e antiga suspensão do veículo, são integralmente absorvidos pelos corpos dos ocupantes. É como se existisse uma ligação sensória directa entre o piso – as suas pedrinhas, os seus calhaus, as suas oscilações, os seus buracos, as suas crateras – e o nosso rabo. É como se fosse o meu próprio corpo que deslizasse pela pista, imerso numa intensa e brutal experiência táctil. Descem-me aos sentidos as memórias emocionais de viajar num Eurostar e a diferença entre África e o Ocidente reconstitui-se diante dos meus olhos, abismal.

V

Depois da metamorfose em martelo pneumático, descansamos à força durante uma porção temporal que já não me preocupo em cronometrar. O carro voltou a reaquecer. Todos compram saquinhos de água para beber e a nossa pequena e extraordinária comunidade reúne-se numa comunhão silenciosa de chuchares.

Um dos tipos que foi para a festa está reduzido ao coma. Fez um microscópico furo no saquinho de água, que vai esvaziando, em esguicho, para dentro da boca de maxilar inferior descaído e paralisado, ao longo de dez intermináveis minutos.

VI

Mais adiante, a camioneta tem um problema no radiador. Interrompemos a viagem durante duas horas e a sensação de impotência acaba por vencer-me. Esqueço tudo: o meu corpo, a minha vida, o que fiz no dia anterior, o que pretendia fazer no meu futuro. A filosofia da ancoragem no presente radical não se aprende, sofre-se.

O meu sonambulismo é interrompido muito mais tarde por uma mulher que se vira para trás, para mim, e me pergunta:

- Tout va bien?

- Estou morto. – digo.

Ela emite um guincho, gargalhares, e grita para todos os passageiros:

- O branco diz que está morto.

Vejo as cabeças todas inclinarem-se na minha direcção, em simultâneo, e, por instantes assusto-me. Desatam-se a rir. A camioneta inteira. Quando se acalmam, a mulher prossegue o diálogo possível:

- Quando conheceres a mulher do presidente Wade [Presidente da República senegalesa] vais-lhe dizer que levámos dois dias para fazer esta estrada. E ri-se.

Eu rio-me também, porque penso que é uma brincadeira, mas ela depois pergunta-me, com ar sério:

- Mas vais-lhe dizer, não vais? Quando chegarmos a Dakar…

VII

Há dois tipos à minha frente a tirar habilmente macacos do nariz, ainda que com gestos abrutalhados, o que me induz reflexivamente a assoar-me. Deito cá para fora uma generosa porção de lodo e desisto. Não vale a pena. Estou todo contaminado, sujo, desfeito. A filosofia da aceitação não se aprende, pratica-se.

VIII

Inconcebivelmente – e muito embora na altura não me tivesse parecido grande surpresa – a camioneta fica sem gasolina no meio de uma estrada rubra e poeirenta, já em pleno sael, no meio de um mato amarelado, seco, que liberta chamas. Muitos companheiros de peregrinação deixam-nos, pedindo boleia a outros veículos, enquanto dois dos motoristas pedem boleia para irem à vila mais próxima procurar combustível. Os restantes abrigam-se na única sombra de árvore disponível, a duzentos metros de distância, uma sombra no meio de África.

A paragem repete-se uma hora depois – no quinto ou sexto sobre-aquecimento do motor – mas desta vez não há nenhuma árvore nas proximidades, o que constitui a gota de água exacta que torna a situação intolerável. Os homens jovens e adultos, sozinhos, com mais mobilidade, abandonam a camioneta. Ficam as mulheres com crianças e mercadorias, fica a senhora-sapo, que não o poderão fazer, e eu, que me continuo a convencer que durarei até ao fim.

Na interrupção forçada seguinte passaram 29 horas e alguém me diz que já completámos 350km para Dakar. Isto quer dizer que faltam outros 350km, penso. Pego nas malas e estendo o dedo aos carros que passam. Orgulho-me, porém, de ser um dos últimos a desistir.

Catorze dias mais tarde, regressei a casa.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Gemido

Consegui isolar a experiência sonoro-atmosférica da cidade africana num exíguo quarto-forno de uma pensão barata e bafienta quando desliguei a ventoinha e desisti de caçar mosquitos.

Tinha-me deitado com silêncio. Ou assim o julguei, empedernido debaixo dos lençóis mudos da noite senegalesa. Aqui não existem carros nem aviões nem comboios nem grandes motores pelo que não existe nada que imprima ou incruste categoricamente a realidade de sons – e esta é uma diferença importante. Porém, o revestimento de silêncio, a aparente embalagem de serenidade, são ilusões traiçoeiras.

A perplexidade, o medo, só acontecem quando acordo às quatro da manhã, alagado em suor, e, estupefacto, constato que no lugar do sossego arde um inferno. Da interminável extensão desta cidade achatada, vêm latidos de cães, mugidos de vacas, ribomba um tambor, desvanece-se no espaço o ronco de uma lambreta, os morcegos emitem os seus guinchos-sonares metálicos, há uma criança que berra ou chora, os imãs cantam poemas através dos minaretes que, entoados assim, em frequências graves, em trinados insistentes, revestidos do timbre férreo dos megafones, lembram clamores medonhos de criaturas de filmes de terror de baixa qualidade. Ignoro o que aconteceu entretanto mas acordei dentro de um pesadelo.

Todavia, não obstante a enumeração, o que define a particularidade deste som é o seu carácter indistinto. A maioria dos seus elementos não é dissecável. O bolo sonoro não é divisível por partes, que estão demasiado compactas, misturadas, e são demasiado constantes. O resultado é que essa linha sonora de fundo se assemelhe mais a um burburinho, a um marulhar, como um agitado oceano de vozes dentro de um búzio psicadélico. A sua referida constância torna-a enganadoramente análogo ao silêncio – e duvido que quem quer que tenha nascido e vivido toda a vida nestas cidades (e há tanta gente aqui que nunca se aventurou além das mesmas ruas de uma urbe africana) tenha uma noção aproximada de verdadeiro silêncio.

Dado que é impossível decompô-lo, não é possível identificar os elementos que compõem o grosso do gemido. Porém, podem ser induzidos racionalmente.

A minha suspeita é de que o manto sónico seja composto pelos retalhos de milhares de vozes. As minhas razões prendem-se, em primeiro lugar, com o calafrio que o som causa na pele, e com a angústia que arranca ao corpo. Como as vozes tenebrosas da composição de Ligety que assombram as aparições do monólito em 2001: Odisseia no Espaço, esta noite urbana está empapada de um similar sururu contido, como que sob pressão, atafulhada de uma amálgama de permanentes (e não demasiado oscilantes) trinados agudos e negros que lembram a estática de uma frequência morta num transístor.

Em segundo lugar, as razões prendem-se com a unanimidade do som: a sua constância e a sua omnipresença. O som possui o mesmo timbre, o mesmo exacto volume e inflige a mesma perturbação atónica em qualquer parte da cidade que nos encontremos, a qualquer hora do dia ou da noite. Esta perseguição é explicada porque as cidades africanas nunca dormem, porque, a qualquer hora, há sempre milhares de pessoas a fazer algo, pelo que não há prédio algum ou andar suficientemente alto onde nos possamos enfiar para não as ouvir. Adicionalmente, estas cidades não têm centros de negócios ou residenciais e por isso apresentam uma singularidade que as distingue das cidades europeias: são homogéneas, não têm migrações horárias internas significativas, não têm órgãos localizados mais activos a determinada hora.

Esse carácter atmosférico do som, que parece brotar das paredes, já que vem de todo o lado e não vem de nenhum, que nunca cessa, que é permanente em todos os pontos do espaço, como se viesse do centro da terra ou do próprio ar, que se assemelha ao laborar incansável de um formigueiro, a um corrupio penoso sem sentido, a um suplício perpétuo, só pode ser composto por algo que está ao mesmo tempo em todo o lado: vozes.

Uma terceira e última razão: só o vaivém sem sentido das pessoas lhe pode atribuir essa aparência tão macabra e inquietante de gemido de fundo.

Não conheço outras cidades do chamado terceiro mundo sem ser as africanas, mas tenho para mim a ideia de que quem as conheceu, terá encontrado o pânico deste penoso murmúrio.

Enquanto tento readormecer, peço ao vazio que o dia chegue depressa.