sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Gemido

Consegui isolar a experiência sonoro-atmosférica da cidade africana num exíguo quarto-forno de uma pensão barata e bafienta quando desliguei a ventoinha e desisti de caçar mosquitos.

Tinha-me deitado com silêncio. Ou assim o julguei, empedernido debaixo dos lençóis mudos da noite senegalesa. Aqui não existem carros nem aviões nem comboios nem grandes motores pelo que não existe nada que imprima ou incruste categoricamente a realidade de sons – e esta é uma diferença importante. Porém, o revestimento de silêncio, a aparente embalagem de serenidade, são ilusões traiçoeiras.

A perplexidade, o medo, só acontecem quando acordo às quatro da manhã, alagado em suor, e, estupefacto, constato que no lugar do sossego arde um inferno. Da interminável extensão desta cidade achatada, vêm latidos de cães, mugidos de vacas, ribomba um tambor, desvanece-se no espaço o ronco de uma lambreta, os morcegos emitem os seus guinchos-sonares metálicos, há uma criança que berra ou chora, os imãs cantam poemas através dos minaretes que, entoados assim, em frequências graves, em trinados insistentes, revestidos do timbre férreo dos megafones, lembram clamores medonhos de criaturas de filmes de terror de baixa qualidade. Ignoro o que aconteceu entretanto mas acordei dentro de um pesadelo.

Todavia, não obstante a enumeração, o que define a particularidade deste som é o seu carácter indistinto. A maioria dos seus elementos não é dissecável. O bolo sonoro não é divisível por partes, que estão demasiado compactas, misturadas, e são demasiado constantes. O resultado é que essa linha sonora de fundo se assemelhe mais a um burburinho, a um marulhar, como um agitado oceano de vozes dentro de um búzio psicadélico. A sua referida constância torna-a enganadoramente análogo ao silêncio – e duvido que quem quer que tenha nascido e vivido toda a vida nestas cidades (e há tanta gente aqui que nunca se aventurou além das mesmas ruas de uma urbe africana) tenha uma noção aproximada de verdadeiro silêncio.

Dado que é impossível decompô-lo, não é possível identificar os elementos que compõem o grosso do gemido. Porém, podem ser induzidos racionalmente.

A minha suspeita é de que o manto sónico seja composto pelos retalhos de milhares de vozes. As minhas razões prendem-se, em primeiro lugar, com o calafrio que o som causa na pele, e com a angústia que arranca ao corpo. Como as vozes tenebrosas da composição de Ligety que assombram as aparições do monólito em 2001: Odisseia no Espaço, esta noite urbana está empapada de um similar sururu contido, como que sob pressão, atafulhada de uma amálgama de permanentes (e não demasiado oscilantes) trinados agudos e negros que lembram a estática de uma frequência morta num transístor.

Em segundo lugar, as razões prendem-se com a unanimidade do som: a sua constância e a sua omnipresença. O som possui o mesmo timbre, o mesmo exacto volume e inflige a mesma perturbação atónica em qualquer parte da cidade que nos encontremos, a qualquer hora do dia ou da noite. Esta perseguição é explicada porque as cidades africanas nunca dormem, porque, a qualquer hora, há sempre milhares de pessoas a fazer algo, pelo que não há prédio algum ou andar suficientemente alto onde nos possamos enfiar para não as ouvir. Adicionalmente, estas cidades não têm centros de negócios ou residenciais e por isso apresentam uma singularidade que as distingue das cidades europeias: são homogéneas, não têm migrações horárias internas significativas, não têm órgãos localizados mais activos a determinada hora.

Esse carácter atmosférico do som, que parece brotar das paredes, já que vem de todo o lado e não vem de nenhum, que nunca cessa, que é permanente em todos os pontos do espaço, como se viesse do centro da terra ou do próprio ar, que se assemelha ao laborar incansável de um formigueiro, a um corrupio penoso sem sentido, a um suplício perpétuo, só pode ser composto por algo que está ao mesmo tempo em todo o lado: vozes.

Uma terceira e última razão: só o vaivém sem sentido das pessoas lhe pode atribuir essa aparência tão macabra e inquietante de gemido de fundo.

Não conheço outras cidades do chamado terceiro mundo sem ser as africanas, mas tenho para mim a ideia de que quem as conheceu, terá encontrado o pânico deste penoso murmúrio.

Enquanto tento readormecer, peço ao vazio que o dia chegue depressa.

3 comentários:

  1. um dia leio o teu blogue inteiro, um dia... ;)
    S.

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  2. Ainda ninguém conseguiu!
    Diz-me o que pensares quando tiveres acabado :P

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  3. Ai cara gostei muito das postagems do seu blog sao muito interessante eu fiz um blog tamben sobre caminho estreitose der pra vc dar uma olhada e dar umas dicas tae o blogg
    http://trilhandonocaminhoestreito.blogspot.com/
    meu nome é marcelo e se der me segue la blz ai se vc quiser eu te sigo aki tamben flw cara obrigado que Deus te abençoe e ilumine seu caminho flw

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