sexta-feira, 24 de julho de 2009

A primeira comunhão


Festa de rua em Bissau. Fotografia de Francesca Fedi.

No meio de um caminho rubro e poeirento, em face da casinha térrea de família, no centro de uma Bissau que é uma estufa impregnada de vapor de água, participamos na festa familiar que sucede ao ritual litúrgico.

Cá fora, foi posta uma mesa de festa, aparentemente destinada a comes e bebes, mas está vazia. Pouco importa. Eu e o André deliciamo-nos na mesma, a observar as raparigas, negras como alcatrão, a dançarem ao som da batida, expelida por duas colunas instaladas nas janelas da casa. Muitas delas usam perucas. Tanto na cor – sobretudo roxo, vermelho e loiro – como no tipo de cabelo, extremamente liso, quase escorrido, o cabelo é uma espécie de versão hiper-europeia (impossível) do nosso próprio cabelo.

Uma delas cobiça-me. Já enfrascada, vem, de vez em quando, puxar-me pelos braços para ir dançar com ela para a pista de dança, que é o mesmo que dizer para o meio da rua. Confesso que o seu corpo de proporções avantajadas, agitando-se a velocidade improvável, me assusta. À terceira insistência, ganha confiança e, como tem mais força de braços e me encontro mal encaixado numa pilha de pneus, atira-me ao chão. Quem está à volta guincha e diverte-se com o meu deficit de virilidade:

- Iiih, brancu tem birgunhu! [Branco tem vergonha]! – gritam e riem.

Devido à proporção das consequências, disponho de um período de tréguas. Mas dura pouco. Ela volta à carga, humilhando-me de cada vez que tenho que fazer uma força tremenda para contrariar os seus puxões.

Somos introduzidos às personalidades do evento: a tia, a prima, a avó, e, surpresa, uma bebé mulata que festeja o baptismo. Trata-se de um extra-terrestre de densa carapinha, gordíssimo, com pregas de carne a brotarem-lhe, como lombas, do pescoço e dos braços e das pernas. Apresentam-nos:

- Esta é a Madre Teresa.

- O quê?! – exclama a Francesa, espantada e divertida, não conseguindo conter o riso.

A tia responde. A bebé chama-se assim mesmo, pois claro. Primeiro nome: Madre. Segundo: Teresa.

- Olá Madre Teresa, estás boa? – cumprimentamos o peculiar humanóide.

- Olá Madre Teresa! – exclama um mulato, mais branco que preto, utilizando a bebé para se aproximar. É um sujeito seboso, daqueles que falam a cinco centímetros da nossa cara (um close-talker, diria o Seinfeld), que gostam de pespegar as mãos exsudadas nos ombros e costas alheios como manifestação de proximidade. Tem as sobrancelhas aos traços, trilhados com gillette, que me infligem um inevitável instante de nostalgia da minha adolescência, passada a fugir a tipos com códigos de barras como toldos oculares. Quase de imediato, está, claro, a tentar meter conversa com a Francesca. Desde que ela chegou a África que eu e o André perdemos quase todo o nosso protagonismo. Inesperadamente, distrai-se: nasceu em Chelas, veio para a Guiné com doze, e assim que percebe que eu e o André somos lisboetas delira com a possibilidade de poder usar e abusar de um discurso em que só diz: bué, guita, cheta, fixe, coca e damas.

Burburinho, rebuliço, agitação. Os bolos chegaram. Estão na mesa. Aproximamo-nos. Dois ou três fotógrafos contratados fazem pulsar os diafragmas mecânicos. Uma senhora magra e de gestos delicados, no final dos seus cinquentas, reza um Pai-nosso. Cai então um silêncio solene sobre o grande círculo de pessoas, raro em qualquer situação social em África.

- Ámen. – remata-se, em uníssono. E ao ouvido alguém me explica que a senhora não regula bem da bola e que está possuída por espíritos.

Quando volto a olhar para a mesa, os bolos desapareceram. Foram levados para dentro antes que as mãos tivessem tempo de se precipitar. Afinal eram só para a fotografia.

Entretanto, a festa animou-se. Não sei precisar porquê, mas é sempre assim: em África sente-se recorrentemente esse indício não palpável de descontrolo iminente. Há um cão a correr atrás de um porco, um homem que tomba para o lado embora dez minutos antes me parecesse sóbrio. Uma velhota com um rabo prodigioso articula as duas nádegas de carne separadamente. Um verdadeiro exército de gaiatas presta-se, um tempo perdido, a imitá-la. Qualquer dia a Madre Teresa também estará a abanar assim o rabo.

A dança dos outros, que não é dança, que é apenas um roçagar genital, já que mais nada no corpo mexe, acaba entretanto por levar a melhor sobre todos. Até sobre mim. Debaixo dos braços da minha auto-proclamada princesa, cujos membros perfazem três dos meus, esforço-me por aprender como se dança mantendo 90% dos músculos parados.

É então que, entre os corpos, descortino o André. Um fulano de camisa amarela segreda-lhe parágrafos em catadupa ao ouvido, agitado. Mas o que me intriga é que o André me lança expressões de incredulidade. Mais tarde, ficarei a saber que o tipo diz ser um antigo guarda pessoal do Nino que terá assistido à sua morte, e se prestara a relatar os detalhes nauseantes da fantasmagoria de suplícios a que terão sujeito o antigo presidente antes do assassinato.

Quando somos apresentados, o homem traz uma expressão de ferocidade no rosto que não consta no meu dicionário facial:

- Mataram o meu presidente, o meu presidente! – grita chorosamente, mas com alguma contenção; depois descontrola-se – Sabem o que isso quer dizer? Era o meu presidente. Nunca descansarei em vida enquanto não vingar o meu presidente.

- Tudo o que ele diz é mentira. É o vinho de caju a falar. – diz alguém.

Não sei se é mentira, se é o caju, se o que é que é. Mas nunca vi ninguém expressar tanta determinação num sentimento negativo, nunca vi ninguém tão convictamente espremido em palavras tão violentas.

- Pai Nosso, que estás no céu. Santificado seja o vosso nome… – murmura a senhora delicada, para os seus botões, como que abstraída do mundo, como que em transe.

-Essa tem o demónio. – berra o tipo, com desprezo.

- Esse mata, esse mata. É ladrão, é aldrabão. – começa a berrar histericamente a que dançava comigo, abrindo os olhos – Vocês vão-se embora, senão vocês vão morrer. Vocês vão morrer!

Nós entreolhamo-nos nervosamente, atónitos, ainda a perguntarmo-nos o que está a acontecer.

- Vocês vão chegar bem. Vocês vão chegar bem. – diz-nos o homem – Não vão morrer – e estende-me a mão – Confias em mim? Sou vosso amigo…

- Não dês a mão a esse homem. – berram algumas mulheres, retendo-me o braço.

- Vocês vão chegar bem. Vão chegar bem a casa. Eu sou vosso amigo. – continua o tipo; mas a voz adquiriu um tom agressivo – Confias em mim ou não? – como quem diz, apertas-me a mão ou não. – e o braço insinua-se entre os corpos, como uma serpente, insistente, insistente.

Debaixo da confusão que, saberemos mais tarde, acabará ao soco, abandonamos a festa de primeira comunhão.

II

Existe uma certa cedência ao facilitismo literário quando o relato de uma festa de índole religiosa termina com um volte-face assim descrito. É pornográfico e gratuito porque é sensacionalista. É perigoso porque quando se descrevem lugares distantes é necessário ter a sensibilidade para não deixar que episódios esporádicos confirmem preconceitos estabelecidos.

Por isso, vejo-me obrigado a explicar: o texto é apenas sobre o inesperado (mesmo que isso soe redutor). À distância também eu creio que fosse só caju. Mas o «inesperado», esse, é uma portentosa e incrível constante.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Rio Grande de Buba II

Nado no odor a lodo para ver se me resolvo. Dentro das águas turvas do rio, angustia-me a ideia de não saber o que está por baixo. Sei que não há nada e às vezes finjo ignorá-lo. Proponho-me grandes distâncias, longas permanências na água ou perpétuos boiares – e eu que não bóio lá muito bem; pesam-me sempre os pés, magros demais para flutuarem – pequenas penitências que devem durar até ao medo se ir embora. Mas o pé toca numa alga no fundo, a corrente faz-me roçar um saco de plástico nas costas, e o terror regressa, sempre.

A maré vaza e emerge uma majestosa Atlântida de lama. No centro da colossal garganta de barro fofo, escorre um fio de água tímido. Das inúmeras fissuras das paredes colossais da cidade de terra, rastejam cá para fora os seus habitantes, e o canal castanho reveste-se de uma imensa multidão de seres minúsculos. São milhões de caranguejos, de um cinzento azulado, tornados assimétricos por uma pinça desproporcionadamente grande, com a qual acenam uns aos outros. Travo conhecimento com estas criaturas estranhas e aprendo a gostar delas. No seu mundo em miniatura, que me comove, estes sujeitinhos imbecis, estes crustáceos sentimentais, não fazem outra coisa senão dizerem adeus. Rio-me, bem-disposto.

As impressionantes muralhas gordurosas terminam nos mangais, enxames de plantas caminhantes, plantas com andas curvas, plantas com pernas de insecto em vez de troncos, como se sofressem de baixos-ventres desfeitos em chuva de madeira, arqueados como sombrinhas de esparguete. A composição semi-perpendicular ladeia a garganta de códigos de barras corcundas, ainda antes de explodir em festins de clorofila, e parece proteger os seus habitantes.

Ao longe, nas margens argilosas, passeiam-se homens que se chamam Embalós e Bubacares, o que às vezes me parece mentira. Enterram-se na água barrenta, apenas chegados desse complicado trajecto onde tentaram escapar a quarteirões de ar empapados do reverberar incansável dos geradores de electricidade que tudo chocalham. Onde procuraram contornar as labaredas de calor que se levantam da terra, atiçadas pelo dardejar dos raios solares. Por todo o lado as cabras balem como se falassem, como se fossem pessoas. Ao fundo, há miúdos e mais miúdos, como um exército de servos em miniatura, numa azáfama compenetrada e constante à volta de noras metálicas a bombear o sub-solo, como punções feitas à terra. Como se dali extraíssem ouro.

Um cargueiro abandonado, um mastodonte de ferro, apoiado no leito cheio, no dorso da cidade submersa que desperta duas vezes por dia, insufla-me a pulsão mimética de ficar aqui deitado perpetuamente, ora húmido, ora ressequido pelo sol, sujeito ao ofegar do Rio Grande de Buba.

Ao fundo, um fumo verde-escuro, ou mesmo negro, lodoso, ascende da moldura viscosa de árvores e lianas da floresta, como colunas de chuva ao longe no mar a percorrerem o sentido inverso, em direcção ao céu. Assusta. Como se toda a floresta se estivesse a esmigalhar, a dissolver em partículas, esvaindo-se no ar.

O rio volta a descer e o horizonte readquire um rodapé castanho e viscoso. No planeta das miniaturas, os olhos esbugalhados de lémures das criaturas que acenam, presos na extremidade de antenas, fitam-me. Lamento o destino trágico dos crustáceos simpáticos. Lamento-o.

Já consigo imaginar estas criaturas desequilibradas, sem reacção, sem rebeldia, sem protesto, dentro da pá da retroescavadora ainda a dizerem adeus, feitas idiotas, porque não sabem fazer mais nada.

E as paredes terminam nos mangais, plantas com mil pés hécticos e barulhentos. Levanto-me e respondo ao adeus. Vou-me embora antes que o porto de águas profundas traga mais cachalotes de metal.

Da roupa já não me sai este cheiro a lodo. Apetecia-me dormir durante dez dias. Não sou ecologista, nem sequer acho que a natureza tenha alguma hipótese. Li demasiada ficção científica. Mas o desaparecimento deste lugar mete-me nojo. Tanto que, de vez em quando, me esqueço da minha própria agonia. Ah, já me lembro! É por isto que se arranjam causas, não é?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Corpos porosos

O Sr. Horácio, director do parque natural onde estamos hospedados, é o exacto correspondente humano físico a um orangotango bonacheirão, observação que é exacta e não tem que ter nada de depreciativo. É da etnia bijagó, e embora seja geral e paradoxalmente sisudo, basta puxar pelo homem para que comece a discorrer num rol interminável de histórias e opiniões, com a visão única de qualquer guineense que, do peculiar observatório que constitui a sua terra natal, não se coíba de opinar sobre a actualidade internacional.

- Xiii – o Sr. Horácio intercala recorrentemente o seu falar com esta interjeição, sonorizada em falsete – E eu vi ali aquele vídeo lá mesmo num computador de uns brasileiros. Mas aquilo não era no Brasil, não. E um elefante está lá com um homem e de repente vira-se de costas e dá-lhe um coice e o homem cai no chão sem sentidos. E depois o elefante avançou e as pessoas aproximaram-se do homem mas logo o elefante voltou e todo o mundo fugiu… Xiii. Pô pô pô. E o bicho voltou e deu mais dois pontapés no “home”. Xiii. Aquilo eu nem sei o que foi. – e o Sr. Horácio interrompe o discurso; franze muito a expressão, como que intrigado e abana a cabeça – Xiii – faz nova pausa, sério, escancarando as pálpebras dos olhos grandes – Aquilo… Aquilo, aquilo não era o elefante. – e conclui, com um sussurro sibilado – Era um diabo que entrou ali ou o raio…. Xiii Pô pô pô.

Umas horas mais tarde, num final de tarde quente e perfumado próprio dos trópicos, dou com o Sr. Horácio sentado no chão do alpendre da sua casa na sede do parque a relatar ao André e à Francesca mais uma das suas perplexidades:

- E o Pepe deu um pontapé no jogador. Xiii. Mas via-se mesmo que não foi assim uma coisa a quente, porque ele volta lá e dá-lhe um novo pontapé assim mesmo para lhe apanhar as costas. Entre os dois pontapés passou tempo… ele, ele, aquilo não foi a quente. Via-se que estava descontrolado. Xiii. – e o Sr. Horácio repete a expressão facial de mistério – Foi o diabo que entrou dentro dele ou coisa do género. E ele, claro, ele mesmo, o próprio Pepe, explicou à televisão depois que não sabia o que estava a fazer. Ele disse isso com estas palavras. – enfatiza o Sr. Horácio, como se o esclarecimento do Pepe fosse a prova evidente da sua tese. – Pô pô pô.

Os irans, entidades mágicas animistas da Guiné-Bissau (aparentemente trans-étnicas; não consegui obter informações mais esclarecedoras a este respeito), entram dentro das pessoas e obrigam-nas a cometer actos que não fazem parte da sua vontade. Esta interpretação africana do pontapé – do Pepe ou do elefante – lembra-me uma utopia viva: a Índia hinduísta. Um mundo onde as pessoas não são bem pessoas, onde não são esses compactos herméticos ocidentais de carne e espírito, mas canais de veiculação de deuses, corpos porosos em constante mutação, sujeitos a ventos etéreos e invisíveis, à influência dos lugares (de templos a divisões da casas), de tempos (estações, horas do dia, etc.) e dos outros homens. Essa Índia é um lugar onde a individualidade não existe com a solidez que nós estamos habituados a atribuir-lhe e onde as categorias de personalidade são menos estanques. No ideal, para fornecer um exemplo pobre, um homem não pode ser intrinsecamente simpático, egoísta e cantar bem. No máximo, é gentil para alguns, foi egoísta numa situação específica e canta bem enquanto não lhe aparecer uma laringite ou enquanto lhe durar a presente encarnação.

Não tão pronunciadamente, é certo, mas também a Guiné-Bissau parece deter ainda uma pitada de uma sabedoria antiga, ou apenas divergente, que contrasta com as sociedades ocidentais “sobre-psicologicizadas” onde um pontapé pode ser reduzido a uma personalidade com um código alfanumérico, integrado sem piedade nem esperança num cadastro ou num historial clínico. Tal como a hinduísta, esta epistemologia exótica do Sr. Honório relembra-me que há componentes de transitoriedade, temporalidade e relatividade indissociáveis da existência e das acções humanas (ou não humanas). Dos coices dos elefantes aos pontapés do Pepe.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Os idiotas

I.

No desconcertante “Os idiotas”, de Lars Von Trier, um grupo de adultos procura a redenção na estupidificação, numa certa primitivização do ser, na redução da comunicação a eructações, onomatopeias, ruídos indistintos, frases elementares, na infantilização do comportamento. Aniquilando todas as perspectivas de sucesso social e profissional, subvertendo todas as regras de comportamento numa sociedade de classe média europeia, procuram, de forma por vezes comovedora, outras chocante, a quimera da liberdade, que talvez possa ser encontrada – nunca se chega a saber – algures depois da supressão de todos os constrangimentos sociais e superegoicos.

II.

No lugar mais inesperado, uma praia paradisíaca de areia fina ao pé da pequena aldeia de Caçumba a poucos quilómetros da Guiné-Conacry, o 1º de Maio é celebrado numa atmosfera que consagra o desaparecimento das regras e em que os homens se reduzem a espasmos.

Durante três dias, a música é apenas interrompida às cinco da manhã, para dormir. Recomeça às seis. A essa hora, há quem tenha dormitado, outros não, mas já está tudo a beber Super Bock, Cristal e, sobretudo, vinho de caju.

Às sete, não me deitara eu nem quatro horas antes, sou acordado por um homem que me faz festas no crânio e me diz, com cândida inocência, “somos todos amigos”.

- Desculpe, desculpe, mas tenho que dormir mais. – digo, excessivamente sério, meio a sonhar.

- Mas a festa já começou… – retorque o homem, birrento, desapontado – Tem que vir dançar.

Levanto-me, resignado. De qualquer forma, a música e o rumor dos geradores não me deixariam dormir muito mais tempo. Saio da tenda. Lá fora, persiste o mesmo tumulto energético da noite anterior. Mesmo a cambalear de sono, sou alvejado por insistências histéricas para emborcar vinho de mesa de pacote e dançar. Humanamente impossível, penso. Quero um prato de Corn Flakes e uma maçã sumarenta. Como será que eles conseguem?

Sento-me junto de uma criança abraçada a uma Super Bock. Esta imagem não daria uma boa publicidade, penso. Do meu outro lado de uma palmeira, está um homem a degolar um porco que guincha, embora o volume da música lhe abafe o desespero. Aflige-me não ouvir o porco e não o contrário. Observo a pista de dança. Enquanto se agitam, ao molho, ou entregues a indescritíveis delírios corporais individuais, as pessoas atiram-se para o chão, mandam os outros à areia, rebolam, riem. Há um homem que apalpa o rabo espetado de uma rapariga curvada sob uma panela numa fogueira. Puxa-lhe as calças, depois puxa-lhe as cuecas e limita-se a rir. Ela coloca a roupa de volta no sítio e limita-se a esboçar um leve sorriso zangado, que seria apropriado se ele lhe tivesse roubado um gancho do cabelo por brincadeira, por exemplo.

Há um babuíno bebé amarrado a uma árvore. Chamam-lhe príncipe Carlos porque de facto é com ele que o animal se parece. Dispararam sobre a mãe e ela, em fuga, largou a cria. Vou ter com o primata e seguro-o nos braços, tentando dar-lhe de mamar com o biberão. De imediato, há dois bêbados que se prestam a atormentar o bicho, dando-lhe safanões e atirando-lhe areia para o rosto. É uma brincadeira e não é que o acto seja grave ou perturbe por aí além o próprio animal mas faz-me impressão. Maçam o macaco da mesma forma que me vieram acordar a mim. Não é sequer coisa de bêbado. É comportamento de quem se remeteu conscientemente a um autismo primário profundo.

III.

O calor aperta e as dezenas e dezenas de pessoas do nosso grupo, composto essencialmente por trabalhadores de uma missão católica mais a Norte, escorregam eventualmente para o mar, que está a poucas dezenas de metros de distância. A música chega lá. Na água, dançam a raspar os genitais e brincam uns com os outros de forma infantil: puxam os cabelos, fazem amonas, fazem tropeçar os outros. Muitas vezes, os homens brincam com os próprios homens. É bizarro observar os troncos musculados, a famigerada virilidade africana, propagandeada pelos próprios, reduzida à teatralidade emocional destas brincadeiras. Aos dois e aos três e aos quatro, os homens abraçam-se uns aos outros, comovidos, a gritar, a gemer, às vezes quase a chorar, bradando a sua amizade.

Dentro de água, longe, dois casais escapulidos com dois pacotes de Monte do Vaqueiro dão de beber uns aos outros. O vinho escorre-lhes da boca, pelos queixos, pelos corpos, e dilui-se na água, em cuja profundidade os corpos se apalpam. Mas isto não é uma orgia. É outra coisa. Só não existe uma palavra no dicionário para ela.

Desço à areia e só então me apercebo da dimensão do evento. Largas centenas de palitos negros em movimento preenchem a praia a perder de vista. Em todos parece palpitar a mesma agitação. Tenho a fugaz impressão de ter saltado para outra realidade. Isto já não se parece com nada que me seja familiar.

Sou abordado por um velho de calções de banho e óculos escuros:

- Nós… muitos obrigados a vós… Sermos muitos amigos porque nós africanos, os futuros… e estamos aqui muito felizes – treme de comoção – porque estamos juntos – engasga-se – e os ares… – e abre os braços, e eu sei que pretende traduzir o mundo, a realidade, o todo – e Deus e…não consegue terminar; abraça-me, esmagando-me contra ele e grita-me ao ouvido – Eu gosto muito de você.

IV.

Duas estacas seguram uma rede de pesca entre o areal e um ponto na água uns cinquenta metros adiante. É uma arte de pesca elementar. A rede, estática, plana, limita-se a prender os peixes à sua passagem. Mesmo assim, ficam retidos aos magotes e são suficientes para constituir parte significativa da alimentação do nosso grupo de trinta pessoas.

Um bando dos nossos decide percorrer a rede sob o sol abrasador para retirar as tainhas e os atuns para dentro de um saco de serapilheira. Junto-me a eles. O grupo é composto por um fornecedor de vinho de caju, que vai despejando uma antiga embalagem de amaciador de roupa nas goelas abertas destes pescadores improvisados. Depois há uma preta escultural, que carrega o saco, e que veste umas cuecas de renda fio dental e tens os enormes seios espalmados por um soutien também de renda, espremidos num decote transbordante. Chamam-lhe Fatinha. É lindíssima. Olho para ela, com um sorriso aparvalhado, e ela abre a boca para me devolver o sorriso, mas faltam-lhe três dentes. Assusto-me. Há um tipo escanzelado, de óculos escuros, que vai em cima de um colchão insuflável cor-de-rosa. Como o capitão de um barco, espreme ordens esganiçadas e entusiasmadas para todo o lado mas tropeça de boca para dentro de água sempre que, a partir do colchão, tenta manusear a rede a demasiada profundidade. Com este método, atrapalha todo o processo e levanta protestos. Defende-se começando a cantar. Ao fazê-lo, provoca como que uma hipnose comunitária instantânea. Um coro subitamente improvisado, grave, acompanha-o:

Cadju dés anu, conta birdadi. (Caju com dez anos, conta a verdade)

Só bibi cadju. (Só bebe caju)

Só bibi cadju.

Brancu leva coco, fica cu iagu. (O branco leva o coco [noz do caju] Nós ficamos com a água [o vinho] )

Só bibi cadju.

Só bibi cadju.

Abstraídas as almas com a cantoria, o magrinho de voz esganiçada repete as mesmas ordens, os mesmos disparates, emaranhando a malha da rede, provocando danos que darão um trabalhão a reparar. Os protestos recomeçam.

Quando a coisa esmorece – que esta combinação desgastante entre álcool, movimento e sol abrasador, mitiga as ideias – a vontade de diversão supera, ainda e todavia, o cansaço, encontrando a sua válvula de escape em processos ainda mais elementares, os únicos que as cabeças cansadas ainda são capazes de acompanhar. Alguém urra, como um demónio, e começa tudo a urrar. Outro, faz uma associação superiormente básica de ideias, e começa tudo a rir. Alguém finge de tubarão na água e as mulheres guincham de susto. Entusiasmados, os homens mimetizam bestas aquáticas com ferocidade crescente. Os ocupantes de bóias e colchões flutuantes caiem, os outros tombam também. Emergem à superfície, debilitados, tossindo a água engolida, sem forças para se manter de pé, a rir que nem uns perdidos.

V.

Quando volto à praia, o Paulino leva ao extremo uma discussão sem fundamento:

- És palhaço. – diz o outro.

- Não sou palhaço. – diz o Paulino.

- És palhaço. – diz o outro.

- Não sou palhaço. – diz o Paulino. Vira-se para nós e pergunta, zangado:

- Ele está a dizer que eu sou palhaço. Vocês acham que eu sou palhaço?

- Não. – respondo eu.

- E tu? O que é que achas? – pergunta ao André.

- Os palhaços estão no circo – responde o André.

- Vês. – diz o Paulino ao outro.

- Tens o cérebro pequeno. – diz-lhe o outro.

- Não tenho nada o cérebro pequeno.

E a disputa prossegue nestes termos. Sem princípio, sem fim, sem propósito, sem justificação, mas nunca sem empenho.

VI.

Distraio-me com uma rapariga, que cai no chão, num ataque de espasmos. Um bando de bêbados e destes homens-criança rodeia-a. Grita-se que foi possuída por um iran. Um iran é um espírito que normalmente oferece um tesouro – um brinco, um colar, etc. – em troca de um acto de malvadez. Pode detectar-se pelo punho fechado dos possuídos, que encerra o tesouro oferecido, e que é invisível aos olhos de todos menos do possuído. De facto, a rapariga tem o braço tenso e o punho vibrantemente fechado. Duas mulheres arrastam-na pela areia enquanto a sovam para que o iran a abandone. Um jipe conduzido por bêbados irrompe pela zona das tendas adentro, a uma velocidade estonteante, e evita os outros bêbados, as tendas e as palmeiras sem que eu perceba bem como. Metem a rapariga dentro do carro e arrancam em direcção a um curandeiro.

VII.

O dia está a terminar – mas a festa não – e sinto-me exausto. Do mar, cresce agora uma brisa fresca e sinto o chamamento do conforto quente da lareira. Abrigo-me dentro da redoma de calor com o Príncipe Carlos no colo. Uma velha, talvez a personagem mais serena de toda esta praia, está há dois dias debruçada sobre um caldeirão, como uma bruxa, sempre agarrada à sua colher de pau gigante, esculpida de improviso com uma catana. É ela que assa o peixe, que vai buscar a lenha, que ateia o fogo, que corta os vegetais, que alimenta as trinta pessoas do nosso grupo. Olho à minha volta. Retiro um prazer profundo do meu momento de contemplação.

No centro da “arena de baile”, um grupo de homens dança expressiva e criativamente, mexendo cada músculo do corpo e do rabo e acabam por cair em bloco no chão. Um deles aterra em cima de uma rapariga e põe-se a simular agressivamente uma cópula. São rodeados por dezenas de pessoas que riem e o par, entusiasmado com a projecção, torna o acto ainda mais expressivo. Os caídos tentam levantar-se, mas muitos não conseguem. Os corpos sacudidos pesam-lhes, os braços são magneticamente atraídos para o chão…

Estes três dias são um mesmo e único instante imutável, cíclico, repetido à exaustão.

VIII.

Há dimensões de liberdade que só podem ser encontradas depois da destruição radical de todas as regras. Ao pretenso hedonismo europeu falta-lhe uma descontracção mais ampla, a verdadeira experiência do impulsivo e do espontâneo. Porém, mesmo sabendo-o, nestes dias, nunca me abandonei a esta gente. Vi, diante dos meus olhos, a possibilidade dessa espécie de viagem. O comboio no cais e eu com o bilhete na mão. No entanto, nunca me apeteceu. Não seria incapaz de partir, mas raramente me senti tão europeu como naqueles dias.

Uma trivialidade: é curioso como a viagem, nos seus vértices mais extremos, nas suas paragens e estações mais bizarras, nos apresenta sempre um mesmo dilema recorrente: aquele que nos separa a nós do outro.