sexta-feira, 24 de julho de 2009

A primeira comunhão


Festa de rua em Bissau. Fotografia de Francesca Fedi.

No meio de um caminho rubro e poeirento, em face da casinha térrea de família, no centro de uma Bissau que é uma estufa impregnada de vapor de água, participamos na festa familiar que sucede ao ritual litúrgico.

Cá fora, foi posta uma mesa de festa, aparentemente destinada a comes e bebes, mas está vazia. Pouco importa. Eu e o André deliciamo-nos na mesma, a observar as raparigas, negras como alcatrão, a dançarem ao som da batida, expelida por duas colunas instaladas nas janelas da casa. Muitas delas usam perucas. Tanto na cor – sobretudo roxo, vermelho e loiro – como no tipo de cabelo, extremamente liso, quase escorrido, o cabelo é uma espécie de versão hiper-europeia (impossível) do nosso próprio cabelo.

Uma delas cobiça-me. Já enfrascada, vem, de vez em quando, puxar-me pelos braços para ir dançar com ela para a pista de dança, que é o mesmo que dizer para o meio da rua. Confesso que o seu corpo de proporções avantajadas, agitando-se a velocidade improvável, me assusta. À terceira insistência, ganha confiança e, como tem mais força de braços e me encontro mal encaixado numa pilha de pneus, atira-me ao chão. Quem está à volta guincha e diverte-se com o meu deficit de virilidade:

- Iiih, brancu tem birgunhu! [Branco tem vergonha]! – gritam e riem.

Devido à proporção das consequências, disponho de um período de tréguas. Mas dura pouco. Ela volta à carga, humilhando-me de cada vez que tenho que fazer uma força tremenda para contrariar os seus puxões.

Somos introduzidos às personalidades do evento: a tia, a prima, a avó, e, surpresa, uma bebé mulata que festeja o baptismo. Trata-se de um extra-terrestre de densa carapinha, gordíssimo, com pregas de carne a brotarem-lhe, como lombas, do pescoço e dos braços e das pernas. Apresentam-nos:

- Esta é a Madre Teresa.

- O quê?! – exclama a Francesa, espantada e divertida, não conseguindo conter o riso.

A tia responde. A bebé chama-se assim mesmo, pois claro. Primeiro nome: Madre. Segundo: Teresa.

- Olá Madre Teresa, estás boa? – cumprimentamos o peculiar humanóide.

- Olá Madre Teresa! – exclama um mulato, mais branco que preto, utilizando a bebé para se aproximar. É um sujeito seboso, daqueles que falam a cinco centímetros da nossa cara (um close-talker, diria o Seinfeld), que gostam de pespegar as mãos exsudadas nos ombros e costas alheios como manifestação de proximidade. Tem as sobrancelhas aos traços, trilhados com gillette, que me infligem um inevitável instante de nostalgia da minha adolescência, passada a fugir a tipos com códigos de barras como toldos oculares. Quase de imediato, está, claro, a tentar meter conversa com a Francesca. Desde que ela chegou a África que eu e o André perdemos quase todo o nosso protagonismo. Inesperadamente, distrai-se: nasceu em Chelas, veio para a Guiné com doze, e assim que percebe que eu e o André somos lisboetas delira com a possibilidade de poder usar e abusar de um discurso em que só diz: bué, guita, cheta, fixe, coca e damas.

Burburinho, rebuliço, agitação. Os bolos chegaram. Estão na mesa. Aproximamo-nos. Dois ou três fotógrafos contratados fazem pulsar os diafragmas mecânicos. Uma senhora magra e de gestos delicados, no final dos seus cinquentas, reza um Pai-nosso. Cai então um silêncio solene sobre o grande círculo de pessoas, raro em qualquer situação social em África.

- Ámen. – remata-se, em uníssono. E ao ouvido alguém me explica que a senhora não regula bem da bola e que está possuída por espíritos.

Quando volto a olhar para a mesa, os bolos desapareceram. Foram levados para dentro antes que as mãos tivessem tempo de se precipitar. Afinal eram só para a fotografia.

Entretanto, a festa animou-se. Não sei precisar porquê, mas é sempre assim: em África sente-se recorrentemente esse indício não palpável de descontrolo iminente. Há um cão a correr atrás de um porco, um homem que tomba para o lado embora dez minutos antes me parecesse sóbrio. Uma velhota com um rabo prodigioso articula as duas nádegas de carne separadamente. Um verdadeiro exército de gaiatas presta-se, um tempo perdido, a imitá-la. Qualquer dia a Madre Teresa também estará a abanar assim o rabo.

A dança dos outros, que não é dança, que é apenas um roçagar genital, já que mais nada no corpo mexe, acaba entretanto por levar a melhor sobre todos. Até sobre mim. Debaixo dos braços da minha auto-proclamada princesa, cujos membros perfazem três dos meus, esforço-me por aprender como se dança mantendo 90% dos músculos parados.

É então que, entre os corpos, descortino o André. Um fulano de camisa amarela segreda-lhe parágrafos em catadupa ao ouvido, agitado. Mas o que me intriga é que o André me lança expressões de incredulidade. Mais tarde, ficarei a saber que o tipo diz ser um antigo guarda pessoal do Nino que terá assistido à sua morte, e se prestara a relatar os detalhes nauseantes da fantasmagoria de suplícios a que terão sujeito o antigo presidente antes do assassinato.

Quando somos apresentados, o homem traz uma expressão de ferocidade no rosto que não consta no meu dicionário facial:

- Mataram o meu presidente, o meu presidente! – grita chorosamente, mas com alguma contenção; depois descontrola-se – Sabem o que isso quer dizer? Era o meu presidente. Nunca descansarei em vida enquanto não vingar o meu presidente.

- Tudo o que ele diz é mentira. É o vinho de caju a falar. – diz alguém.

Não sei se é mentira, se é o caju, se o que é que é. Mas nunca vi ninguém expressar tanta determinação num sentimento negativo, nunca vi ninguém tão convictamente espremido em palavras tão violentas.

- Pai Nosso, que estás no céu. Santificado seja o vosso nome… – murmura a senhora delicada, para os seus botões, como que abstraída do mundo, como que em transe.

-Essa tem o demónio. – berra o tipo, com desprezo.

- Esse mata, esse mata. É ladrão, é aldrabão. – começa a berrar histericamente a que dançava comigo, abrindo os olhos – Vocês vão-se embora, senão vocês vão morrer. Vocês vão morrer!

Nós entreolhamo-nos nervosamente, atónitos, ainda a perguntarmo-nos o que está a acontecer.

- Vocês vão chegar bem. Vocês vão chegar bem. – diz-nos o homem – Não vão morrer – e estende-me a mão – Confias em mim? Sou vosso amigo…

- Não dês a mão a esse homem. – berram algumas mulheres, retendo-me o braço.

- Vocês vão chegar bem. Vão chegar bem a casa. Eu sou vosso amigo. – continua o tipo; mas a voz adquiriu um tom agressivo – Confias em mim ou não? – como quem diz, apertas-me a mão ou não. – e o braço insinua-se entre os corpos, como uma serpente, insistente, insistente.

Debaixo da confusão que, saberemos mais tarde, acabará ao soco, abandonamos a festa de primeira comunhão.

II

Existe uma certa cedência ao facilitismo literário quando o relato de uma festa de índole religiosa termina com um volte-face assim descrito. É pornográfico e gratuito porque é sensacionalista. É perigoso porque quando se descrevem lugares distantes é necessário ter a sensibilidade para não deixar que episódios esporádicos confirmem preconceitos estabelecidos.

Por isso, vejo-me obrigado a explicar: o texto é apenas sobre o inesperado (mesmo que isso soe redutor). À distância também eu creio que fosse só caju. Mas o «inesperado», esse, é uma portentosa e incrível constante.

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