sexta-feira, 17 de julho de 2009

Os idiotas

I.

No desconcertante “Os idiotas”, de Lars Von Trier, um grupo de adultos procura a redenção na estupidificação, numa certa primitivização do ser, na redução da comunicação a eructações, onomatopeias, ruídos indistintos, frases elementares, na infantilização do comportamento. Aniquilando todas as perspectivas de sucesso social e profissional, subvertendo todas as regras de comportamento numa sociedade de classe média europeia, procuram, de forma por vezes comovedora, outras chocante, a quimera da liberdade, que talvez possa ser encontrada – nunca se chega a saber – algures depois da supressão de todos os constrangimentos sociais e superegoicos.

II.

No lugar mais inesperado, uma praia paradisíaca de areia fina ao pé da pequena aldeia de Caçumba a poucos quilómetros da Guiné-Conacry, o 1º de Maio é celebrado numa atmosfera que consagra o desaparecimento das regras e em que os homens se reduzem a espasmos.

Durante três dias, a música é apenas interrompida às cinco da manhã, para dormir. Recomeça às seis. A essa hora, há quem tenha dormitado, outros não, mas já está tudo a beber Super Bock, Cristal e, sobretudo, vinho de caju.

Às sete, não me deitara eu nem quatro horas antes, sou acordado por um homem que me faz festas no crânio e me diz, com cândida inocência, “somos todos amigos”.

- Desculpe, desculpe, mas tenho que dormir mais. – digo, excessivamente sério, meio a sonhar.

- Mas a festa já começou… – retorque o homem, birrento, desapontado – Tem que vir dançar.

Levanto-me, resignado. De qualquer forma, a música e o rumor dos geradores não me deixariam dormir muito mais tempo. Saio da tenda. Lá fora, persiste o mesmo tumulto energético da noite anterior. Mesmo a cambalear de sono, sou alvejado por insistências histéricas para emborcar vinho de mesa de pacote e dançar. Humanamente impossível, penso. Quero um prato de Corn Flakes e uma maçã sumarenta. Como será que eles conseguem?

Sento-me junto de uma criança abraçada a uma Super Bock. Esta imagem não daria uma boa publicidade, penso. Do meu outro lado de uma palmeira, está um homem a degolar um porco que guincha, embora o volume da música lhe abafe o desespero. Aflige-me não ouvir o porco e não o contrário. Observo a pista de dança. Enquanto se agitam, ao molho, ou entregues a indescritíveis delírios corporais individuais, as pessoas atiram-se para o chão, mandam os outros à areia, rebolam, riem. Há um homem que apalpa o rabo espetado de uma rapariga curvada sob uma panela numa fogueira. Puxa-lhe as calças, depois puxa-lhe as cuecas e limita-se a rir. Ela coloca a roupa de volta no sítio e limita-se a esboçar um leve sorriso zangado, que seria apropriado se ele lhe tivesse roubado um gancho do cabelo por brincadeira, por exemplo.

Há um babuíno bebé amarrado a uma árvore. Chamam-lhe príncipe Carlos porque de facto é com ele que o animal se parece. Dispararam sobre a mãe e ela, em fuga, largou a cria. Vou ter com o primata e seguro-o nos braços, tentando dar-lhe de mamar com o biberão. De imediato, há dois bêbados que se prestam a atormentar o bicho, dando-lhe safanões e atirando-lhe areia para o rosto. É uma brincadeira e não é que o acto seja grave ou perturbe por aí além o próprio animal mas faz-me impressão. Maçam o macaco da mesma forma que me vieram acordar a mim. Não é sequer coisa de bêbado. É comportamento de quem se remeteu conscientemente a um autismo primário profundo.

III.

O calor aperta e as dezenas e dezenas de pessoas do nosso grupo, composto essencialmente por trabalhadores de uma missão católica mais a Norte, escorregam eventualmente para o mar, que está a poucas dezenas de metros de distância. A música chega lá. Na água, dançam a raspar os genitais e brincam uns com os outros de forma infantil: puxam os cabelos, fazem amonas, fazem tropeçar os outros. Muitas vezes, os homens brincam com os próprios homens. É bizarro observar os troncos musculados, a famigerada virilidade africana, propagandeada pelos próprios, reduzida à teatralidade emocional destas brincadeiras. Aos dois e aos três e aos quatro, os homens abraçam-se uns aos outros, comovidos, a gritar, a gemer, às vezes quase a chorar, bradando a sua amizade.

Dentro de água, longe, dois casais escapulidos com dois pacotes de Monte do Vaqueiro dão de beber uns aos outros. O vinho escorre-lhes da boca, pelos queixos, pelos corpos, e dilui-se na água, em cuja profundidade os corpos se apalpam. Mas isto não é uma orgia. É outra coisa. Só não existe uma palavra no dicionário para ela.

Desço à areia e só então me apercebo da dimensão do evento. Largas centenas de palitos negros em movimento preenchem a praia a perder de vista. Em todos parece palpitar a mesma agitação. Tenho a fugaz impressão de ter saltado para outra realidade. Isto já não se parece com nada que me seja familiar.

Sou abordado por um velho de calções de banho e óculos escuros:

- Nós… muitos obrigados a vós… Sermos muitos amigos porque nós africanos, os futuros… e estamos aqui muito felizes – treme de comoção – porque estamos juntos – engasga-se – e os ares… – e abre os braços, e eu sei que pretende traduzir o mundo, a realidade, o todo – e Deus e…não consegue terminar; abraça-me, esmagando-me contra ele e grita-me ao ouvido – Eu gosto muito de você.

IV.

Duas estacas seguram uma rede de pesca entre o areal e um ponto na água uns cinquenta metros adiante. É uma arte de pesca elementar. A rede, estática, plana, limita-se a prender os peixes à sua passagem. Mesmo assim, ficam retidos aos magotes e são suficientes para constituir parte significativa da alimentação do nosso grupo de trinta pessoas.

Um bando dos nossos decide percorrer a rede sob o sol abrasador para retirar as tainhas e os atuns para dentro de um saco de serapilheira. Junto-me a eles. O grupo é composto por um fornecedor de vinho de caju, que vai despejando uma antiga embalagem de amaciador de roupa nas goelas abertas destes pescadores improvisados. Depois há uma preta escultural, que carrega o saco, e que veste umas cuecas de renda fio dental e tens os enormes seios espalmados por um soutien também de renda, espremidos num decote transbordante. Chamam-lhe Fatinha. É lindíssima. Olho para ela, com um sorriso aparvalhado, e ela abre a boca para me devolver o sorriso, mas faltam-lhe três dentes. Assusto-me. Há um tipo escanzelado, de óculos escuros, que vai em cima de um colchão insuflável cor-de-rosa. Como o capitão de um barco, espreme ordens esganiçadas e entusiasmadas para todo o lado mas tropeça de boca para dentro de água sempre que, a partir do colchão, tenta manusear a rede a demasiada profundidade. Com este método, atrapalha todo o processo e levanta protestos. Defende-se começando a cantar. Ao fazê-lo, provoca como que uma hipnose comunitária instantânea. Um coro subitamente improvisado, grave, acompanha-o:

Cadju dés anu, conta birdadi. (Caju com dez anos, conta a verdade)

Só bibi cadju. (Só bebe caju)

Só bibi cadju.

Brancu leva coco, fica cu iagu. (O branco leva o coco [noz do caju] Nós ficamos com a água [o vinho] )

Só bibi cadju.

Só bibi cadju.

Abstraídas as almas com a cantoria, o magrinho de voz esganiçada repete as mesmas ordens, os mesmos disparates, emaranhando a malha da rede, provocando danos que darão um trabalhão a reparar. Os protestos recomeçam.

Quando a coisa esmorece – que esta combinação desgastante entre álcool, movimento e sol abrasador, mitiga as ideias – a vontade de diversão supera, ainda e todavia, o cansaço, encontrando a sua válvula de escape em processos ainda mais elementares, os únicos que as cabeças cansadas ainda são capazes de acompanhar. Alguém urra, como um demónio, e começa tudo a urrar. Outro, faz uma associação superiormente básica de ideias, e começa tudo a rir. Alguém finge de tubarão na água e as mulheres guincham de susto. Entusiasmados, os homens mimetizam bestas aquáticas com ferocidade crescente. Os ocupantes de bóias e colchões flutuantes caiem, os outros tombam também. Emergem à superfície, debilitados, tossindo a água engolida, sem forças para se manter de pé, a rir que nem uns perdidos.

V.

Quando volto à praia, o Paulino leva ao extremo uma discussão sem fundamento:

- És palhaço. – diz o outro.

- Não sou palhaço. – diz o Paulino.

- És palhaço. – diz o outro.

- Não sou palhaço. – diz o Paulino. Vira-se para nós e pergunta, zangado:

- Ele está a dizer que eu sou palhaço. Vocês acham que eu sou palhaço?

- Não. – respondo eu.

- E tu? O que é que achas? – pergunta ao André.

- Os palhaços estão no circo – responde o André.

- Vês. – diz o Paulino ao outro.

- Tens o cérebro pequeno. – diz-lhe o outro.

- Não tenho nada o cérebro pequeno.

E a disputa prossegue nestes termos. Sem princípio, sem fim, sem propósito, sem justificação, mas nunca sem empenho.

VI.

Distraio-me com uma rapariga, que cai no chão, num ataque de espasmos. Um bando de bêbados e destes homens-criança rodeia-a. Grita-se que foi possuída por um iran. Um iran é um espírito que normalmente oferece um tesouro – um brinco, um colar, etc. – em troca de um acto de malvadez. Pode detectar-se pelo punho fechado dos possuídos, que encerra o tesouro oferecido, e que é invisível aos olhos de todos menos do possuído. De facto, a rapariga tem o braço tenso e o punho vibrantemente fechado. Duas mulheres arrastam-na pela areia enquanto a sovam para que o iran a abandone. Um jipe conduzido por bêbados irrompe pela zona das tendas adentro, a uma velocidade estonteante, e evita os outros bêbados, as tendas e as palmeiras sem que eu perceba bem como. Metem a rapariga dentro do carro e arrancam em direcção a um curandeiro.

VII.

O dia está a terminar – mas a festa não – e sinto-me exausto. Do mar, cresce agora uma brisa fresca e sinto o chamamento do conforto quente da lareira. Abrigo-me dentro da redoma de calor com o Príncipe Carlos no colo. Uma velha, talvez a personagem mais serena de toda esta praia, está há dois dias debruçada sobre um caldeirão, como uma bruxa, sempre agarrada à sua colher de pau gigante, esculpida de improviso com uma catana. É ela que assa o peixe, que vai buscar a lenha, que ateia o fogo, que corta os vegetais, que alimenta as trinta pessoas do nosso grupo. Olho à minha volta. Retiro um prazer profundo do meu momento de contemplação.

No centro da “arena de baile”, um grupo de homens dança expressiva e criativamente, mexendo cada músculo do corpo e do rabo e acabam por cair em bloco no chão. Um deles aterra em cima de uma rapariga e põe-se a simular agressivamente uma cópula. São rodeados por dezenas de pessoas que riem e o par, entusiasmado com a projecção, torna o acto ainda mais expressivo. Os caídos tentam levantar-se, mas muitos não conseguem. Os corpos sacudidos pesam-lhes, os braços são magneticamente atraídos para o chão…

Estes três dias são um mesmo e único instante imutável, cíclico, repetido à exaustão.

VIII.

Há dimensões de liberdade que só podem ser encontradas depois da destruição radical de todas as regras. Ao pretenso hedonismo europeu falta-lhe uma descontracção mais ampla, a verdadeira experiência do impulsivo e do espontâneo. Porém, mesmo sabendo-o, nestes dias, nunca me abandonei a esta gente. Vi, diante dos meus olhos, a possibilidade dessa espécie de viagem. O comboio no cais e eu com o bilhete na mão. No entanto, nunca me apeteceu. Não seria incapaz de partir, mas raramente me senti tão europeu como naqueles dias.

Uma trivialidade: é curioso como a viagem, nos seus vértices mais extremos, nas suas paragens e estações mais bizarras, nos apresenta sempre um mesmo dilema recorrente: aquele que nos separa a nós do outro.

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