sábado, 4 de julho de 2009

Bissau – Quebo – Buba

Através das janelas da Ford Transit berram labaredas que carcomem pedaços de carne. Os vinte e muitos corpos encaixam-se uns nos outros em curiosos degraus humanos. O ombro de um encaixa no peito de outro porque o espaço disponível não chega para espalmar toda a largura das costas no banco. Nas junções, nas superfícies de contacto, os corpos misturam-se. Mas não é isso que é incomodativo. Há muitos desconfortos que o precedem. O pensamento da hiper-consciência europeia do toque, do tacto, do corpo do outro contíguo ao nosso, faz-me rir: nós pedimos desculpa quando roçamos com o nosso joelho no de outra pessoa no metro. Estamos doentes.

A transpiração é uma espécie de hemorragia, de incontinência dos poros. O importante é impedir que comece. Beber refrigerantes, sorvetes em saquinhos de plástico, Caramulo. Porque, uma vez começada, é impossível estancá-la. O copo dissolve-se. Há quem argumente exactamente o contrário invocando precisamente o mesmo. O André, por exemplo. Diz que não vale a pena beber nada porque assim que o corpo bebe, como um saco de plástico perfurado, como um ralo picotado, liberta tudo pelos poros dilatados. “Hidrologia” – diz alguém ou o meu cérebro.

As cortinas distribuídas ao longo do perímetro traseiro da camioneta foram enroladas com grossos nós para que não rocem nos corpos, sobreaquecendo-os. Como se isso fosse possível! Parecem enchidos a baloiçarem por toda a camioneta. Mas tenho quase a certeza que não estou num talho. As janelas exalam um perfume intenso e monótono a caju. Enjoa. Mistura-se com os sovacos e com os enchidos. É uma confusão.

Contra tudo e contra todos, adormeço. Enfermo ou abatido. Não há uma terceira via. Com três anos já tinha insónias no infantário, não posso estar bem.

Mas há um bebé a acordar-me. Berra, guincha, esperneia, sobressalta-me a alma.

À minha frente, há também um velho sólido, indiferente a tudo, que me assusta. Tem uma carantonha maciça, inexpressiva, primitiva. Este forno crematório e agitado de metal, que me desconjunta o esqueleto, me solta e liquefaz os ossos, a ele, não lhe faz nada. Pega no gaiato com a manápula, diz-lhe duas palavras, e a criança emudece-se, aterrorizada ou divertida.

A Ford Transit está equipada com quatro altifalantes que garantem que o kundere, a batida, o kussunde, o tina se entrelaçam com o fogo para nos envolver nesta sopinha opressiva. Agradeço. Não vim aqui à procura de experiências mainstream.

Teimoso, desfaleço novamente, massacrado por pensamentos circulares e cozidos que me formigam nas têmporas e na nuca. Ainda por cima, com um braço tombado para fora da carrinha, como uma vírgula bamba e exangue, ao menos embrulhada de gases frescos. Acordo e não o sinto. Tenho que o pescar com o outro braço.

Torno-me consciente de um fenómeno: há um objecto que, antes, me serpenteava pela perna, mas que agora a roça compassadamente, como um pêndulo de veludo. Está assim há muito tempo. Convencido de tratar-se de uma asa de uma mala, que sacoleja e me afaga a barriga da perna ao ritmo do chocalhar da carrinha, desencosto-me finalmente do banco e espreito o fundo do abismo, o poço de pernas. Lá em baixo, abre-se o sorriso envergonhado de uma menina. Lá em baixo faz escuro, só lhe vejo a dentição branca. Está entretida, para não dizer fascinada, a enrolar o seu indicador nos meus pelos das pernas. Os pretos não têm pelos, por isso deixo-a estar. Afasto o olhar e ela continua naquilo durante muito tempo.

Às tantas, os pretos acham uma galinha debaixo de um banco. Durante momentos, as agruras da cabine agitam-se. Crescem braços de lava de todo lado que atingem a ave – que esvoaça, cacareja e chia – para lhe arrancarem penas. Umas dezenas de segundos depois está tudo sossegado, como se nada fosse: a galinha, entregue à sua serenidade espasmódica, os homens e as mulheres, meditabundos, empenhados em extrair cera dos ouvidos com os cotonetes biológicos recém-adquiridos.

Matuto no velho. Há aqui homens destes. De solidez serôdia. Humanidade feita de aço, lavrado e esgravatado pelo tempo, é certo, mas duradouro e, essencialmente, coeso até ao último fôlego. Não abundam rostos assim na minha cidade. Os negros têm a pele opaca. A nossa é branca, é quebradiça, é menos espessa, é pouco elástica. Nós temos pele onde sobressai o sangue pisado, pele que é janela, transparência, para as entranhas apodrecidas, para as raízes inflamadas das veias. Em vez de aço, embala uma carne mole e flácida. A velhice pálida é mais decadente. As mulheres, em particular. As velhas brancas far-me-ão impressão a partir de hoje.

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