quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Parque

No Sul da Guiné-Bissau, trabalhei durante cerca de vinte dias na sede de um parque natural, realizando um relatório ambiental sobre a construção de um porto marítimo.

Na sede do parque, composta por três casas à beira do Rio Grande de Buba, fui encontrar um dos ambientes de trabalho mais descontraídos do planeta.

Nestas instalações, umas das actividades predominantes é o Solitaire (paciência de cartas que se joga no computador). É tão presente que, certo dia, quando eu e o André julgámos ter pifado dois dos únicos três computadores do parque com uma troca de cabos e nos confessámos, temerosos, ao seu director, ele nos aliviou:

- Ah, não tem importância. Esses computadores é para os guardas brincar…

O Moussa é o meu guarda preferido, e também o mais vagaroso. Passa o tempo na casa de banho. Em dias diferentes, apanha-me a mim, ao André e à Francesca sozinhos e expõe o seu mal-estar de intestinos, que descreve de modo altamente gráfico. Não só, mas também por causa do seu padecimento, Moussa dedica-se a apenas duas actividades: dormir e arrastar-se com ar macilento, de quem gostaria estar internado num hospital, se o houvesse.

Moussa também gosta de nos ficar a ver trabalhar ao computador. Pela manhã, entra na sala, cumprimenta-nos com profunda gentileza e deferência, senta-se numa cadeira, encosta a cabeça a uma parede ou estende-se em cima do tampo de uma mesa e fica a olhar para nós a trabalhar. A princípio perturba-me, mas depois habituo-me a ter uns olhos sempre postos em mim. Eventualmente, acaba por adormecer. Um dia, depois de uma hora a escrever ao computador sob o seu olhar escrutinador, diz-me:

- Eu tenho que aprender a escrever como você ao computador – refere-se à velocidade com que eu teclo – É muito importante. – acrescenta, sério, e depois faz uma pausa – Podia-me ensinar?

É mesmo muito estranho. Moussa pode não ser o Einstein, mas tem mais três computadores à mão, passa os dias aqui, a matar o tempo, a não fazer rigorosamente nada, e nunca lhe ocorreu pegar neles e começar a passar textos, a treinar os dedos, a fazer algo pela vida que não derreter-se nas cadeiras e ficar a estrelar em cima das mesas.

- Porque não pega num texto e o começa a redigir ao computador? – pergunto-lhe

- Você escreve muito rápido. – é tudo o que me diz, com notória admiração. Ficamos na mesma.

Mas o Moussa não é o único apreciador. Um dia, o Agostinho, outro guarda, vira-se para mim e diz-me:

- Posso ficar aqui?

- A fazer o quê? – pergunto.

- Eu gosto muito de o ver mexer assim rápido os dedos.

- Pode homem. – que havia eu de dizer?

De manhã, tenta-se trabalhar mas é sempre um problema ligar o computador portátil. Embora existam duas extensões de vinte entradas cada, há sempre dezenas de telemóveis a preenche-las. Com o seu dispositivo de painéis solares e baterias de alto rendimento de tecnologia de ponta alemã, a sede do parque transformou-se num dos grandes pontos de carregamento de telemóveis da cidade vizinha, de onde os habitantes descem de madrugada para, por uma relativa pechincha, encherem as baterias.

Mas os problemas financeiros do parque não ficam saneados com este negócio. Os sete guardas recebem menos de 80€ por mês, e são eles que têm que pagar a reparação e a gasolina das próprias motas de patrulha. Por isso mesmo, não os censuro se passam o dia ociosos a deambular pelas instalações do parque, submersos em contemplações letárgicas e pegajosas.

Este estado de coisas conduziu a tentativas originais de obtenção de financiamento. A arca congeladora de um dos edifícios (uma das poucas da cidade local, que conta 5.000 almas), por exemplo, gera um corrupio constante de clientes de sumos, colas, mangas e peixe fresco. Já o director anterior do parque, mais pragmático, terá vendido uma remessa de motas de patrulha oferecidas pelo Banco Mundial um dia depois de as ter recebido.

- Então e agora? Fica o parque sem motas? – terá perguntado alguém. Ao que ele terá respondido:

- Ah, issu brancu dá más.

E não é que deu?

Porém, confesso que, por vezes, a indolência deste lugar é excessiva até para mim, que vim à procura dela. O Moussa pode passar dias sem proferir palavra. Uma tarde, entro na sala e está espojado em cima da mesa como um boneco de plasticina. Os braços de nadador atingem a outra margem da mesa e terminam numas unhas longas que coroam a ponta de umas mãos longas e esguias de pianista.

- Olá Francisco. – ergue-se, com dificuldade.

- Olá Sr. Moussa. Boa tarde!

- Boa tarde… – depois fita-me, silencioso, enquanto eu procuro um livro, e pergunta-me – Onde está o seu p3?

- O meu p3? O que é um “p3”?

- Sim, o seu p3? – insiste, apontando para os ouvidos.

- Ah, o Mp3?

- Sim.

- Não está aqui.

- Eu queria que o senhor me emprestasse para eu ouvir música.

- Pois, mas agora não o tenho aqui. Mais tarde, pode ser?

O Moussa nem responde. Deixa-se derramar sobre a mesa e volta a afundar-se naquele estado semi-consciente, e eu fico triste por não ter o meu leitor de música à mão uma vez que levará mais uns dias até que o Moussa imagine uma nova possibilidade de alteração ao seu quotidiano.

Os dois guardas-nocturnos da sede estão presos a uma paralisia mais sinistra. Enquanto vemos TV, Djalma e Alfredo, com consentimento mudo do director do parque, ficam fora da casa, colados à janela a olhar para um ecrã tornado minúsculo e difuso pela distância e pela rede mosquiteira. Também não dizem palavra. Podem estar uma hora a olhar para o José Rodrigues dos Santos na RTP África: a crise na venda dos automóveis ligeiros em Portugal, cinco minutos de publicidade, as obras do IC16 que vão ficar prontas três meses antes do previsto, mais cinco minutos de publicidade, a apresentação do novo treinador do Feirense. Sorvem tudo. Tudo! E o seu estatelamento inanimado contra a janela, as suas mãos agarradas às suas portadas como primatas num jardim zoológico, não deixam perceber a maneira como lhes entram as coisas nos olhos globulares, de lémures. É indescritível.

Às vezes, noite dentro, há duas horas a trabalhar ao computador, com as luzes desligadas, apenas com a televisão como companhia de fundo, e já hipnotizado pelo mantra dos grilos no vácuo sonoro nocturno, assusto-me quando deparo com a cara de um negro nas minhas costas, ainda à janela, a meio metro do meu corpo, há Deus sabe quanto tempo a olhar para mim.

Mas esta litania de imobilidade não parece incomodar ninguém. Nem sequer tirar o sono ao seu director. Embora estejamos envolvidos num projecto de relativa importância para a preservação de um parque ameaçado de extinção (tal como os postos de trabalho da sua sede), só ao fim de dez dias no local o director – Horácio – resolve dar sinais de que se interessa pelas nossas pessoas:

- Olá Sr. Horácio

- Olá. Então, como é que está a correr… – diz, e faz uma pausa. E por momentos apodera-se de mim uma certeza esperançosa de que diga “o trabalho”– a praia?

- Praia? Aqui só há rio e, que eu saiba, não é que eu passe o tempo a… – Calo-me. Que estou a dizer? Não é que se faça muito por estas bandas, mas não seria suposto disfarçar? Bem, se fosse isso caberia a este sujeito que é “apenas” o director dos 80.000 hectares circundantes de terra tropical, à beira do desaparecimento. Não deveria ser o Sr. Horácio o primeiro a dar uma impressão de trabalho e empenho neste lugar? Rio-me e adapto-me:

- A praia está fantástica.

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