quarta-feira, 22 de julho de 2009

Rio Grande de Buba II

Nado no odor a lodo para ver se me resolvo. Dentro das águas turvas do rio, angustia-me a ideia de não saber o que está por baixo. Sei que não há nada e às vezes finjo ignorá-lo. Proponho-me grandes distâncias, longas permanências na água ou perpétuos boiares – e eu que não bóio lá muito bem; pesam-me sempre os pés, magros demais para flutuarem – pequenas penitências que devem durar até ao medo se ir embora. Mas o pé toca numa alga no fundo, a corrente faz-me roçar um saco de plástico nas costas, e o terror regressa, sempre.

A maré vaza e emerge uma majestosa Atlântida de lama. No centro da colossal garganta de barro fofo, escorre um fio de água tímido. Das inúmeras fissuras das paredes colossais da cidade de terra, rastejam cá para fora os seus habitantes, e o canal castanho reveste-se de uma imensa multidão de seres minúsculos. São milhões de caranguejos, de um cinzento azulado, tornados assimétricos por uma pinça desproporcionadamente grande, com a qual acenam uns aos outros. Travo conhecimento com estas criaturas estranhas e aprendo a gostar delas. No seu mundo em miniatura, que me comove, estes sujeitinhos imbecis, estes crustáceos sentimentais, não fazem outra coisa senão dizerem adeus. Rio-me, bem-disposto.

As impressionantes muralhas gordurosas terminam nos mangais, enxames de plantas caminhantes, plantas com andas curvas, plantas com pernas de insecto em vez de troncos, como se sofressem de baixos-ventres desfeitos em chuva de madeira, arqueados como sombrinhas de esparguete. A composição semi-perpendicular ladeia a garganta de códigos de barras corcundas, ainda antes de explodir em festins de clorofila, e parece proteger os seus habitantes.

Ao longe, nas margens argilosas, passeiam-se homens que se chamam Embalós e Bubacares, o que às vezes me parece mentira. Enterram-se na água barrenta, apenas chegados desse complicado trajecto onde tentaram escapar a quarteirões de ar empapados do reverberar incansável dos geradores de electricidade que tudo chocalham. Onde procuraram contornar as labaredas de calor que se levantam da terra, atiçadas pelo dardejar dos raios solares. Por todo o lado as cabras balem como se falassem, como se fossem pessoas. Ao fundo, há miúdos e mais miúdos, como um exército de servos em miniatura, numa azáfama compenetrada e constante à volta de noras metálicas a bombear o sub-solo, como punções feitas à terra. Como se dali extraíssem ouro.

Um cargueiro abandonado, um mastodonte de ferro, apoiado no leito cheio, no dorso da cidade submersa que desperta duas vezes por dia, insufla-me a pulsão mimética de ficar aqui deitado perpetuamente, ora húmido, ora ressequido pelo sol, sujeito ao ofegar do Rio Grande de Buba.

Ao fundo, um fumo verde-escuro, ou mesmo negro, lodoso, ascende da moldura viscosa de árvores e lianas da floresta, como colunas de chuva ao longe no mar a percorrerem o sentido inverso, em direcção ao céu. Assusta. Como se toda a floresta se estivesse a esmigalhar, a dissolver em partículas, esvaindo-se no ar.

O rio volta a descer e o horizonte readquire um rodapé castanho e viscoso. No planeta das miniaturas, os olhos esbugalhados de lémures das criaturas que acenam, presos na extremidade de antenas, fitam-me. Lamento o destino trágico dos crustáceos simpáticos. Lamento-o.

Já consigo imaginar estas criaturas desequilibradas, sem reacção, sem rebeldia, sem protesto, dentro da pá da retroescavadora ainda a dizerem adeus, feitas idiotas, porque não sabem fazer mais nada.

E as paredes terminam nos mangais, plantas com mil pés hécticos e barulhentos. Levanto-me e respondo ao adeus. Vou-me embora antes que o porto de águas profundas traga mais cachalotes de metal.

Da roupa já não me sai este cheiro a lodo. Apetecia-me dormir durante dez dias. Não sou ecologista, nem sequer acho que a natureza tenha alguma hipótese. Li demasiada ficção científica. Mas o desaparecimento deste lugar mete-me nojo. Tanto que, de vez em quando, me esqueço da minha própria agonia. Ah, já me lembro! É por isto que se arranjam causas, não é?

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