quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

No man´s land


Franco caiu, a Espanha saiu à pressa das suas colónias e, em 1975, Marrocos disse: o Sara Ocidental é nosso. Mas a Mauritânia disse: não, não, o Sara Ocidental é nosso. E a Argélia disse: desculpem, meus senhores, mas o Sara Ocidental é nosso. Estavam a disputar as toneladas de peixe existentes nos 266.000 km2 de areia do sara ocidental. Também sal, potássio, e, no caso da Argélia, uma oportunidade única de ganhar uma janela para o Atlântico. Reza a história que Marrocos terá pago mais dinheiro a Espanha, e que terá sido assim que o Sara Ocidental se tornou maioritariamente território marroquino. Já a Mauritânia abraçou um terço do seu território.
Entre os territórios do Sara Ocidental (agora Marrocos) e a Mauritânia, as Nações Unidas abriram um corredor de segurança que nós cruzámos na fronteira costeira de Bou L´anouar. Bem-vindos à lua, a Marte, a Júpiter, a um vácuo legislativo, político, geográfico; três quilómetros de areia, calhau, cobertos por um manto de lixo e adornados por cemitérios de carros (ou de esqueletos de carros), a maioria ardidos, esventrados por uma pseudo-estrada muito pior que um caminho de cabras, pior que um trilho para 4x4, uma coisa que não passa de umas poças insignificantes de um alcatrão velho salpicando o chão aqui e ali, e que flutuam entre enormes buracos do tamanho de crateras de granadas ou morteiros.
Surpreendentemente (ou não), nestes 3km inóspitos sem rei nem roque, há homens a fazerem vida, gente que faz da no man´s land o seu dia-a-dia e sustento, e não são capacetes azuis. Um desses homens conduz um Mercedes sem matrícula, que utiliza para andar para trás e para a frente entre as duas fronteiras. Basta passarmos aqui para nos cruzarmos com ele: afinal de contas, não pode ir muito longe porque o carro está confinado a esta terra sem pátria, e, de resto, faz sempre a mesma estrada, já que aqui não há mais nenhuma.
A primeira impressão sobre esta gente poeirenta e sobre este homem que habita Marte na Terra é de assombro. O que há para fazer aqui? Aqui não há governo, não há lei, não há transportes, não há bancos, não há restaurantes, não há casas.
E depois cruzamos a estrada, falamos com ele, e aproveitamos os cinco diferentes controlos policiais das duas fronteiras para o observar. O que há para fazer aqui? A resposta é fácil: tudo. E por isso este homem faz tudo.
É o taxista no sítio certo para os que não têm meios de transporte e estão disponíveis a pagar o que for preciso para escapar ao calor abrasador daqueles três quilómetros, especialmente depois de horas de fila na fronteira a passar polícia, exército, e aduanas de cada uma das fronteiras; é o banqueiro que troca todos os tipos de moeda do mundo a câmbios obviamente despropositados aproveitando desconhecimento e necessidade; é o polícia que detecta notas falsas nestes câmbios (como aconteceu ao senegalês que nos dava boleia); é o cão farejador que pressente passagem de droga, e o justiceiro que denuncia às autoridades aduaneiras dos dois lados estes e outros produtos ocultos; mas é também o amigo que, por uma quantia moderada e bastante negociável, nos sabe ouvir e consegue compreender que todo o tráfico é crime menor perante as dificuldades da vida, escolha forçada num mundo cão. É também o guia iluminado que escolta até porto seguro, com o seu Mercedes, quem se deixa impressionar pela seu atencioso relato de uma estrada pejada de minas, capaz subtrair a vida em terra de ninguém ao viajante desprevenido. E ninguém quer morrer em terra de ninguém, e, aqui, este homem consegue convencer-nos de que é o único capaz de evitá-lo.
Oportunista da ignorância alheia, debicador de desgraças e fraquezas, aproveitador do sistema, parasita, ténia.
Por instantes, enquanto aqueles três quilómetros nos rodearam e permaneceram no nosso horizonte, experimentei, quase comovido, uma violenta nostalgia de ordem, lei e justiça.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Barraca de pescadores (entre Tan Tan e El Aaiún)

Estação de Serviço abandonada (algures no Sara)

A estrada


O Sara ocidental é um território vazio que às vezes parece pouco mais que uma estrada numa planície que se estende aos quatro horizontes. E essa estrada é um lugar estranho.

Fizemos a parte final da N1 à boleia com um senegalês magro e eléctrico chamado Iza. É um dos muitos africanos com passaporte europeu que fazem vida apanhando aviões para a Europa para comprar carros e regressarem com eles ao longo da África Ocidental para os vender, muito mais caros, na Mauritânia, Senegal e no Mali. Entrámos na sua pick-up, em Boujdour (Cabo Bojador)… Dahkla, uns 400km mais abaixo, desvia todo o tráfico automóvel, que desaparece por completo. Daqui até à fronteira com a Mauritânia de Bou L´anouar são cerca 350km de estrada estreita e areia, interrompidos por três ou quatro estações de serviço, e chega. Durante quatro horas de viagem não nos cruzamos com nenhum veículo (nem sentido contrário, nem na nossa faixa), nenhuma casa, nenhum arbusto, nenhum bicho, nada. Os quilómetros sucedem-se e o nosso corpo vai-se submergindo sensorialmente num meio novo, diferente de tudo; como se nos mergulhassem à força no mar, ou noutro qualquer espaço com condições físicas radicalmente diversas. O vácuo exterior infiltrasse-nos na mente e já não há nada para dizer. O mundo tornou-se ausente de estímulos. Aqui não há cartazes publicitários ao longo da estrada, ou árvores de formas curiosas para vermos passar e comentar. Viajamos mudos. A mim, pela cabeça, passam-me ideias estéreis, coisas vagas, sem princípio, meio e fim. Todavia, muito de vez em quando, acontece o oposto: recordo situações com uma vivacidade anormal, como num sonho vivo. Interpreto esta variação radical como mais uma componente de uma espécie de síndrome do deserto. É o vazio que nos apaga, mas é também ele a permitir que as coisas emerjam em plena força à sua superfície e tomem conta dele, já que não há lá nada que se lhes oponha.

A única coisa que nos diz que estamos a avançar é a aparição esporádica de bombas de gasolina. Tem sido assim desde Boujdour. Paramos em mais uma para atestarmos o depósito. De dentro de um casebre sai o tipo que trabalha ali (e que, provavelmente, também ali vive) e não consigo perceber se ele tem um aspecto estranhíssimo, se é apenas estranhíssimo encontrar um ser humano neste lugar.

- Como está? – perguntamos.

- Como estou?! Como acham que estou? – retorque, sem meias medidas – Aqui, sou eu e Alá, e mais nada. – grita, e expele uma gargalhada rouca. Levo algum tempo a aperceber-me que o grito e a gargalhada foram extremamente volumosos. Uma vez mais, parece-me ser o deserto a garantir o espaço para esse exagero. Tudo o que fazemos tem talvez que ser decidido e categórico, já que há tanto espaço para preencher.

São precisos mais 30km para a N1 nos oferecer uma nova intersecção no vazio, um ponto de referência, uma nova idiossincrasia para a qual podemos olhar: desta vez, é estação de serviço abandonada, consumida pela ferrugem, mas é impossível não a ficar a ver passar de olhos bem abertos e concentrados. Entretanto, a noite cai. 40 km mais tarde, uma nova estação. Paramos e entramos. Esta é um pouco mais movimentada: há pelo menos mais dois carros parados e seis pessoas dentro da casa da estação, o que torna este lugar no maior ajuntamento de seres humanos que vi nas últimas cinco horas e 300km. Decidimos comer qualquer coisa, mas aqui só chegam produtos empacotados, enlatados, embalados. Empanturramo-nos com uns bolos e umas bolachas.

Saio para tentar urinar lá fora. Assim que atravesso o limiar da aura de luz da estação dou entrada numa escuridão unânime. Em todas as direcções, o mundo é preto. Aproximo-me da entrada da estação, do poste de luz que a anuncia na estrada e que, supostamente, deveria indicar os preços da gasolina e gasóleo, mas os meus olhos ainda não estão habituados ao escuro e apanho um susto quando já estou muito perto do poste. Encostado a ele, jaz, ali por terra, um molho de gente, uma grande família (novo recorde de ajuntamento humano) cheia de mulheres e crianças. Têm imensa bagagem, e uma data de cobertores e edredões dentro de sacos de plástico próprios, daqueles com fecho-éclair. Faz um frio tremendo e não percebo porque não tiram os cobertores dos sacos. Volto para trás, urino noutro sítio, e reentro na estação para me juntar ao Iza e ao André. Lá dentro há um tipo que me pergunta:

- Tens Whisky para vender? Álcool?

- Não.

- O que é que tens para vender?

- O que é que queres?

- Qualquer coisa.

- Qualquer coisa? Tipo o quê?

- O que é que tens para vender? – repete.

Este lugar faz-me arrepios. O melhor é sairmos daqui para fora. Partimos. Um bom bocado depois, no meio de um raio de uns 80 km de desolação plana, está um tipo a andar ao longo da estrada no meio do preto, a fazê-la na mesma direcção que nós. Nem sequer vira as costas para nos ver passar, o que me parece absurdo. Podemos ser o primeiro e último veículo a passar por ele durante horas. Porque raio é que não olha para nós? Dentro do carro, eu, o André e o Iza viramos a cabeça em sintonia à sua passagem, como se ele fosse uma bola de ténis. Passado uma quantidade exagerada de tempo o Iza diz:

- Saiu de casa para ir ao café e não o encontra. – desatamos a rir (como aqui não há nada, podemos pegar numa situação que se passou há muito tempo, comentá-la, ironizá-la, e as pessoas ainda vão saber do que estamos a falar).

Mais à frente, encontramos um triângulo de perigo na estrada. Abrandamos e passamos a 10km/hora por um carro estacionado na berma. Três mulheres marroquinas (pelo menos a julgar pelas roupas) descarregam da mala de trás do carro caixotes de cartão de bananas Chiquita. Não consigo imaginar nenhum argumento verosímil que se adapte ao facto de serem 21h da noite e de estar alguém aqui, neste sítio, a tirar caixotes de um carro para o meio do pó.

Logo a seguir, vindo do nada, um Audi topo de gama com os quatro piscas ligados (o primeiro carro que encontramos) ultrapassa-nos e começa a travar tentando forçar-nos a parar. Estamos tramados, penso. O André olha para mim: também pensa o mesmo; afinal de contas, este tem que ser o melhor sítio do mundo para assaltar um carro. Mas o Senegalês é um bocado avariado (ou já fez esta estrada muitas vezes) e pára a pick-up mesmo ao lado do Audi. Abrem-se ao mesmo tempo os vidros eléctricos das janelas contíguas de ambas as viaturas. Eu estou no lugar do morto e não consigo evitar o pensamento exagerado, de inspiração talvez «hollywoodesca», de que tenho que estar preparado para baixar a cabeça. Aparece-me à frente uma cara enrugada e abrutalhada e o bigode farfalhudo de um árabe horrendo, com um ar tão criminoso como seria de esperar. Estamos decisivamente tramados, penso. Trocamos, cada um de nós, palavras na respectiva língua: árabe, wolof, inglês e francês, mas ninguém se entende. Por fim, o árabe ri-se e diz, em francês:

- Desculpem. Pensava que eram marroquinos. – e o Audi arranca. Absurdo. Então e se fossemos? Sentiu-se sozinho e queria dois dedos de conversa?

Mais adiante, paramos para desentorpecer as pernas. Lá fora, o mais perfeito silêncio presta justa homenagem ao mais cintilante dos céus.

Prosseguimos caminho até avistarmos novamente, ao longe, os quatro piscas de um carro. Vamo-nos aproximando e apercebemo-nos que está estacionado mesmo no meio da estrada. Outra vez o árabe? Diminuímos a velocidade e avizinhamo-nos do carro parado, lentamente. Quando paramos, os quatro piscas apagam-se. Saímos do nosso carro, deixamos os olhos habituarem-se à escuridão, e deparamo-nos com mais uma visão bizarra: a seguir a este automóvel sucede-se uma fila interminável de carros e camiões com as luzes apagadas, como se estivéssemos no meio da hora de ponta do deserto e toda a gente tivesse decidido desligar os carros para poupar gasolina. Depois, aguçamos ainda mais o olhar: afinal há também cobertores e sacos cama ao lado e por cima dos carros. Gente e mais gente a dormir por terra e até em cima dos capots. Chegámos. Estamos na fronteira Mauritânia, que é um país tipo supermercado: só está aberto das 9 às 18. Metemo-nos na caixa da pick-up e preparamo-nos também nós para dormir. A estrada acaba aqui.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

El Aaiún (Laâyoune)



O Sara Ocidental é um território enorme, quase três vezes do tamanho de Portugal, mas praticamente desabitado (cerca de 380.000 habitantes, quase todos povoando a principal cidade: El Aaiún (Laâyoune).

El Aaiún é uma ilha, uma cidade encolhida sobre si própria, vergada pela força implacável de enormes condições de isolamento e confinamento mental e geográfico. Primeiro que tudo há o Sara. Está por todo o lado e será porventura mais difícil de atravessar que muitos mares. Depois, há essa falta de homens que galga a pele de cada habitante e que, para além dos seus confins (da pele e da cidade), não deixa nada senão o mutismo de centenas de quilómetros de areia e calhau, no meio dos quais estão semeadas mais quatro ou cinco grandes povoações (o resto são maioritariamente agrupamentos isolados de pescadores e estações de serviço) separadas por estradas intermináveis. Mas talvez a mais dura masmorra desta gente seja a mais subterrânea, aquela que não se vê. Anexado em 75-76 por Marrocos pela força do exército, o Sara Ocidental vive hoje sob o jugo de um país em que a maioria da população não se revê, num clima de permanente tensão entre os seus habitantes e um exército marroquino omnipresente com que inevitavelmente esbarramos a cada esquina. A entrada de jornalistas internacionais é controlada, e a expressão pública de opiniões é abafada e censurada. A população Saauri vive revoltada, conspira constantemente uma guerra impossível de fazer, mas impossível de abandonar, lamenta os seus mártires e os campos de refugiados onde parte da sua gente vive.

Este é o contexto macroscópico de uma estranha passagem por El Aaiún, que nos tinha sido descrita por todo o Marrocos como uma cidade marroquina normal. E, realmente, El Aaiún tem tantas ou mais parabólicas que uma cidade marroquina, está tingida a salmão, tem as mesmas lojas a vender as mesmas coisas, o mesmo pão redondo, os mesmo agrupamentos de homens no café a ver a Liga Espanhola, e, num sentido estético, é até uma cidade mais arranjada e limpa do que a média das cidades marroquinas. Quando, acabados de chegar, pedimos a primeira boleia para o centre ville, essa sensação de não termos mudado de país repete-se: exactamente como tinha acontecido em Agadir, centenas de quilómetros a Norte, este mero pedido de boleia até ao centro acaba num convite para uma estadia em casa do proprietário do veículo, neste caso Ayad, um saauri fluente em castelhano que trabalhou em Espanha durante sete anos. Mas as semelhanças terminam aqui.

Chegamos a casa de Aayad, num bairro novo El Aaiún, e percebemos automaticamente que fomos recebidos por uma família com algumas posses. A seguir, o costume: conhecem-se os numerosos membros do agregado familiar, comemos com os homens do mesmo prato, numa sala à parte, e bebemos chá (e até aqui a única diferença é que o ritual de preparação do chá se esticou para uns bons vinte minutos). Depois, o Ayaad faz um giro de carro connosco, para nos dar a conhecer uma cidade parasitada pelo exército marroquino e por inúmeros jipes das Nações Unidas. Este é um primeiro indício factual de que estamos num lugar diferente, mas é só a partir daqui que essa sensação vai começar a emergir sensorialmente. Pouco depois, juntamo-nos a um pequeno serão com os seus amigos, na garagem onde se costumam encontrar para conversar, ouvir música e relaxar. Reparamos imediatamente que são todos muito simpáticos e enérgicos, talvez até excessivamente. Falam muito e atabalhoadamente connosco e, mesmo considerando que somos estrangeiros, não há dúvidas que nos prestam uma atenção anormal. Não me larga a sensação de que cada gesto meu, cada palavra que articulo, é escrupulosamente seguida por dez pares de olhos. Um exemplo muito simples: dou por mim a seguir com os olhos o movimento de uma formiga branca na parede (nunca tinha visto uma formiga branca!), e tenho subitamente toda a gente a perguntar-me:

- O que é que foi? O que é que foi? – E, quando, percebem, consigo a proeza de pôr dez pessoas a falarem de formigas.

Deitamo-nos tarde, mas, mesmo assim, somos acordados no dia seguinte pelas 8:30 da manhã o que me parece estranho, já que até agora nunca ninguém nos despertou em lado nenhum. Ainda connosco na cama, os olhos estremunhados, entra um arraial de homens e miúdos sala adentro com uma enorme mesa redonda para preparar o pequeno-almoço, que é tomado sob um estranho bombardeamento de olhos sequiosos, perguntas cobiçosas, e frases velozes encavalitadas umas nas outras. De barriga cheia, somos de novo através de toda a cidade: desta, Aayad mostra-nos o edifício da cadeia de televisão, edifícios estatais, o maior café da cidade, a rotunda central, o bairro dos ricos e acabamos por parar num outro café, onde engolimos mais chá e somos introduzidos a novos amigos. Depois leva-nos à zona costeira, onde visitamos a empresa de cimento da família, conhecemos um a um os postes de cimento para electrificação do porto que essa empresa está a construir no porto, visitamos amigos na praia, visitamos o porto de pesca, tiramos fotografias com os pescadores, e sentamo-nos num terceiro café, mais uma hora, a falar com outra gente, a sorver mais chá. Antes de voltarmos para casa ainda temos tempo para ir ao barbeiro com o Aayad, e ficar a vê-lo levar palmadas molhadas de loção perfumada nas bochechas. Às duas horas estamos almoçados e já completamente estoirados de uma manhã preenchida ao milímetro. Tenho a sensação de que ainda não consegui ter um segundo desde que acordei. Decido passar pelas brasas numa sala de estar secundária durante uns dez minutos, e, quando regresso à sala principal, está lá uma tia distante do Aayad que me terá visto espojado no sofá a dormitar e que, nem cinco minutos depois, me está a dizer:

- Tens que ser mais como o teu amigo. Eu gosto mais dele. Aqui no Sara gostamos de pessoas de coração aberto. Não serve de nada seres assim lento e afrouxado, muito menos aqui, por isso tens que mudar isso. Aprende com o teu amigo.

Esforço-me um pouco por ser alegre, e, meia hora depois, está a perguntar-me porque é que não caso com a sua sobrinha: explica-me que só preciso de pelo menos um camelo (não está a brincar), aprender o árabe, e converter-me ao islão. Tenta ensinar-me, à pressão, palavras em árabe, e espanta-se com a minha incapacidade de as decorar a todas (percebe-se que contactou muito pouco ou nada na vida com estrangeiros). A seguir, o Aayad diz-nos:

- Que quieren hacer?

- Aquello que tu quieres.

- No, vosostros deciden.

- Bien. Talvez reposar un poco.

Cinco minutos depois, não sabemos bem como, estamos de novo dentro do seu carro. Agora, leva-nos ao morro onde costuma adorar o crepúsculo e fumar haxixe com os amigos desde miúdo, e segue-se uma terceira esplanada: mais chá, um jogo de cartas, e quinze pessoas que se sentam à nossa volta durante duas horas a rir-se de tudo o que dizemos, a fazer milhares de perguntas, a querer ouvir à força toda que o Sara ocidental é Um, e Marrocos Zero, que o Sara é melhor que Portugal, que viver em El Aaiún é melhor que viver em qualquer outro sítio no mundo; e é escutar incompreensão, desconfiança e protestos bem-dispostos (mas sentidos) se tentamos contrariar levemente estas ideias.

Entretanto são finalmente horas de voltar a casa. Assim que chego, tento ligar meus pais através da internet, mas um irmão do Aayad, com quem não partilhamos nenhuma língua, senta-se ao meu lado a usar o Google translator para traduzir em simultâneo, de árabe para inglês e português, aquilo que lhe vem à cabeça para me dizer. É mesmo muito estranho o facto de ignorar completamente o facto de eu estar a falar ao telefone com a minha mãe. Vai-me interpelando como se isso não estivesse a acontecer. Não consigo concentrar-me nem nos meus pais nem no que ele diz. De qualquer forma, o telefonema é prontamente interrompido pelo toque do sino para jantar. Devorado o Tagin de camelo, sentamo-nos todos (uns sete, entre irmãos, primos, sobrinhos e avós) em frente à televisão (neste país, de resto, parece-me que está tudo sempre a ver TV). O Aayad diz-nos, orgulhoso:

- Aqui em casa temos ligação a quatro satélites. Temos 900 canais!

Depois, para nosso assombro, descreve-nos acuradamente o grafismo de ícones antigos da RTP 1, que conhece apenas daquilo que se poderia denominar de memória-zapping. Ouço aquilo e fico com a certeza inexplicável que a descrição e os 900 canais não são predicados únicos desta casa.

Entretanto, é de novo tempo de ir ter com mais amigos, que estão espojados na rua, nas redondezas. Desta vez estão uns vinte à nossa espera, e somos massacrados durante umas três horas com perguntas e de novo com a mesma insistência no léxico árabe, que somos pressionados a repetir até à exaustão com a nossa pronúncia para eles se rirem. O André, para aliviar a pressão e escapar à milícia das metralhadoras vocabulares, ensaia um truque de magia com uma caneta. Wrong move. Acabámos de dar carta verde ao David Copperfield escondido (e ansioso por se mostrar) dentro de cada um destes saauris. À nossa frente temos agora uns dez pares de mãos a executarem diferentes truques com todo o tipo de objectos – cigarros, caricas, paus de gelado – e cada par associado a uma voz que reclama cegamente atenção e que ignora completamente as outras.

Muito para além do nosso timing, o Aayad diz a toda a gente que são horas de ir dormir porque amanhã trabalha. Isto causa uma desmoralização geral e o nosso alívio, mas lançamos foguetes antes do tempo. Durante mais uma hora, até à 1:30 da manhã, não nos deixam partir enquanto não trocamos contactos, felicitações, grandes abraços, declarações profundas de amizade, confirmação de empatia a roçar a telepatia, e promessas de encontros futuros, telefonemas semanais e viagens a El Aaiún e, somos obrigados a admiti-lo, a garantia de uma forte possibilidade de irmos futuramente para ali viver.

Chegamos a casa, mas temos ainda que tentar transferir as fotografias que entretanto tirámos para o computador da família porque ninguém quer esperar pelo e-mail. Mas entretanto, com o google ali ao lado e a nossa partida eminente, dois ou três amigos do Aayad que entraram connosco em casa, cedem àquilo que me parece ser uma sede de contacto descontrolada. A avalanche comunicacional regressa: damos por nós, não se sabe bem como, a mostrar fotografias dos Açores – querem ver as fotos das vacas mimosas e rirem-se perante a ideia de um mundo em que elas substituem os camelos e se podem encontrar no meio da estrada –, de Lisboa, da Sé, do Mosteiro dos Jerónimos, da Ponte 25 de Abril, do Estádio da Luz, vídeos do voo da águia vitória; e, não sei bem como, esta gente está mesmo interessada nisto tudo: riem-se, fazem mil perguntas, têm uma curiosidade de crianças. Às cinco da manhã conseguimos cair mortos na cama.

Três horas e meia depois somos de novo acordados para um pequeno-almoço comunitário que percebemos ser dedicado à tentativa de persuasão para ficarmos. Pelo que percebemos, já temos até emprego garantido. Só recorrendo a doses maciças de simpatia e delicadeza, elogios à cozinha e à hospitalidade, à família e aos amigos, conseguimos entrar num táxi para Boujdour.

A visita diplomática terminou. O Aayad é um tipo simpático, mas quando nos deixa na praça de táxis nem queremos acreditar. Respiramos ou, melhor, urramos profundamente de alívio. Sinto-me completamente exausto, mas livre como um pássaro. O pequeno pesadelo orwelliano, este aspirar, mamar, sugar da nossa presença, acabou.

A necessidade de comunicação é das mais imperativas necessidades do homem. É por isso que a prisão (o isolamento) é o pior dos castigos. Neste caso para nós, mas sobretudo para eles.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sara Ocidental. Densidade populacional: 1.3h/km2


Areia, mar, areia, mar, areia, mar, dromedário, areia, mar, areia, mar, areia, estação de serviço, areia, mar, areia, mar, barraca de pescador à beira da falésia feita de pedaços de lixo, dobrada, tornada barriguda como uma vela pelo vento permanente, a dezenas de quilómetros da povoação mais próxima, areia, mar, areia, mar, estação de serviço, areia, mar.

Quem é esta gente? Quem é esta gente?

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Tentativa de retrato honesto de Marrocos


Deixamos (aqui falta um acento no "a", mas este teclado nao permite essa e outras sofisticacões) Marrocos para trás, e vem-me a vontade de fazer justiça a esta terra, pois que sobre ela se contam muitas patranhas.
Para ser sincero Marrocos parece um 6 de Maio gigante. Claro que há o deserto, e as medinas labirínticas, e os oásis, as aldeias de adobe nas montanhas, e as caixas de aguarelas compostas pelas cores dos sacos de especiarias nos bazares, o Atlas, que é formidável com ou sem neve, e todas essas outras coisas que também se podem ler e ver nos Lonely Planet e nos guias Michelin. Mas, para se ser objectivo, para se escapar a um romantismo descabido, ao sensacionalismo generalizado das arábias, à ditadura imagética das palmeiras, dunas e camelos, há que dizê-lo: as cidades marroquinas são um nojo. Regra geral, parecem ter acabado de sair de uma guerra civil. O planeamento urbano é absolutamente inexistente, metade do país pareceu comprar a tinta na mesma loja (está tudo tingido a salmão) dando aos lugares uma cor enjoativa (ainda que isto tenha uma explicação tradicional), e a outra metade ainda não juntou dinheiro para a tinta. Nos espaços entre esse crime urbanístico cor de salmão, prevalecem descampados medonhos e arenosos onde despontam ervas daninhas e flutuam charcos sujos, ha campos de futebol esquecidos, montanhas de entulho, lixo, e uma data de criançada entretida a fazer disto parque de diversões. No entanto, e é isto que é difícil corrigir num Lonely Planet mentiroso, e impossível de explicar a um turista desiludido mas submetido à ditadura de sete dias de estada programada e apressada, Marrocos é um país fabuloso. Marrocos são tapetes gigantes a secar ao sol, são plantações de sacos de plástico, e é o nosso auto-carro Relax a penetrar por isso tudo adentro, são parabólicas nas casas de colmo de famílias pobres de pastores, é um sorriso enorme, mas mesmo colossal, mas mesmo de desenho animado, com apenas três dentes, de um só lado, de um só maxilar, virados todos para o mesmo lado num ângulo impossível de uns 75 graus e disputando entre si a força magmática de algumas das cores do arco-íris: neste caso, sobretudo o verde, o amarelo, o laranja, e (um outsider) o preto. Marrocos é darmos por nós, ao fim de uns dias, a não sentirmos um mínimo de repugnância ou repulsa por estes sorrisos coloridos.
Mas Marrocos é sobretudo a terra dos mais incríveis mestres da hospitalidade que alguma vez conheci. Marrocos é esta coisa verdadeiramente extraordinária de chegar a uma cidade, pedir uma indicação sobre a direcção do centro, e acabar convidado para jantar, e depois para passar a noite, e depois o dia seguinte, e depois para ficar mais tempo, e de repente nos vermos a ter que convencer dez amigos e vinte familiares diferentes, que entretanto conhecemos, que temos mesmo que nos ir embora.
Se isto nos tivesse sucedido uma vez, eu diria que há pessoas acolhedoras em Marrocos; duas vezes, eu diria que a hospitalidade do povo marroquino é das melhores do mundo; mas como aconteceu sempre, mas mesmo sempre, com famílias ricas e com famílias muito pobres, como de, perdidos, nos vimos sempre subitamente sentados à mesa com as famílias de quem encontramos na rua, tratados com uma delicadeza inexplicavel, e com sorrisos que continuam a jorrar com o passar do tempo, vindos sabe-se lá de que fonte inesgotavel, tenho que formular uma expressão paradoxal e absurda do tipo: Marrocos é dos lugares mais humanos que conheço
Esqueçam os guias turísticos, ainda o não vi escrito em lado nenhum. Marrocos é sobretudo e apenas isto: se tivermos a predisposição necessária, é decidir atravessar a rua para comunicar com alguém que nos chama e despedirmo-nos com um grande abraço na madrugada seguinte. Se formos suficientemente parecidos com o vento, é decidir atravessar a rua para comunicar com alguém que nos chama, e acabarmos a viver casados, com filhos, a trocar camelos com esse tipo que entretanto se tornou nosso vizinho. Mesmo.
Peguem nos guias e metam la dentro escombros, dentes sujos, parabolicas, e muitos sorrisos. São essas as coisas que faltam.

Estação de serviço II

Tan Tan, Sul de Marrocos

Rashid (na fotografia) trabalha nesta estação de serviço. Com os garrafões de 5L que se podem ver do lado esquerdo, abastece de gasolina ou gasóleo os camiões que fazem toda a parte Norte da África Ocidental, do Senegal, a Rabat e Casablanca. Também vive aqui. No canto superior esquerdo da fotografia, pode ver-se a cama onde dorme. Enquanto estivemos a tentar pedir boleia, em frente à sua “estação de serviço”, preparou-nos um chá, como nao podia deixar de ser, ou nao estivessemos nos em Marrocos.
Tan Tan, Sul de Marrocos


sábado, 14 de fevereiro de 2009

Guilemim

Em Guilemim, no Sul de Marrocos, às portas do Saara, as estradas começam a afunilar-se. Quase toda a gente que atravessa o deserto passa por aqui e a cidade está cheia da intersecção desses movimentos efémeros. Como um íman, sente-se a atracção do colossal vazio sobre a cidade.
Na rua, nos cafés, nos muitos hotéis e pensões, cruzam-se marroquinos, mauritanos, berberes, Sauris (o povo do sara), e africanos subsaarianos que fazem o caminho inverso ao nosso e que, talvez daqui a umas semanas ou meses, tentarão atravessar o estreito de Gibraltar ou o Mediterrâneo para chegar à Europa. Há também um tipo radicalmente diferente de viajantes, dos quais nós fazemos parte, que fazem aqui um dos últimos abastecimentos antes da viagem: casais norte europeus em colossais camiões todo o terreno (como os do Lisboa-Dakar) que nos fazem sentir pequeninos e ridículos com as nossas mochilas de campismo, caravanas de equipas de filmagem com equipamento fabuloso, mas também uma europeia de bicicleta e uma pele branquíssima que, sozinha, tentará também a sua sorte. Para ela, olhamos e respiramos melhor.
Todas estas pessoas compõem, em Guilemim, um cruzamento bizarro de diferentes rotas para diferentes destinos, produtos e objectivos. Aqui, sem exagero, conspira-se crime, negócio, política e viagem. Regateiam-se carros que se foram buscar às várias máfias que operam no Norte da Mauritânia, processam-se etapas da longa viagem da cocaína, que começou na América do Sul, desembarcou na costa ocidental africana, e passa por aqui antes de chegar à Europa. Negoceiam-se boleias em camiões de fruta e de peixe. Planeiam-se ao pormenor (ou com o pormenor possível, se tivermos em conta que estamos em África) os cerca de 1500km até à fronteira da Mauritânia. Trocam-se informações situação fronteiriça, estradas, visas, câmbios, movimentos militares, etc. Sobretudo, contam-se histórias.
Aceitamos o convite de um velho mauritano envolvido num turbante preto, do qual só vemos os olhos, para nos sentarmos num café, e pedimos um chá. O homem pega numa folha e desenha-nos o mapa da estrada que nos levará daqui até à Mauritânia, e começa a povoar o papel de perigos e o nosso imaginário de calafrios. Dramatiza o risco das boleias: as pessoas transportam frequentemente haxixe e dinheiro falso nos carros e, se somos obrigados a parar num dos inúmeros controlos policiais das estradas do Sul, arriscamo-nos a ganhar uma viagem à prisão marroquina. Enche o mapa de cruzes: as partes do percurso rodeadas de minas. Depois, baixando o tom de voz até ao sussurro e abrindo muito os olhos, narra-nos histórias de boleias mal sucedidas, de raptos, e de ataques da Frente Polisário – rebeldes apoiados pela Argélia (que vê no Saara Ocidental uma forma de ganhar uma janela para o Oceano Atlântico) que lutam pela independência do Sara Ocidental. Todos os tipos possíveis e imaginários de percalços são descritos com uma aura de misticismo, enrolados uns nos outros pela língua do velho até comporem uma enorme planície de areia instável que parece apenas destinada a camiões blindados, e não a dois pontos insignificantes de mochilas às costas. O problema é que escutamos estas histórias, olhamos à nossa volta, para a estranha mistura de etnias e viajantes que nos rodeia, e o seu discurso não nos parece completamente deslocado. As regras aqui mudaram. Este é um dos últimos entrepostos antes do grande deserto e as ruas sofrem essas consequências. Não parecemos mais habitar um Planeta Terra contemporâneo mas uma dessas cidades decadentes e anárquicas do Mad Max. Isto causa-nos uma sensação de vertigem mas também de inevitável atracção: é este poder magnético que se experimenta antes de se entrar no Sara.
Talvez por isso, quando, uns minutos depois, o velho nos explica que a partir de Dakhla o tabaco se torna um valor mais seguro que a moeda, que um volume que aqui podemos comprar por 17€, vale 50€ na Mauritânia, que esse volume pode ser a nossa única oportunidade de conseguir uma boleia entre determinadas cidades, e que dois volumes são um mínimo necessário no kit de sobrevivência da nossa futura viagem, nós acreditamos. Talvez por isso, quando, logo a seguir, nos aparece um tipo a falar italiano e a vender-nos volumes de cigarros contrabandeados American Legend, nós não estranhamos. Ainda assim, uma reminiscência de prudência permite-nos recusar a oferta e, de facto, acabamos por conseguimos encontrar o mesmo volume por 9.5 €, um pouco mais abaixo na mesma rua. Orgulhosos da nossa esperteza, compramos dois volumes de American Legend a quase metade do preço oferecido pelo «italiano», e saímos de Guilemim, sentindo-nos mais seguros com esses 400 cigarros nas mochilas que, imaginamos, serão 400 gestos de «simpatia».
De uma maneira que, agora, me parece óbvia, ao longo dos dias que se seguiram fomos descobrindo que o American Legend é afinal tabaco Argelino de muito baixa qualidade, que ninguém da Mauritânia a Marrocos passando pelo Sara Ocidental o fuma por causa dessa deficit de virtude e que, ainda por cima, se tratam de cigarros contrabandeados a partir da própria Mauritânia, sendo portanto mais baratos nesse país do que em qualquer outro sítio em toda a África.
O poder magnético do sara tirou-nos dos bolsos 20€ (que, aqui, é tanto). Mas, há que dizê-lo, o sucedido tem algo de justo, e é difícil guardar rancor em relação ao velho mauritano: é que pagámos também uma história romântica (e ridícula) de aventura nos quais nós fomos personagens centrais, contada por um tipo com inegável talento para a coisa, nas ruas de uma cidade que, não obstante, constituiu um óptimo palco. Fomos muito bem enganados. De certa forma, cumprimos o nosso papel nesta bizarra peça.