segunda-feira, 23 de março de 2009

Nimbostratus

O nimbostrato (clicar!) é uma camada nebulosa espessa, cinzenta, muitas vezes sombria, com base entre os 900 metros e os 3 km. Dá lugar a chuva ou neve, de acordo com a temperatura do ar abaixo dela . O nimbostrato produz um céu pesado cinzento e húmido, frequentemente com chuva contínua e apresentando farrapos soltos de nuvens cinzentas que correm muito depressa abaixo da base da nuvem principal; ou então um céu quase negro que anuncia queda de neve.

domingo, 22 de março de 2009

Nouakchott a Banjul

O espaço aparentemente infinito do deserto – espaço tão amplo que é apenas interrompido, a quilómetros de distância, pelas colunas de vapor de água em ascensão, ou pela curvatura da terra, ou ainda por grandes acidentes geológicos como canyons e qualidades bizarras de crateras desmedidas que, longe de enclausurem, só parecem tornar tudo mais colossal –, esse espaço branco e de um brilho ofuscante, como um mar envernizado de sal ao sol, e que, às vezes, sentimos poder aspirar todo, de um só trago, para dentro dos pulmões, vai, quilómetro após quilómetro, escurecendo. Da areia branca, para uma areia amarelada, camada de milho sujo, desta para o ocre, do ocre para o vermelho-barro. Ao mesmo tempo, os arbustos solitários vão aceitando a coabitação com estruturas maiores, que se começam a assemelhar a árvores. Por alturas do vermelho-tijolo, já as árvores se roçam umas nas outras ao sabor das deslocações de ar, tal como os homens – que também andam ao vento e não sabem muito bem o que hão-de fazer – compondo as primeiras multidões. Entre eles, árvores e homens, a terra sarapinta-se progressivamente de erva, até os matagais acabarem por suprimir essa presença antes unânime que era a terra. As estradas por onde se avança, a princípio arrogantes e altivas na sua fácil penetração do vazio, rainhas da paisagem em terra de ausência de coisas, vão murchando os ombros, atacadas por todos os lados por uma vegetação cada vez mais obesa e atrevida, até se esconderem, timidamente, debaixo de túneis de folhagem. Despontam as primeiras chaminés de térmitas e as primeiras árvores de grande porte, os embondeiros: canhões bulbiformes e maciços de gordura celulósica apontados ao céu com as suas espinhas laterais. Depois, chega a vez do verde: primeiro as palmeiras, como florestas de cotonetes espadaúdos ou de palitos cabeludos, depois os cajus e as mangueiras.

A gente multiplicou-se, tal como as coisas onde habitam, e, ladeando a estrada, ao seu comprido espraiam-se agora muros e paredes de tijolo, adobe, cana, ou portas de automóveis encaixadas umas nas outras como peças Lego, em soma, tapumes de espaço, que abafam os matagais, os troncos e a perspectiva, deixando apenas as copas das árvores, feitas mirones, a espreitar para todo o lado. E de repente a estrada afunila-se num viela, encaixada entre os muros traseiros dos edifícios que subtraem o céu, e lhe deixam apenas clarabóias de poucos centímetros para se saber que é de dia, e na viela encolhida, que não é mais que um fiozinho, um gargalo de rua, avançamos cheios de atrito, deixando cair coisas das mãos e dos bolsos, e perdendo dinheiro nos regateios que não temos força para ganhar; vamos arqueando o corpo para escapar aos rabos sólidos de umas mulheres de um metro e oitenta que a andarem ridicularizam e ofendem os nossos copinhos de leite andantes e frágeis, mais a sua genética pobre, e vamos vergando o corpo para escapar às bolhas de muitos decibéis insufladas pelos enormes rectângulos falantes que aqui decoram a entrada dos supermercados e das boutiques, e que nos transformam em plasticina. E a viela desemboca noutra, e depois noutra, e às tantas já só queremos fugir do dédalo confuso de cimento que nos comprime entre tijolos e sulcos de esgotos a céu aberto, e fugir às manadas de negros que andam contra nós. Fixamos a curva interna do cotovelo às narinas para que filtre o odor nauseabundo que ascende dos esgotos, e praticamos sapateado para evitar o passeio esburacado que dá para as fossas por onde escorre esse cataplasma viscoso de dejectos e detritos, onde incubam enxames de mosquitos que daí emergem para nos virem chupar a carne. Ah, mas o sapateado é tão fatigante porque está um calor tão abafado e nos restam apenas corpos liquefeitos e a cútis feita resina, grudada às paredes e aos pretos e aos altifalantes encavalitados.

Encurralados finalmente numa casa de banho pestilenta, dentro da qual o nosso primeiro passo provoca uma explosão bela e harmoniosa de baratas gigantescas do centro para a periferia do buraco negro no centro do chão, como se tivéssemos atirado uma pedra a um charco e observássemos a propagação concêntrica das ondas, concentramo-nos:

A ciência da viagem está no comércio do amor, no poder de inculcar também a moeda de alma, na vassalagem do medo à vontade, e na tolerância da inexistência de mulheres da limpeza.

Decisivamente, não estamos num condomínio fechado. Peito insuflado, corpo feito granito, marche. O objectivo é apenas seguir em frente.

O melhor do mundo



Como a minha a minha avó sempre disse (e diz) o melhor do mundo são as crianças (e as flores) (o resto são quase tudo sanguessugas, mas isso sou eu que digo... A sabedoria é generacionalmente cumulativa, ou não?).

África está a abarrotar de crianças que, de tantas que são, dificilmente se tornam nos faróis encadeantes, nos centros de atenção (ou centros de mesa) únicos das casas ou das ruas europeias, envidraçados por paredes de tijolo, grades de mãos de mães e avós, tratados como Bonsais. Aqui, o seu tempo infinito mais a sua liberdade completa, acabam por sobrar para nós, e para todos os outros. Por isso mesmo, a viagem neste continente possui essa componente inesperada e constante: qualquer que seja o dia, onde quer que estejamos, chegará, mais cedo ou mais tarde, o tempo de esquecer tudo e de nos entregarmos a um bando de miúdos.

Estas duas, brincaram connosco em Darou Mousti.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Touba

Nota: Touba, ao fim da tarde, depois do último dia do Grand Magal. Ao fundo, a mesquita, lugar de peregrinação para a comunidade mouride de todo o mundo.

Há aqueles filmes de ficção cientifica onde derivações mais ou menos criativas de «Grandes Irmãos», por meio de ecrãs instalados em todas as esquinas das cidades, megafones nas ruas, emissões televisivas de visionamento obrigatório, permeiam e totalizam cada segundo da vida dos seus habitantes, guiando-lhes todos os passos, criando-lhes a ilusão da existência de uma conduta única para a vida, homogeneizando comportamentos e liberdade de pensamento. São, no entanto, parentes irremediavelmente pobres de realidades que só não parecem igualmente fantásticas porque não estão dentro de uma caixa de raios catódicos.

No Senegal, como em tantos países muçulmanos, há essa asfixia permanente dos minaretes, existem esses aglomerados familiares imensos onde vivem dezenas de pessoas que lêem apenas um livro – uma verdade, uma perspectiva (casas que a um ocidental parecem inevitavelmente pobres de um ponto de vista intelectual), mas, caso do Senegal, e no que diz respeito ao mouridismo – seita islâmica dominante no país – acrescesse-se-lhe o sufoco de um país que pára à mínima ordem de Touba (cidade santa do mouridismo) por qualquer discordância política. Adicione-se-lhe ainda um sistema de transportes (milhares de autocarros com imagens e frases alusivas ao mouridismo que fazem circular a seiva humana do Senegal) completamente dominado por Touba; bem como a imagem do Sheick Ahmadou Bamba (o fundador do Mouridismo, nascido em Touba) que está em tudo o que é parede, ao pescoço e na t-shirt de milhares de homens, em autocolantes colados nos lugares mais improváveis, e, às tantas, também quando fechamos os olhos, também nos nossos sonhos; e mencione-se sobretudo – e foi isto que me impressionou determinantemente (em relação a outros países muçulmanos) – esse choque constante, a cada esquina, com homens de todas as classes, profissões e personalidades, empenhados em repetir-nos uma mesma lavagem cerebral de uma forma tão maquinal e monótona que não há como não mandá-los, de vez em quando, dar uma volta. Pior, qualquer conversa que pretenda atingir substratos mais fundos de profundidade, qualquer tentativa de escavar mais terra na mina da vida, arrisca-se a esbarrar inevitavelmente com um intransponível jazigo Bamba, como se do Universo, da relação entre os homens, da paz, da guerra, do amor, da psicologia humana, não houvesse mais a dizer senão Bamba, Bamba, Bamba.

Chegamos à cidade de Touba, núcleo orwelliano religioso, no rescaldo do Grand Magal – principal peregrinação mouride – e ainda por ali andam uns três milhões de almas, agora a tentar arranjar transportes para se ir embora. A nossa entrada é ridícula e disparatada. Remamos contra aquele mar de gente, parte da qual com retratos do grande Kara ao pescoço (Kara é um petit marabout, e uns dos três principais rostos actuais do mouridismo) e vamos – três pelintras num carro a cair de podre que normalmente recusam pães a 18 cêntimos por saberem possível encontrá-los a 15, e que não percebem nada de mouridimo – directos à grande e luxuosa casa do próprio Kara, bater à sua porta.

Entramos, fazemo-nos convidados, explicamos vir de Dara Musti (da casa de um outro personagem importante a que me refiro na história anterior), mas quem nos recebe mostra-se hesitante. Confiantes, sacamos do nosso trunfo, as nossas fotografias com esse mesmo personagem, em Dara Musti, e, vencida a relutância pela evidência factual, somos autorizados a passar a noite.

Entretanto, enquanto montamos a tenda e nos vamos pondo à vontade no local, compreendemos que a casa está pejada de talibes (aprendizes, estudantes corânicos) e baifals (soldados de Deus, disseminadores da palavra sagrada) que, primeiro a medo, depois, ao perceberem que estivéramos em Dara Musti e que estamos minimamente familiarizados com o Mouridismo (na realidade, estamos já, em parte, apenas a forçar interesse para obter hospitalidade), em ataque cerrado e continuado, vão debitando a lenga-lenga mouride que ainda ontem nos retirara a virgindade espiritual, mas que se transformou entretanto numa xaropada a que respondemos com monossílabos enquanto pensamos noutras coisas e vamos tecendo comentários jocosos pelo canto da boca em português e inglês (em menos de vinte e quatro horas passáramos de maravilhamento febril ao mais puro desdém, numa queda nada menos que meteórica).

Enquanto a doutrina espiritual anti-materialista, de partilha, igualdade e amor, nos vai sendo martelada na cabeça, somos – informa-nos um talibe – convidados a jantar pela segunda mulher do Kara, que se encontra na casa, e se prestou a cozinhar para nós. Somos também convidados a esperar um pouco pelo jantar, e enfiam-nos delicadamente num salão onde dezenas de estudantes corânicos que não fazem mais nada o dia todo senão ler o Corão, vêem, de olhos esbugalhados, o Jet Li a enfiar uns pontapés nuns mauzões. Nesse momento, o talibe Moustapha, um jovem de vinte e poucos anos, energético mas precipitado e errático nas palavras, vem-nos informar que a mulher do Kara espera uma doação, uma pequena contribuição para a causa mouride.

- Temos mesmo que dar? – pergunta o Mark.

- Só se quiserem, é por isso que é uma contribuição. – tranquiliza-nos o jovem talibe – Mas tenham em gentil consideração que a mulher do Kara vos está a preparar o jantar – Não, não há mesmo almoços grátis. Falamos entre nós, e acabamos por sugerir como oferenda uma garrafa de vinho que temos no carro, e que pertencera ao seu proprietário.

- Vinho não… Sabem, na fé muçulmana… – e nós assentimos, como que a dizer que sabemos o que ele vai dizer – Mas podem oferece-la ao Grand talibe, é ele que guia todos os outros talibes nesta casa, e iria gostar muito de recebe-la. – Pelos vistos o Grand talibe está ainda longe de ultrapassar a fase de aprendiz, mas nós, que de qualquer forma não queremos vermo-nos livres da garrafa de vinho porque a queremos guardar para outras núpcias, e perante a situação de termos que oferecer afinal não uma, mas duas contribuições, dizemos (ou melhor, improvisa o André):

- Ah, não, deixa estar. É que este vinho é um vinho muito bom, oferecido por um grande amigo nosso, e não queremos dá-lo assim a qualquer pessoa. Estamos a reservá-lo para uma pessoa muito especial.

- Não, não estão a perceber. – o talibe Moustapha mostra-se levemente ofendido – O Grand talibe é uma pessoa muito especial. Agora não vos pode receber, mas eu encarrego-me de levar a garrafa até ele.

O André retorque com mais uma patranha embrulhada numa cadência gentil e paciente:

- Pois, mas para nós seria uma grande falta de respeito para com o nosso amigo dá-la assim, muito menos sem ser directamente à mão da pessoa… Compreendes? – e esta conversa, intermitentemente, prolongar-se-á até ao final do dia.

Entretanto, o Moustapha explica-nos que, depois do jantar, a mulher do Kara nos quer ver, e que devemos dar-lhe nesse encontro a nossa contribuição. O Mark questiona-o sobre que tipo de contribuição ela espera.

- Qualquer coisa. Vocês é que sabem…

- Mas tipo o quê? – insiste o Mark.

- Bem, dinheiro, bebidas…

Eu e o André discutimos em português. O André quer dar à mulher do Kara uma cadeira retráctil Quechua da Decathlon do carro do Frank (que é a forma de esta brincadeira nos custar o mesmo possível, ou seja: nada), e eu irrito-me com ele e comigo mesmo por não possuir o mesmo sentido de humor e a mesma lata que ele. Finalmente, concordamos em comprar umas bebidas: Coca-Cola e Fanta, que é o que há nas boutiques. Informamos disso o Moustapha, que parte inesperadamente com a informação para voltar dois minutos depois a explicar-nos que a mulher do Kara diz que bebidas tem muitas, e para pensarmos noutra coisa. Entretanto o jantar chega, abundante e saboroso, os nossos estômagos vazios agradecem, enternecem-se, e compreendemos que, afinal de contas, estamos a ser muito bem recebidos, e decidimos oferecer dinheiro: uma nota de 1000CFAs por cada um (quase 2€), a nota mais baixa de todas mas a única que respeita a nossa política orçamental de viagem. Finalmente, somos dirigidos aos aposentos da mulher do Kara. Numa divisão anterior, separada daquela onde ela se encontra por cortinados coloridos de um tecido notoriamente rico e delicado, é-nos explicado que nos devemos ajoelhar e caminhar de gatas até sua Excelência. Em fila indiana, os quatro de gatas (nós três e o talibe Moustapha), cada um com uma nota ranhosa de 1000CFAs dobrada em quatro na não (como nos foi explicado, a nota deve estar dobrada em quatro partes e ser entregue discretamente no momento do aperto de mão) como qualquer espécie de imbecis, ultrapassamos as cortinas, e deparamo-nos com uma sala coberta de tecidos coloridos e brilhantes, tapetes persas, sofás rechonchudos e confortáveis, de longe o lugar mais requintado que irei ver durante toda a minha estadia no Senegal. Ao longe, estendida no chão de perfil, como uma Cleópatra (e, de facto, só falta um egípcio a abanar uma folha de bananeira e um outro a levar-lhe uvas à boca), está uma cavalgadura, uma gorda feia e banhosa, de aspecto entediado e ar de quem não sai daquela posição há vários anos, e que nem sequer deve saber estrelar um ovo (quanto mais ter-nos cozinhado o jantar), embasbacada à frente de um grande plasma, comando empunhado na mão a fazer zapping entre centenas de canais satélite.

- Para mulher de um líder espiritual sufista de milhões de pessoas, cuja tónica da mensagem assenta no anti-materialismo, não está nada mal – comentará o Mark mais tarde, embora o lugar perfeito do comentário pertença aqui, a este momento.

Depois, dizem-se três ou quatro patacoadas, o suficiente para perceber que ela não sabe nem nunca ouviu falar de Portugal, sua Excelência performa uma pequena oração por nós, e abandonamos os seus aposentos. Depois, até nos deitarmos, tudo se resume a um ataque final pela garrafa de vinho.

- Mas esta garrafa, na realidade, já estava prometida a um tipo de outro lugar, e só pensámos oferece-la porque se tratava da mulher do Kara, uma pessoa realmente muito importante. – bate-se o André.

- E de onde é esse tipo? – bate-se o Moustapha.

- De Tkoumb. – responde o André, inventando o nome da terra. Eu olho para ele, que mal se aguenta sem rir.

- E onde é que isso é? – insiste o jovem talibe.

- É ao pé de Mboumbo. – grunhe, inventado um outro nome.

- Mbour? – pergunta o talibe Moustapha.

- Isso, isso, Mbour! – diz o André, quase rebentando a rir (era óbvio que se continuasse a inventar nomes acabaria por dizer um nome que se assemelhasse a qualquer localidade real).

- Pois. Mas porque não compram outra garrafa? – volta à carga o talibe.

- Porque este é um vinho especial. Não vamos conseguir encontrar outro igual em lado nenhum.

É inútil transcrever, a insistência processa-se mais vinte minutos, até que o André se lembra de perguntar:

- Mas e o Grand talibe. Onde está ele agora?

- Ele não está em Touba. – e aqui o jovem Moustapha comete um deslize fatal, esquecendo-se que já nos tinha dado a entender uma outra coisa: que o Grand talibe estava presente, embora não pudesse receber-nos – mas mesmo que esteja muito longe, se ele rezar por vocês, vocês vão sentir o efeito. Dêem-me a garrafa que eu próprio lha entrego. Ou não acreditam em mim? – Neste ponto confirmamos o que já suspeitávamos: o jovem talibe está a mentir e está à horas a insistir porque quer a garrafa de vinho só para ele, o que decide decisivamente a questão. Um pouco depois, perante o reforço da solidez da nossa resistência, deixa-nos finalmente, completamente furioso. Mas não há nada a censurar-lhe. Mesmo um talibe que abandonou a sua vida normal para vir morar para Touba e seguir a via de Sheick Ahmadou Bamba não resiste naturalmente à perspectiva de um bom vinho.

O Senegal é um país multifacetado, profundo, complexo, mistura de variadas etnias e religiões. É por isso mesmo que salta mais à vista a máquina homogeneizadora do mouridismo. Neste contexto, a sua popularidade, a sua unanimidade crescente, talvez se possa apenas explicar por um país que, não sendo miserável como outros, é sempre muito pobre. Como um próprio mouride me verbalizou um dia: no meio de tanta miséria, se não fosse Bamba, o que seria de nós? Só assim me parece ser possível explicar (ainda que simplisticamente) a tremenda popularidade desta e de outras seitas muçulmanas no Senegal. Só assim se explica as crianças que não vão à escola para pedirem pedirem na rua, não para o sustento da família, mas para o Marabout, e se explica que, numa realidade em que quase todos os homens lutam pela vida diariamente, e em que o que há é o que têm no bolso (aqui não há contas-poupança ou dinheiro debaixo do colchão), esses homens possam mesmo assim chegar ao final do dia e ser capazes de comer com metade, e de tornar mais difícil o dia seguinte, entregando o resto ao Marabout.

Sobre a correspondência entre o ideal depositado pelas populações nas altas esferas deste movimento e a forma como estas esferas aplicam esse ideal às suas próprias vidas, esta história, mas sobretudo a anterior (intitulada Dara Musti) pretendem ser ilustração suficiente. Sobre a seriedade e gravidade com que se deve tomar toda a «estática» que interfere nessa correspondência, confesso, não tenho nenhuma ideia, nenhum julgamento, não para este lugar.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Dara Musti


Nota: A única fotografia sobrevivente de Sheikh Amadou Bamba.

Sé verdade que esse estado de espírito superiormente desprendido (o abandono do espírito – que é tão leve – aos caprichos do vento – que é tão forte) é o código de entrada na caixa forte do inesperado, nunca me pareceu essa ideia tão válida como naquele dia…

Chegamos à vila santa de Dara Musti (Norte do Senegal) pelo meio da tarde. Na grande praça central de terra batida, ao fundo da qual se ergue uma mesquita alva e de proporções anormalmente grandes, tocámos à campainha num portão de um recinto que nos pareceu ser uma escola, para pedir hospitalidade.

À porta apareceu-nos Suru Fall, um negro alto e espadaúdo, elegantemente vestido, de gestos dramatizados e efeminados, que nos fez entrar, com muitas vénias e pedidos de desculpa (sobre o quê, não se chegou a perceber, mas em África é frequente pedir-se perdão aos brancos por tudo, mesmo quando, por exemplo, eles tropeçam numa pedra na rua, como se fosse culpa do africano que a pedra jazesse ali, ou que África estivesse toda esburacada), e nos conduziu a uma sala a rebentar pelas costuras de vozes de homens, copinhos de chá e mãos agitadas a espremer arroz de enormes pratos e a enfiá-lo às bolas nas bocas. Entrámos, e fomos recebidos com algazarra e uma alegria que, nos primeiros instantes, nos pareceu excessiva, mesmo para África:

- Entrem, entrem! Foi Deus que vos trouxe até nós. – diziam muitos deles.

- Agora ficam aqui, e mais tarde vão conhecer o “grande irmão”. – disse-nos o Suru, em tom de quem fornece instruções.

Sentámo-nos e deixámo-nos automaticamente contagiar por uma avalanche verdadeiramente poderosa de sorrisos, emanados por uns dez homens. Não sabíamos quem era aquela gente. Lembro-me que a primeira coisa que me saltou à vista foi que quase todos traziam imagens de líderes espirituais (que se repetiam em posters nas paredes) penduradas ao pescoço em pequenas bolsinhas de couro, e envergavam t-shirts estampadas com a foto de Kara, um Petit Marabout (pequeno líder espiritual muçulmano).

Depois, durante algumas horas fomos, sem o sabermos, introduzidos à seita local (melhor dizendo, nacional), que até ai ignorávamos, o Mouridismo, confraria sufista, e ramo do islão.

Os homens começaram por discorrer sobre os nomes de uma interminável linhagem de Grand Marabouts, Petit Marabouts, e homens santos ligados à irmandade mouride. Depois, seguiram-se os incontáveis milagres realizados e contextualizados pela história de vida Sheikh Amadou Bamba, místico e líder religioso muçulmano que nasceu a 20km dali, em Touba, e que deu origem ao Mouridismo.

As suas vozes excitadas iam compondo gráfica e eloquentemente a história de Bamba, prendendo-nos a atenção durante mais tempo do que seria de esperar e, ao mesmo tempo, como pano de fundo, uma cassete de rádio gasta pelas inúmeras audições rodava para trás e para a frente a «Melodia Divina», onde Kara, acompanhado por uma penosa e sofrida orquestra de crianças – como se quem tocasse fosse na realidade um conjunto de almas penadas – ia gritando, com uma voz bruta e feia, os 80 nomes de Deus (“o grandioso, o incomensurável, aquele que te eleva, aquele que te diminui…”), em seis línguas (árabe, wolof, inglês, espanhol, francês e italiano), o que ia perfazendo levas de 640 agulhas por audição, nada inofensivas.

Ao mesmo tempo, incansáveis, os homens transmutaram o assunto da conversa para uma espécie de tentativa de cozinhado comunitário, em tempo real, da explicação da nossa presença ali (algo que, no nosso entender, não precisava de explicação): afirmou-se a irrelevância da nossa diferença de tons de pele, de nacionalidade e de religião e, quase ao ponto da comoção geral, toda a gente celebrou e aplaudiu a nossa presença (minha, do André, e do Mark), e, repudiando-se a teoria do acaso, reafirmou-se essa inescapável componente sagrada do nosso encontro, conspirado e destinado por Deus.

Bamba foi um pacifista (para ser excessivamente sintético), um Ghandi africano, e, para o bem e para o mal, todos os pequenos gestos realizados nesta sala derivavam necessariamente dessa inspiração. Havia uma gentileza permanente na divisão da comida – enquanto comíamos, do mesmo prato, as mãos ocupavam-se em partir a carne e o peixe e colocá-lo cuidadosamente na zona do prato mais perto de nós; havia atenção ao chá – fomos sempre servidos primeiro –, caíram silêncios reverenciais sobre a sala sempre que um de nós os três ousou intervir. Por causa disso, encetar um raciocínio em voz alta naquela noite, fomo-lo percebendo, era inevitavelmente partir para uma pequena conferência, um acto público, e, dada a atmosfera, resvalar inevitavelmente para um exercício de diplomacia moral e cultural que, à medida que se foram sucedendo, se tornavam mais exagerados, eloquentes, mas também mais sinceros. De facto, começámos a dar por nós a concluir tudo o que dizíamos como se a nossa boca se tivesse transformado na dos nossos convivas, como se já não soubéssemos agir de outra maneira em relação ao outro senão convergindo para o êxtase comum:

… porque há apenas um Deus. Viajámos, e todos os homens que encontrámos no caminho, com quem nos cruzámos, tinham duas mãos como estas, um coração, experimentavam as mesmas emoções; choravam, e riam, zangavam-se e apaixonavam-se; e isso não pode querer dizer senão que somos todos iguais, filhos do mesmo Deus.

- Isto aqui é uma espécie de Universidade de Deus. Somos estudantes de teologia. – deixou escapar alguém, e compreendi por fim que a ocupação desta gente era precisamente a presente: falar, falar, soltar a língua, soltar o coração, criar uma incontinência de amor verbalizado, uma torrente crescente, compacta e fluida de gentilezas, elogios, e comunhão mental; e também nós começámos a sentir os nossos pequenos gestos – apertar as mãos, dar espaço ao outro para se sentar ou sentir confortável, abraçar – a infectarem-se de uma cortesia que, se a início era forçada, se foi tornando completamente espontânea.

A conversa prosseguiu, mais veloz. Recuperou-se a História: os portugueses em África e os mouros na Península Ibérica. Tudo isto foi recordado com alegria, como um passado límpido, sem atritos nem fricções, como se esses antepassados comuns não tivessem feito mais do que se rir, misturar-se e tocar-se entre si, tal como fazíamos agora; e, com os copos de chá, brindámos a essa prova antiga desse destino de confluência.

Dei então por mim a contar e achar numa insignificância como o facto de a minha mãe dar aulas numa escola em Lisboa que fica do outro lado da estrada de uma mesquita, uma prova adicional, genuína e incontestável da quintessencial proximidade entre muçulmanos e cristãos, Lisboa e Dara Musti (e se qualquer insignificância, se dita com a entoação certa pode mudar o mundo, este foi o caso em que dei por mim a causar explosões de felicidade por uma coisa tão casual como o concurso do Ministério da Educação que um dia terá colocado a minha mãe “do outro lado do passeio”). Reduzidos a este estado de iluminação ou imbecilidade (quem sou eu para o dizer?), a um «transe da palavra trocada», crescia-nos das agruras a sólida certeza de que éramos também nós a, activa e independentemente, criar e trocar a palavra, direccionar o discurso, embora, e esta distância, compreenda que essa sensação de liberdade fosse talvez apenas o objectivo – mesmo inconsciente – desta gente. Afinal, tratam-se de profissionais da palavra; não estavam ali a brincar.

- Mas mesmo os teus olhos castanho escuros! – exclamou um tipo distintamente simpático e esperto chamado Seni – isso é sangue negro que tu tens. Tu… – gaguejou – tu és como nós. – disse, com uma convicção desarmante, e fechando o punho como que a simbolizar essa carne nuclear comum donde ambos brotáramos (mesmo se eu sou demasiado claro até para um português), e eu, por segundos, acreditei: Tenho sangue negro, pois claro que tenho, e sinto-me orgulhoso disso! E abraçámo-nos e os outros olharam para nós, enternecidos: o branco e o negro enlaçados, momento de celebração do Homem.

Começaram por essa altura a falar da herdade para Mourides que compraram na Califórnia com os donativos de milhões de crentes, da revista do mouridismo, agora publicada em dezenas de países, da celebração do Grand Magal – principal celebração mouride – agora alastrada a Itália, à França, etc., e de como isso lhes dava esperança para o seu grande projecto: o Movimento de Unificação Universal de Deus. E eu e o Mark e o André limitávamo-nos a abanar a cabeça afirmativamente, esquecidos do mouridismo, esquecidos porventura até de que era de Deus que se falava, sequiosos apenas de concordar com tudo, de confluir, de estar em sintonia, de puxar sempre mais longe os Joules da energia empática que pairava na sala (éramos homens de vinte e tal anos, isso é certo, maiores e vacinados também, mas, ainda assim, não é de menosprezar o efeito de um primeiro febrão espiritual).

Subitamente, dei por mim fora da sala, os olhos estremunhados e remelosos, como se tivesse acabado de acordar. Precisava de urinar (é o corpo, como sempre, quem chama a alma à terra). Lá fora, anoitecera sem que eu me tivesse apercebido, e, à medida que me afastava da sala, olhava para ela, e sentia os risos e as palavras excitadas a emanarem da sua porta, como se a claridade luminosa e vocabular fossem apenas partes de uma mesma radiação.

Caminhei um pouco, e comecei por fim a aperceber-me do lugar onde estava: era um espaço amplo, do tamanho de meio campo de futebol, polvilhado de pequenas casas, e atulhado de seguranças a patrulhá-lo. Um deles aproximou-se. Uma besta monstruosa que estava de óculos escuros postos embora estivesse completamente de noite, e de cachecol Dolce & Gabbana bem enrolado no pescoço embora fizessem uns 30 graus.

- Quem és tu?

- Estou aqui hospedado. – respondi, e ele continuou a olhar para mim, mas no escuro, e com a expressão facial tornada incompleta pelos óculos escuros, não lhe percebia a cara – Pelo Suru. Foi ele que nos hospedou. – acrescentei, e o tipo disse:

- Ah, ok. Eu sou segurança. Estou aqui a guardar o sítio porque aqui se fazem coisas muito importantes, e por isso preciso de saber quem anda por aqui… – disse, num francês rudimentar – Sou um ex-mercenário. Estou aqui porque… bem, arrependi-me de certas coisas na minha vida, e vim para aqui seguir a via de Bamba.

- Ah sim? Ok. – disse eu. – Olha, desculpa, tenho que ir. – e apressei-me a voltar para dentro da sala de onde ainda emanava a benfazeja radiação de palavras e de luz, um pouco confundido, a cabeça a latejar. Pela primeira vez, viera-me à mente a dúvida : mas que raio de lugar era aquele? E perguntei-me como teria sido possível que não me tivesse questionado sobre aquele sítio até aí. Que teria acontecido ao meu sentido critico? Qualquer coisa no chá?

Assim que entrei no quarto, encontrei um Suru agitado, que tinha posto o André e o Mark a calçarem-se e a arranjarem-se.

- Ah! Estás ai. Estávamos à tua espera. Depressa! Estás pronto? Temos que ir visitar o «Grande Irmão». Foi ele que vos acolheu aqui!

Dentro de uma salinha contígua à nossa, encontrámos um enorme gordo careca, muito negro, embasbacado perante um ecrã de televisão onde o Lima Duarte ia tendo uma zanga de amor dobrada em francês. Deste negro só se viam os dentes de um sorriso total. Este homem (cujo nome não revelo, mas que é um dos rostos do Mouridismo, reconhecido pelo nome por qualquer senegalês) estendeu-nos umas manápulas de gorila, com um sorriso que lhe abriu todas as feições do rosto, e recebeu-nos como se estivesse à nossa espera, como se nos tivesse endereçado um convite para um encontro meses antes e ao qual nós, agora, nos tivéssemos limitado a comparecer a tempo e horas. Depois, levou uma manápula ao crânio e, enquanto esfregava tranquilamente os pneus de carne enrodilhados na nuca, recontou-nos a história de Sheikh Amadou Bamba: os seus milagres, os 30 anos de exílio e sofrimento, os seus escritos ainda enterrados no meio do oceano, a vez em que rezou no mar, flutuando, depois de o ter sido impedido de fazer a bordo do navio daqueles que o consideravam louco, mil e uma histórias veiculadas por um vozeirão límpido, claro, e hipnotizante. Depois baptizou-nos:

- Tu, Francisco, a partir de agora, és Bamba, aquele que planta a árvore; tu, André, és Nourrin, aquele que protege e defende a árvore, e tu, Mark, és Kara, aquele que distribui os seus frutos.

Obrigou-nos a repetir os nossos novos nomes, perguntou-nos se compreendíamos a importância deste momento nas nossas vidas, e lembro-me de sentir o Mark a derreter-se e a comover-se até às lágrimas, e de me torturar uma hesitação imensa entre me deixar arrepiar, deixar-me levar, ou distanciar-me bruscamente de tudo aquilo (de qualquer forma, mal conseguia acreditar na facilidade com que o meu cepticismo se deixara tão facilmente escorrer pelo ralo do lavatório).

E as manápulas do grande e gordo irmão, ao compasso das suas gargalhadas, continuavam a amassar-nos as cabeças já amolecidas, e foi ai que, subtilmente, o tema de conversa divergiu.

- Portugal abandonou a Guiné e actualmente é o Senegal que toma conta dela. O Senegal tornou-se uma espécie de irmão mais velho. Mas com vocês vamos reforçar essa ajuda. Conheço muito bem o Nino [ainda não tinha sido assassinado] e o tio dele. O Nino fez muito pelo povo guineense e vou falar com o tio dele para que sejam recebidos condignamente na Guiné. Tu, Mark, vais ser embaixador do mouridismo em Londres. Vais ser um homem importante, com muito poder, mas sinto-te preparado para isso. Quanto a vocês os dois – olhou para mim e para o André – estamos a falar de 5, 10, 20 mil euros a cada um, contando comigo, claro – e riu-se. – Vamos agendar um encontro, e vou enviar um carro com cheffeur para vos ir buscar. Vamos vestirmo-nos bem, e vamos conversar propriamente, como gente séria, e desenvolver…. bem… projectos. Eu estou nos diamantes em Angola, nas telecomunicações no Senegal, no peixe na Mauritânia, enfim, corporações! – exclamou, de repente – Vamos desenvolver corporações! Meios de juntar esforços entre as pessoas. – acrescentou, como se procurasse uma forma de encaixar as “corporações” num outro tom qualquer de discurso, mas sem fazer grande esforço para isso – Corporações – repetiu, e calou-se, subitamente distraído e absorto, fitando o vazio, como se essa palavra lhe enchesse o imaginário…

Ouvi esta absurdidade – mais caricatural que um filme – mas não cheguei a perceber se o “Grande Irmão” nos tentava enganar, se entreter, se nos tomara por ricos, ou porque perdia sequer o seu tempo com gentinha como nós; e simplesmente não soube como reagir. Não me senti chocado, senti-me apenas dormente, sem conseguir pensar. Olhei para o André e para Mark: também eles me não pareciam surpreendidos com o rumo que a conversa entretanto tomara.

Na manhã seguinte, acordei, e, quando dei por mim, estava ajoelhado, a receber uma bênção, do filho do Kara, que acabar de chegar a Dara Musti e saíra de um SUV luxuosíssimo, embrulhado num lençol branco Uns minutos depois, finalmente, dei por mim a pensar… 14 milhões de mourides. 4 milhões de pessoas estão, neste momento, aqui ao lado, em peregrinação para chorarem até ao histerismo ao ouvirem a voz de tipos como este. E o “Grande Irmão” aqui a rir desta maneira; e o pior é que tem um sorriso bestial, de quem sabe gozar a vida. Aqui, ri como nenhum outro, e é preciso ter em conta que os africanos riem bem. É demasiada gente… Digam o que disserem, a razão está do lado dele. O “Grande Irmão” é um vencedor. O idealismo é inveja dos ricos, a rectidão moral, âncora identitária de quem não tem nada. A vida não é para ser levada a sério. Talvez eu e o André possamos mesmo fazer algum negócio com este tipo. Deixarmos também nós de levar a vida a sério…

Sai cá para fora, meti a cabeça debaixo de uma torneira, e depois passei a mão pela fronte – que estou eu a pensar?

Nesse momento, o André abordou-me:

- Vamos sair deste sítio muito rápido. – disse.

- Vamos.