Na praia que fica ao lado do nosso parque de campismo, em Sukuta, a 20km de Banjul, capital da Gâmbia, o exército gambiano executa, semanalmente, uma operação original e caricata: varre a praia de uma ponta à outra capturando os jovens gambianos que por lá andam a importunar os turistas (a tentar impingir coisas ou, somente, a conversar), pontapeando-os directamente para a cadeia por um período (normalmente) fixo de sete dias.
Embora esta manobra me tivesse proporcionado um dia de praia sossegado, e a tranquilizante contemplação de um areal vazio, o relato encarniçado de um local, explicando-me a razão de uma praia tão despovoada num dia de sol tão formidável, indignou-me. Imprevisivelmente a minha indignação daria lugar à aceitação da burlesca prática militar. Os dias em Sukuta sucederam-se, as idas à praia também, tive o prazer de privar com os jovens gambianos e de me espojar no areal reocupado e fui-me tornando progressivamente reconhecido à utilidade deste corpo do exército.
A Gâmbia, antiga colónia britânica, é um território absurdo onde vive uma gente incrivelmente chata.
- Hey man, how´re you doing? – grita, de dentro da viatura, um rapaz dos seus vinte e poucos anos, que enverga uma t-shirt do Liverpool, e usa um cabelo de esfregona, uma tigela invertida de tiras Vileda curtas e finas, envoltas num lenço – Não te via há imenso tempo.
Eu estou na Gâmbia apenas há três dias. Esforço-me, ainda assim, por lhe tirar bem as medidas e tentar perceber se o conheço de algum lado. Mas julgo que não.
- Estou bem, e tu?
- Que fazes?
- Vou comprar pão.
- Entra aí, eu levo-te lá. – e abre-me a porta do lugar do morto.
- Não, deixa estar. Eu vou a pé.
- Com este calor? – exclama – You´re crazy. Step into the car man, no problem.
- Okay. – concordo, porque o argumento da temperatura é válido, e entro na viatura. O tipo arranca.
- Então, e o teu pai? – pergunta-me, de chofre.
- O meu pai?! – replico, admirado.
- Sim, o teu pai.
- O que é que tem o meu pai?
O gambiano olha para mim, faz uma careta, aparentemente atrapalhado, e muda de assunto, com redobrada convicção:
- Então e a tua namorada meu?
Não consigo conter uma gargalhada e confirmo a suspeita de que este tipo está mesmo a inventar.
- Não tenho namorada.
- Então vou-te arranjar uma amanhã. Gambian girls, they´re nice man!
Ando a ouvir esta conversa várias vezes ao dia e apresso-me a mudar de assunto antes que se adense, e tenha que explicar a uma pobre rapariga que ele vá entretanto buscar ao outro lado da cidade que não é nada de pessoal, mas que não quero nada com ela (não seria a primeira vez):
- Olha, diz-me uma coisa. As lojas já abriram [é Domingo depois de almoço, e na Gâmbia as lojas estão normalmente fechadas até meio da tarde]?
- Ainda não. – e ouço este álibi para sair do carro, oferecido de bandeja, com satisfação.
Falo-lhe num tom simpático:
- Sendo assim deixa-me sair aqui, já que ainda não andámos quase nada. Vou fazer tempo para o campismo, para depois ir comprar o pão
O gambiano parece ficar aflito, pára o carro bruscamente, mas deixa o motor a trabalhar, e vira-se para mim:
- Ah, mas eu conheço um sítio aberto e vamos lá.
Compreendo que não devia ter entrado no carro, e lembro-me do André, táctica recorrente de drible social.
- Não posso. – respondo – Tenho que ir buscar um amigo meu ao parque de campismo. Está lá à minha espera para almoçar.
- Então vamos lá buscá-lo.
A partir daqui começo a inventar:
- Só que ele ainda está o no duche.
- Não há problema. Nós esperamos por ele.
Decido que tenho que dar uma machadada na conversa enquanto é tempo:
- Pá, mas eu quero ter o dia relaxado. Depois combinamos algo.
Mas o golpe desferido é insignificante. Pode-se insultar um gambiano mas isso não o vai impedir de continuar a querer ser nosso amigo.
- Depois quando? À noite?
Invento, sem me esforçar por soar convincente:
- À noite vou ver um jogo de futebol.
- Quem é que joga?
- O Chelsea.
- Mas o Chelsea não jogou ontem?
- Pá, meu, na realidade não sei quem joga. É o meu amigo que sabe.
- Talvez tenha sido o Manchester City.
- Pá, a sério, honestamente não sei.
- Então e depois do jogo? – insiste o tipo, que me está a espetar agulhas na paciência a cada sílaba que vomita da boca.
- Depois há uma festa reggae. – ocorre-me dizer, ainda com menos convicção.
- Então eu passo aqui para te vir buscar.
- Mas eu já combinei com outras pessoas às 22h.
Olha para mim com um ar desapontado.
- Man, man, man, man… – murmura baixinho, de si para si, fitando o tablier, com os olhos vazios, e abanando a cabeça. Depois, com uma expressão suplicante, absolutamente deslocada do seu ar de rapper mauzão norte-americano, e uma energia redobrada, pergunta de novo:
- Então quando é que nos vamos ver?
- Pá, não sei…
- Dás-me o teu número de telemóvel?
- Não tenho o telemóvel.
- Então dá-me o do teu amigo.
- Mas ele vai-se embora amanhã de manhã.
- Então fica com o meu número.
- Okay. – acedo, porque ele não me dá hipótese.
- Tens caneta?
- Não.
O gambiano procura atabalhoadamente uma caneta no carro. Verifica o porta-luvas, debaixo dos bancos, nas portas, no tablier, mas não a encontra.
- Don´t you like gambian girls?
- Sim, gosto.
- Meu, amanhã vou-te arranjar uma nice gambian girl.
- Okay, okay. Isso seria fixe…
- Então olha, o meu número é 76…
- Mas queres que o decore? – pergunto, estupefacto. Não quero acreditar.
- 76. – volve ele, em resposta à minha pergunta.
- 76 – repito, absolutamente enfadado.
- 35.
- 35.
- 38.
- 38.
- Agora diz o número completo.
- 76 35, euh…
-38 meu! 38! Tens que prestar atenção. Podes repetir?
- 76 35 38. – digo, e não quero acreditar no nível de exasperação a que este tipo me está a fazer chegar.
- Okay. Eu sou o Dave. – apresenta-se – Assim que chegares ao parque de campismo vais apontar o meu número num papel, okay?
- Não te preocupes. Eu sou o Francisco. Nice to meet you.
Giro o corpo, enfio a mão no puxador da porta, e inclino o corpo todo, executando o gesto corporal para sair do carro.
- Mas… Mas vais-me ligar não vais? – diz-me ele, puxando-me pelo ombro, de novo recorrendo à voz melosa e implorante.
- Vou. Não te preocupes.
- Okay. Olha que vou ficar à tua espera.
Volto a tentar sair do carro, mas ele insiste.
- E quando é que me vais ligar?
- Pá, amanhã.
Nesse momento, descontrola-se:
- Eu quero muito ser teu amigo meu. – diz, aparentemente incapaz de se conter, como se estivesse desde que entrei no carro para o confessar, e eu ouço esta hipérbole gambiana de manifestação de amizade (típica, antológica, verdadeira instituição nacional, expressa incontáveis vezes ao dia) e quase consigo prever a afirmação que se sucede – Tu és um gajo muito fixe.
Mas como é que estes homens crescidos dizem estas coisas? Uma vez sem exemplo, decido extrair algum gozo deste teatro. Pouso-lhe a mão no ombro, olho-o nos olhos, e confesso-lhe, com o tom mais lamechas que consigo:
- Também quero ser teu amigo. – e viro-me, aproveitando o abalo emocional infligido, e ponho-me fora do carro tão depressa quanto consigo. Já com os pés em terra firme, ele continua:
- Wait! Diz-me só o meu número outra vez.
- 76 35 38 – disparo, o mais resolutamente possível.
- Nice. Man – e o Dave sorri-se todo, feliz por constatar que o memorizei. Talvez acredite que lhe vou mesmo ligar – You´re a very nice guy. – e deixa-me, por fim, seguir caminho. – See you tomorrow man!
Calcorreio nem dois minutos de passeio, e há um outro tipo do outro lado da rua, com a camisola do Manchester United, que me cumprimenta.
- Hey man!
- Hi! – respondo, já a revirar os olhos.
- How are you doing?
- I´m fine, thanks. And you?
- Tenho-te visto passar… – diz-me.
- Ah sim? – digo-lhe, e só me apetece mandá-lo dar uma volta.
- Então, onde é que vais? – pergunta-me, bem-disposto, com essa mesma doçura melosa do Dave, do Ali Baba, do Moustapha, e de todos os outros gambianos, e, por momentos, tenho a sensação de que esta gente não tem mesmo nenhuma segunda intenção quando fala connosco. Talvez seja verdade que só queiram conversar, passar momentos agradáveis juntos, e trocar palavras simpáticas como fazem os verdadeiros amigos.
Durante mais trinta minutos fico a falar, a trocar números de telefone, a esquivar-me a rendez-vous.
Mais de uma hora depois de ter deixado o parque de campismo consigo finalmente regressar, sem pão, sem nada, apenas com a cabeça a latejar do volume industrial de discurso vazio produzido, nada que pudesse surpreender o André se eu lho comunicasse, que, sentado numa cadeira a ler um livro, põe os óculos e me diz, espontaneamente:
- Tenho estado a pensar e acho que devemos começar a apanhar táxis do parque de campismo para os sítios para evitarmos estes gambianos. E o resto do tempo não saímos daqui. – ri-se – De outra forma não se pode.
- Pá, não imaginas como estou de acordo contigo. – digo-lhe, com toda a convicção que consigo emprestar à voz.
Depois sento-me ao lado dele a ler um livro, e agradeço aos deuses esta medida anti-socialização alemã que, quando chegara, me tinha parecido uma inaceitável reminiscência do Terceiro Reich: uma taxa de entrada no parque para gambianos de 2.50€ criada pelo casal de alemães que o gere, precisamente para os manter longe da vista.
Sossegado a ler o meu livro neste paraíso gambian-free, com um gozo sádico, imagino as montanhas de gambianos que entretanto, como todos os dias, se estão a acumular do lado de fora do parque, à minha espera e do André, apenas porque, distraidamente, numa conversa absurda no meio da rua, caímos no erro de lhes revelar o lugar da nossa estadia, porque, perante massacres de insistência lhes replicámos também quero ser teu amigo, porque, perante teimosias invencíveis, aquiescemos sim sim, vemo-nos amanhã. Imagino-os a arranharem o portão do parque com as unhas, a arrancarem cabelos, a apanharem insolações, a projectar planos desesperados para virem ter connosco – cordas, túneis, cabos, picaretas – e, já sem esperança, delirantes, a lançarem os corpos contra os muros, tudo, apenas, em nome da amizade.
- Esta gente não tem nada para fazer. – diz o André, enquanto vira uma página, parecendo ter ouvido os gritos de agonia dos gambianos lá fora.
- São uns chatos de primeira. – digo eu.
Sem comentários:
Enviar um comentário