sexta-feira, 12 de junho de 2009

Descrição de uma ilha II

Em Botem, soube que estava num lugar diferente quando três rapazes com quem choquei no meio da floresta, envergando camisolas de futebol, reagiram com indiferença quando mencionei o Cristiano Ronaldo. Não o conheciam. Nunca tinham ouvido falar de tal pessoa. Nuns 5.000km de costa africana era a primeira vez que me sucedia conhecer indivíduos remetidos a esta sorte de ignorância.

Convidam-me a pernoitar em casa deles, proposta irrecusável que foi sendo repetida dia após dia, até já não ser preciso renová-la, aprisionando-me nesta Botem melosa e perigosa onde o passado se dissolve com facilidade na brumosa floresta tropical e o resto do mundo perde a importância.

A casa não tem rei nem roque. Pelo menos assim me parece, a mim que não entendo nada do que dizem. Há muito mais crianças que adultos, que, de resto, raramente se mostram. Homens, em cinco dias, vi-os duas ou três vezes, sempre cansados, mudos, agarrados a uma cerveja ou a uma caneca de vinho de palma, derretidos, fundidos ao chão ou a uma cadeira. Mulheres são quatro e andam pela casa de mamas flácidas de fora a gritar umas com as outras, a falar ao mesmo tempo. Nunca as vi sentadas à mesa para comer, ou juntas a cavaquear em tom que, pelo menos na minha imaginação, se adequasse à produção de um discurso construtivo, e algo que me parecia crucial a esta anarquia: uma discussão reflexiva sobre a casa que administram, sobre a organização de tarefas domésticas, sobre a estruturação dos horários desta gente toda. Das expressões carregadas, do tom de voz, parecia-me apenas estarem sempre todos zangados uns com os outros.

Estou sentado numa cadeira num enorme salão vazio. Exceptuando o poster do Papa não existe um único objecto ou imagem onde pousar a vista. Já vi hospitais mais ornamentados. O exterior emana, através das portadas de alumínio das janelas, ar quente e frutado. Lá fora, um sol poderoso dardeja as plantas e parece obrigá-las a evaporarem-se, a diluírem na atmosfera o seu cheiro.

Alguém chama pela Clementine. Grita estrondosamente: “Clementine?”. A resposta não vem e voltam a gritar. A Clementine, que está a ouvir tudo na outra ponta da casa mas está ocupada a varrer o chão não responde até acabar de o varrer. Mas a primeira, qual disco riscado, continua a gritar o seu nome ao expoente da loucura, não importunando aparentemente ninguém excepto a minha pessoa. Quando isto se passa de noite, com tudo a dormir, tanto pior para quem dorme: processa-se exactamente da mesma maneira. Aqui fala-se (grita-se) de todo o lado para todo o lado, durante o tempo que for preciso. Da cozinha para a sala, da sala para a casa de banho, de cama para cama, de limite da aldeia para limite diametralmente oposto da aldeia. E se a vontade de falar vier dentro de um quarto com um bebé a dormir não acontece simplesmente nada porque os bebés, habituados a este escarcéu, continuarão a dormir na paz dos anjos.

Mais tarde, Émilie procura a escova para a sua peruca. A demanda desenrola-se ao longo de largos minutos e adquire um carácter epopeico. Embora a escova se recuse a aparecer, Émilie não conhece a dúvida, a desistência, a fatiga ou o obstáculo. Varre a pente fino todos os quartos (que, como em quase todas as casas dos djola dão para o salão principal) até sobrar apenas um cuja porta está fechada. O paradeiro da escova é evidente. Sem hesitar, Émilie abre a porta e surpreende um jovem casal no acto amoroso. Imprevisivelmente, o sucedido não parece perturbar a sensibilidade de ninguém: nem de quem faz amor, nem de Émilie, que, contra todas as probabilidades, entra quarto a dentro com o mesmo empenho com que entraria se estivesse vazio, nem de quem vê a cena de fora do salão.

O tempo escorre, pegajoso, e continuo sentado no mesmo sítio, a ver se me liquefaço, a aprender com os homens a ser como eles. Para o meu objectivo contribui o facto de, ao contrário de tantos outros lugares até agora – e esta é uma grande diferença – aqui já ninguém parecer muito interessado em mim. Ainda não me tinha sentido tão pouco importante em África. Não me fazem tantas perguntas, mais, não me fazem “boas” perguntas (adequadas ao meu mundo). Ao início, interpreto-o como um sintoma de simples falta de interesse. Com o tempo percebo que apenas não sabem o que perguntar. Aqui não há electricidade, não há TV, não há jornais, não há livros, não há 11 de Setembro, não há Obama, tudo o que chega de novo é trazido pela boca de quem passa. Ninguém me faz perguntas porque ninguém sabe por onde começar.

Percebo-o na ausência de noções de espaço. Se a imagem da Europa antes era nebulosa, alicerçada nas galáxias difusas do “lux”, do dinheiro e, porque não, na miragem da felicidade terrena, mas mantinha um mínimo de coesão (sabe-se que fica em geral para Norte e que se trata de um aglomerado de países, que a partir das fronteiras de uns se acede por terra aos outros, etc.), aqui já não há qualquer noção de macro-espaço. Quase ninguém saiu da região da Casamance. O mundo é tão estilhaçado como nomes de países ditos ao acaso, como quando jogamos ao Stop, a ausência de pontos de referência é total. Não há sequer noção da relação com o Atlântico (a 40km de distância!), e, por exemplo, também não há mínima noção – mística, religiosa, cientifica – dos astros. Em djola (como em wolof) não há vocabulário que diferencie estrelas e planetas: há a lua, o sol, as estrelas, e é tudo, o que quer dizer que o conhecimento astronómico destes povos nunca passou dessas três grandes diferenciações que uma criança também pode fazer.

Percebo-o na ausência de imagens. Ao meu lado, Lili, uma menina amorosa de seis anos que emborca o fundo de uma cerveja (entre os djola, ou pelo menos nesta região, a cerveja é dada às crianças para acabar), está há 20 minutos sentada no chão siderada por uma folha rasgada de um catálogo de um Camel Trophy. Que vê ela na estrada cor de tijolo que rasga uma selva de palmeiras? – paisagem afinal pouco diferente do que se pode ver pela janela de casa. Como pode alguém, mesmo uma criança, perder-se tanto tempo nos abismos de uma imagem tão insignificante?

Mas há aqui algo mais que ausência de informação e ignorância. Labora aqui um enigmático mecanismo que é novo e desconhecido para mim. É um facto que, nesta casa, vivem todos juntos e ao molho e que auto-elogiam a sua cultura de solidariedade e proximidade. No entanto, ninguém respeita a privacidade, o sono ou a palavra de ninguém, ninguém quer, aparentemente, saber de mim, ou dos outros. Podia ficar aqui a viver para sempre sem pedir autorização e ninguém diria nada desde que contribuísse para a casa. O indivíduo é muito pouco importante.

Habita aqui um ser espectral uma velha senil tão velha que ninguém lhe sabe a idade. Nunca vi um negro tão estragado pelo tempo. Não terá menos de 100 anos. Esta carcaça amarrotada passa os dias a falar sozinha no quarto com as paredes, a um ritmo lento mas constante. Esporadicamente, vem ao salão, senta-se, tagarela um pouco com a atmosfera e volta para o quarto. Fecha a porta, arrasta, com enorme dificuldade, um pedregulho para a imobilizar e volta ao seu monólogo. Os seus seios são os pedaços de tecido humano vivo mais estranhos que já vi. Parecem-se a dois pénis engelhados saídos do mar frio da Costa da Caparica, ou duas minúsculas trombas de elefante, e pendem-lhe do tronco com a mesma flacidez que as pernas ou os braços, como protuberâncias pele rugosa, bolsas cheias de lombas como sacos de compras. Em cinco dias não vi ninguém dirigir-lhe a palavra. Pergunto sobre ela, sobre a vida dela, mas as pessoas reagem com invariável estranheza:

- O que é que isso interessa? Ela não sabe o que diz.

Nesta espécie de gregarismo individualista ninguém parece comunicar. Os rumos singulares de cada um parecem seguir o seu percurso de locomotivas, condenados à inflexibilidade dos seus trajectos de carris, estridentes, bruscos, violentos, surdos, mas, de qualquer estranha forma, gerando um todo funcional, orgânico.

Não descortino o segredo alquímico deste todo, mas o facto é que o arroz é cultivado, o sumo de baobap é feito, as galinhas e as cabras são alimentadas, alguém lhes corta o pescoço quando as glândulas salivares o ditam, o peixe com arroz aparece na mesa dentro de um prato, a velha senil chegou a esta idade, os miúdos vão à escola, as crianças nascem, crescem, constituem família e as gerações sucedem-se, propagando esta ordem para mim incompreensível de se estar, que não se propagaria, que não estaria aqui para os meus olhos a assimilarem, se não funcionasse.

Sem comentários:

Enviar um comentário