domingo, 5 de abril de 2009

Vidas paralelas

A vila turística de Saly-Portugal, no litoral senegalês, cerca de 300km a Sul de Dakar, é um cocktail (servido com gelo numa espreguiçadeira na praia) de calor, mar, palmeiras, água de coco, bares, prostituição, homens de negócios (sobretudo franceses), gente pobre, e turistas franceses, predominantemente idosos, que escolheram a praia para passar a reforma. No epicentro desta mistura – espécie de teia gravitacional – estão as agências imobiliárias e todo o tipo de empresas ligadas ao comércio, construção e arrendamento de imóveis. O imóvel (e o terreno), aqui, é a fonte de dinheiro dos ricos, e a fonte de trabalho dos pobres, é o elo que une a população que aqui vive à origem de todo o dinheiro – a segurança social francesa – e que aqui a fixa, é a diferença crucial entre a Saly-Portugal miamizada e qualquer outra aldeia piscatória poucos quilómetros mais abaixo (salvo excepções,tão tradicionais quanto possível), é a razão da presença dos arquitectos e engenheiros europeus aqui emigrados que almoçam juntos numa mesa no nosso restaurante, é o dinheiro que paga o chá que um grupo de construtores civis bebe numa pausa de trabalho do outro lado da rua, é o que faz andar o 4x4 que passa na estrada e que transporta os casais de reformados aos terrenos e casas que vão escolher para comprar. Já a razão do imóvel e, portanto, a razão de tudo, a razão de Saly, parece ser esse acto de felicidade que consiste no estar deitado na areia da praia, definição consensual de paraíso na terra. E talvez porque esse acto é algo de tão visceral, uma definição tão unânime e humana de repouso, suceda, ao partilhá-lo, encontrar-se gente tão diferente.

Numa esplanada colada à areia, há um francês de olhos muito azuis, cabelo longo à surfista, e que, com o tom de quem julga saber melhor que os outros como a vida é para ser vivida, nos descreve um lugar, segundo ele, igual ao Senegal: a Rússia. Enumera os pontos comuns: as mulheres, lindas, altas e fáceis, o álcool, a festa, o poder indiscutível do dinheiro que, lá como aqui, pode comprar absolutamente tudo. Explica-nos que actualmente passa oito meses no Senegal e quatro na Rússia, e que não viveria noutros sítios. Galvaniza-se na crítica a uma Europa umbiguista e diametralmente oposta a estes lugares, por ele inesperadamente geminados. Curiosamente, em nenhum momento o seu discurso soa sincero:

- A Europa enlouqueceu. Tornou-se asfixiante. É um mar de regras. Em França, quero abrir um restaurante, vender um terreno, fazer um pequeno negócio, e é só taxas e impostos para tudo, papelada, e os processos são lentíssimos. Aqui, se me apetecer abrir um restaurante num dia, tenho-o a funcionar uns meses depois. E depois é essa vida pré-definida: escola, trabalho, casamento, reforma. Um percurso tão limitado, e que no entanto os Europeus se convenceram ser o modelo único de uma vida normal, e que todo o mundo está apenas a tentar imitá-los. Esqueceram-se sobretudo da vastidão dos lugares. O que a Europa pensa que são vidas alternativas, são a regra, a maioria. E até nisso a África e a Rússia são parecidas. São ambos lugares enormes, onde se encontram o tipo de vidas mais variado e absurdo, e que olham para a Europa como esse continentezinho pequenino e arrogante – rosna, áspero, emocionado, sem a confiança límpida necessária para suportar o que professa – onde de facto toda a gente faz o mesmo mas não percebe nada da vida. Para um russo, como para um africano, é irrelevante se tu és da França, da Espanha, ou da Alemanha. Os cinquenta países europeus, para eles é tudo a mesma coisa…

Depois deste discurso introdutório, que deve fazer sempre que apanha alguém a jeito, o francês começa a falar da miríade de negócios imobiliários em que está envolvido. Durante mais tempo do aquele que aguentamos, limita-se a falar de dinheiro, talvez o único argumento irrefutável (ou o único em que consegue verdadeiramente acreditar) para uma vida divorciada da França, e nós, enfastiados, despedimo-nos e vamo-nos sentar na areia.

O areal parece um Health Club. Ao longo da praia, há dezenas e dezenas de pretos a fazerem jogging, flexões, abdominais; uns trinta negros enormes e musculados, com uma corda enfiada no rabo, vestidos como lutadores de sumo, executam toda a tarde os mesmos exercícios físicos no terreno pantanoso e difícil de areia, com um empenho admirável. Treinam-se para o sonho de virem a ser wrestlers de luta livre senegalesa, desporto nacional do Senegal, fenómeno capaz de encher estádios. À beira-mar, correm os mesmos miúdos do dia anterior e que aqui estarão no dia seguinte, a jogar futebol furiosamente de manhã à noite. De vez em quando, alguns deles deitam-se ao nosso lado, e dos seus discursos monótonos sobressaem certezas tão obstinadas como trágicas: no futebol, como na luta, como no resto, não há aqui gente indecisa, ou a alegar fadiga para pausar. Estão todos a treinar para serem atletas de alta competição: é esse o meu único pensamento de todos os dias, diz-nos um, como se dissessem todos.

Pouco mais tarde, senta-se ao nosso lado, como que apenas para contrastar, a pasmaceira obesa de um branco solitário, ainda novo (especialmente em relação aos outros brancos presentes na praia), que parece ser alemão. Já antes o tínhamos encontrado: costuma sair do hotel todos os dias de manhã, fixar-se, como uma lapa, a uma espreguiçadeira, e ficar, t-shirt vestida, a ler e a torrar os braços e o pescoço até à hora de almoço, altura em que regressa ao hotel para comer um hambúrguer. Mais tarde volta para ocupar o seu lugar reservado de crustáceo, e, ao fim do dia, recolhe definitivamente ao resort.

- Que está a ler? – pergunta-lhe o André. – quando chega a hora de ele se ir embora.

- Uma colectânea de aventuras dos tipos que fizeram o Lonely Planet. – responde o homem nervosamente, e, depois de um tique facial, acrescenta – Têm histórias incríveis! – e é impossível não o olhar com uma vontade enorme de lhe explicar que, se durante os quinze dias que está no Senegal ousasse arrastar o corpo vinte metros para fora da areia da praia imediatamente em frente do seu resort, se enterraria até ao pescoço em histórias tão boas ou melhores que as dos aventureiros do Lonely Planet. Mas depois observo, nas suas costas, sucedendo-se até ao infinito, a longa fila de pranchas de plástico em cima das quais se liquefazem montanhas flácidas de gordura besuntadas de creme, desmoralizo, e abstenho-me de falar. Fazer de guia espiritual é muito difícil.

- Então boas leituras. E até amanhã! – despedimo-nos.

Ficamos a olhar a água. Uma ténue ondulação rebenta nos tornozelos de bizarros casais a caminhar à beira-mar: senhoras francesas, de cinquenta anos para cima, quase todas feias ou estragadas pelos anos, passeiam de mãos dadas com rapagões negros, fortes, na flor da idade. Juntos, regateiam o comércio do amor. Companhia por dinheiro. Dinheiro por companhia. Diferentes moedas, para uma satisfação quiçá equivalente.

- É deprimente. – diz-nos Cristine, com azedume, uma jovem actriz francesa que entretanto se sentou ao nosso lado e que parece uma boneca de louça desmesurada e desengonçada: muito alta, esguia, a pele extremamente branca, o seu tecido dérmico, esse sim, verdadeiro contraste com os homens de carvão que lutam na praia. – Estes rapazes novos – continua – com a vida para viver, a consumi-la com estas velhas. É… eugh – e a Cristine faz uma expressão de náusea mesmo sentida, que lhe cresce das agruras.

Depois, talvez porque acabámos de nos conhecer e em breve nos vamos separar e parece boa ideia aproveitar este tempo junto – tempo sonhado, como uma conversa com um desconhecido num aeroporto, tempo sem passado e sem futuro – para falar da vida, damos pela Cristine a produzir mais um discurso de síntese existencial, em certo sentido, nos antípodas do do seu compatriota francês:

- Eu também sempre viajei, como vocês. Posso dizer que vi algum mundo. – diz ela, mas nós não acreditamos. Afinal de contas a Cristine tem 29 anos, mas está no Safari Beach, um resort que lhe custa por dia bem mais que o salário mínimo senegalês. A Cristine não deve ter visto coisa nenhuma. – E também sempre tive ideias muito rebeldes em relação à vida à minha volta. Desprezava a ideia de casamento, desprezava a vida burguesa, o conforto material. – a Cristine esmera-se em vincar e tentar provar que sempre foi uma ocidental de esquerda, uma voz do contra, uma inadaptada, uma enjoada da urbe europeia, da coquetterie – Mas, hoje em dia, e sinto-me agora mais eu do que nunca, dou por mim a desejar exactamente o que sempre repudiei: quero casar-me, manter-me fiel a um homem e acreditar que é possível a felicidade a dois, e sinto-me à vontade para dizer que poucas coisas me dão mais prazer do que comprar os móveis para a minha própria casa, ou que o meu sonho de vida também passa por mudar do meu apartamento em Paris de 80m2 para um de 160m2, e mais tarde até talvez para um maior. Mas, actualmente, digo estas coisas com alegria, sem pudor, com uma honestidade que me vem do corpo; não como uma pessoa qualquer que se limita a imitar os moldes da sua sociedade, já que sempre os recusei, mas como alguém que desenvolveu um gosto independente, individual, e genuíno por eles.

E, subitamente, ao ouvi-la, atinge-me com força a sensação dessa ancoragem radical de todas estas vidas tão diferentes estendidas na praia de Saly às suas ilhas de hábitos, ao seu enclausuramento insuperável de perspectivas, colossalmente ditado pelas suas próprias histórias de vida. Isto dá-me alento para regressar ao tema de conversa anterior e responder finalmente à Cristine sobre os casais “deprimentes” à beira-mar, que, subitamente, admiro:

- Não sei bem se estes casais são deprimentes. – e aponto para um mancebo de excelente aspecto que passeia o Fox Terrier da sua velhota – Se calhar alguns deles riem bem juntos, se calhar outros fazem amor juntos, amor do qual ambos retiram prazer. Não estarão talvez ambos melhor do que estavam? O mais provável é estarem os dois mais felizes com os termos do seu contracto mercantilista do que tristes, e não há razão para que esse contracto não envolva mais tarde sentimentos. Não terá valido tudo a pena nem que seja se se rirem genuinamente juntos uma só vez? De todas as pessoas que já vi e conheci nesta praia, parecem-me ser eles os mais felizes.

A conversa da Cristine, esta praia – em si um aeroporto, um não-lugar que possibilita o cruzamento de itinerários tão díspares, o encontro de tamanho desfasamento de sonhos – obriga-me talvez a procurar refúgio no pensamento abstracto.

Não sei como definir esse isolamento individual radical que separa como mares as pessoas. Apenas sei dizer que,há qualquer coisa que impede o alemão que vem fazer férias para África e excitar-se com as aventuras de terceiros nesta mesma terra, de tomar parte nessas mesmas aventuras, há qualquer coisa que impede o francês de voltar para França, qualquer coisa que impede a Cristine de ver para além dos seus 60m2 de apartamento, qualquer coisa que afunila o futuro dos jovens na praia numa imagem embaciada de um estádio em Dakar ou Inglaterra, e esse qualquer coisa que desune estas pessoas, parece-me exactamente o mesmo.

No meio disto tudo, são os casais de velhas brancas e jovens negros na praia os corajosos e únicos autores da transgressão, os únicos a ousar misturar vidas paralelas, a praticar a mestiçagem de percursos, em suma, a viajar. Como diria o Chico Buarque: Têm mais Samba.

2 comentários:

  1. You guys are great!

    Tens cada vez mais seguidores e eu continuo colada...

    beijos para vocês!

    Saudades

    Cláudia (jambu)

    ResponderEliminar
  2. Olá Cláudia!

    Obrigado pelo precioso apoio! É bom saber que se chega aí, apesar da distância.
    Beijos e muitas saudades
    Chico e André

    ResponderEliminar