São oito e meia da manhã. Bissau ainda está submersa numa cacimba que refracta a luz do sol e embranquece o ar, diluindo os edifícios e as pessoas num véu nebuloso. Estou a beber o meu sumo de “bissap” e “cabaceira” e a comer uma sandes de pis muido (peixe moído) e a esfregar as olheiras polpudas. Do outro lado da rua, um guineense lanceta-me os tímpanos frágeis. É um desses tipos que passa o dia a deambular pela zona antiga da cidade a trocar moeda estrangeira no mercado negro, a impingir a quem passa uma máquina de barbear ou outro objecto estranho, ou a fazer negociatas de telemóveis.
- `Migo. Ó `migo. Anda cá. `Migo?
África é também isto: carne de peixe a infiltrar-se nas gengivas e nas papilas gustativas e gritos a abrirem-me caminho pelos ouvidos, em dose única às oito da manhã. Amaldiçoo os meus sensíveis sentidos burgueses e europeus e viro-me. Tenho a boca atafulhada do interminável mascar do pão e estou rabugento. O melhor que lhe consigo dispensar é um aceno mudo e indiferente. Claro que a displicência do meu gesto é mais do que suficiente para o tipo, que atravessa prontamente a estrada para vir ter comigo. Aproxima-se e aperta-me a mão calorosamente. Fala bom português e faz-me algumas perguntas sobre a minha situação e sobre o que estou a fazer na Guiné. Parece animar-se quando descobre que estou aqui como poderia estar em Neptuno.
- E se fôssemos tomar o pequeno-almoço à Baiana? – convida-me.
Embora me parecesse desnecessário, tendo em conta que tenho um pão e um sumo nas mãos, vejo-me obrigado a explicar-lhe que já estou a tomar o pequeno-almoço.
- Então deixe-me pagar-lhe um café. – insiste.
- Não me apetece café. – respondo, torto. – Mas porque é que quer ir à Baiana, afinal? Não podemos conversar aqui?
- Vamos ter uma reunião de negócios. – responde-me.
- Ah sim? – respondo, admirado. – Mas eu não percebo nada de negócios. Sou sempre enganado.
- Ah! Isso não tem problema. Você fez a universidade, tem facilidade em aprender. Faz muita falta aqui alguém como o senhor. Faça-me companhia apenas num café e prometo-lhe que não se vai arrepender.
A persistência deste negro bochechudo e a proximidade da Baiana, que fica a uns dois minutos a pé, na Praça Che Guevara, obrigam-me a anuir. Sentamo-nos na esplanada, pedimos um café e ele decide apresentar-me a Guiné-Bissau desta forma:
- O senhor está aqui há pouco tempo e é preciso que ganhe uma noção do país. Na Guiné-Bissau só há três formas de fazer dinheiro: o caju, a cocaína e as ONGs.
Já estava mais que familiarizado com as duas primeiras formas. Quanto ao caju, sabia que a Guiné-Bissau é a economia do mundo mais dependente da exportação de um só produto. 98% de todas as exportações do país são de caju. Actualmente, basta uma mínima oscilação do seu preço nos mercados internacionais para toda a Guiné entrar em convulsões. O país, de resto, viu parte significativa das suas florestas sub-húmidas virgens transformadas num pomar. Já a cocaína é naturalmente mais subterrânea. Nunca ninguém a vê, mas foi eficazmente transubstanciada em doses equivalentes de sussurros, rumores e boatos. É ponto de partida de uma conversa sobre o estado do país, tema obrigatório de uma discussão sobre os mais recentes problemas políticos, bode expiatório de qualquer episódio de violência. Finalmente, a terceira forma era-me desconhecida, pelo menos como forma de gerar riqueza. Por isso exclamo:
- As ONGs?!
- `Migo. Basta um passeio por Bissau. Repare no parque automóvel desta cidade: 60% são táxis e toca-tocas [camionetas para transporte público] que é onde se movimenta 95% da população, uns 2% são Hummers e Porches Cayenne mas deve-lhe parecer óbvio que nem o caju não dá para tanto, 8% ou menos são carros normais pertencentes a políticos e militares e sim, talvez a quem negoceia o caju, os restantes 30% são 4x4 de ONGs!
Vasculho memórias recentes, recordo relâmpagos da cidade, e a estatística parece-me percentualmente fidedigna e possuir uma possível base de verdade.
- Mas como é que se pode fazer dinheiro com isso? Os 4x4 não são necessariamente sinónimo de riqueza e tenho a ideia que os gastos das ONGs são controlados…
O tipo interrompe-me.
- Bem, se calhar interpretou-me mal. Não se trata de fazer dinheiro. Também vamos contribuir para, pronto… construir uma Guiné melhor. – mas esta súbita viragem ao politicamente correcto sai-lhe a custo da boca – É por isso que o senhor precisa de falar com alguém como eu, que conheço como este país funciona, e que eu preciso de alguém como o senhor que, pronto, tem facilidade de movimentação na Europa, para elaborar projectos, pedir fundos, essas coisas. Há muitos guineenses educados no estrangeiro que voltam e abrem ONG. Não se trata de dar um uso mau ao dinheiro. – relanceia-me com uma expressão paternalista – Nós vamos ajudar pessoas. Crianças, mulheres, tudo isso. Mas vamos tirar um ordenado para nós. Também é justo, não acha? – e fixa-me intensamente, perscrutando as consequências do seu cinismo e tentando perceber até onde pode ir.
Eu, que sinto precisamente uma curiosidade imensa de saber até onde ele pode ir, decido entrar no jogo:
- Claro, meu amigo. A vida não está fácil para ninguém. Não se pode trabalhar de graça.
- Voilá. – diz com entusiasmo – Ajudamos os outros mas também temos que comer. – faz uma pausa e bebe o café em dois tragos – Sabe, tenho tudo planeado. O senhor nem tem que se preocupar muito. Tenho o exemplo de muitos meus amigos que já abriram ONGs – por um momento tenho a sensação que está a falar de mercearias – e eu até já tenho o dinheiro poupado para esse investimento. Falta-me apenas um sócio como o senhor. Se chegássemos a um acordo… Compramos uns computadores, arrendamos um sítio, fazemos um projecto sobre nutrição ou doenças infecto-contagiosas, e, o mais importante, escolhemos uma zona da Guiné-Bissau onde não haja ONGs no terreno.
- E essas zonas ainda existem?
- Uuuu. Isso é o que não falta. E olhe que é o mais importante: porque dessa forma podemos argumentar no projecto que são zonas necessitadas, com um carácter de urgência. – pergunto-me: como é que este Zé-ninguém que vende telemóveis tem o discurso tão bem sabido? – Depois começamos a desenvolver pequenos trabalhos com as populações, apresentamos o projecto à Comissão Europeia, ao Banco Mundial, às Nações Unidas, a outras entidades, e garantimos bem…! Nunca menos de 2000€ de ordenado para cada um durante dois ou três anos. Isso dá-nos mais que tempo para desenvolver o trabalho que depois nos permitirá arranjar um financiamento maior para projectos seguintes. Isto a partir do momento em que se começa, é sempre a crescer…
Olho para o homem e não sei o que lhe dizer. Suspiro. À preguiça, à guerra, a uma colonização que nunca se preocupou em desenvolver o país, ao rótulo de 8º país mais pobre do mundo, à cocaína que chove nos Bijagós e que aterra nos aeródromos recônditos do interior, à corrupção, à mono-dependência do caju, ao desemprego, a um estado inexistente e sobre-militarizado, à faceta mais distorcida do altruísmo empresarial, produto ambíguo de um capitalismo planetário com problemas de consciência, juntam-se estes necrófagos nativos. Claro que nada disto me surpreende, como não surpreenderá quem o lê. Mas não impede uma lei corporal geral: que o contacto directo com o cinismo convoque o vómito, e o mero conhecimento do cinismo por terceiros cause reacções menos alérgicas.
Considerando que a estatística diz que a imbricada máquina de altruísmo profissional montada no globo perde 80% das doações em salários de quadros, na manutenção das suas estruturas, em relatórios de avaliação, selecções de pessoal, publicidade aos objectivos cumpridos – enfim, em tudo aquilo que normalmente despende uma máquina empresarial para funcionar – e tomando contacto com estes pardalitos invisíveis, estes debicadores microscópicos de migalhas que estão cá, no terreno, a laborar todos os dias incansavelmente para pilhar o máximo do que sobra, tenho subitamente uma confiança absoluta no facto de que nada vai mudar.
Também esta dedução é tudo menos uma epifania. Porém, depois do vómito, não consigo evitar uma bizarra sensação de rush estético, de gozo mórbido profundo e de riso. É provocada pelo contacto com este mal cristalino e pornográfico, extirpado da aura de ficção que o envolve no noticiário ou na página de um jornal, daninho e insignificante mas ainda assim exalação de um mesmo todo unânime, que tudo gangrena, do topo até à base. Não é a primeira vez que experimento esta sensação desconcertante nesta viagem.
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