segunda-feira, 20 de julho de 2009

Corpos porosos

O Sr. Horácio, director do parque natural onde estamos hospedados, é o exacto correspondente humano físico a um orangotango bonacheirão, observação que é exacta e não tem que ter nada de depreciativo. É da etnia bijagó, e embora seja geral e paradoxalmente sisudo, basta puxar pelo homem para que comece a discorrer num rol interminável de histórias e opiniões, com a visão única de qualquer guineense que, do peculiar observatório que constitui a sua terra natal, não se coíba de opinar sobre a actualidade internacional.

- Xiii – o Sr. Horácio intercala recorrentemente o seu falar com esta interjeição, sonorizada em falsete – E eu vi ali aquele vídeo lá mesmo num computador de uns brasileiros. Mas aquilo não era no Brasil, não. E um elefante está lá com um homem e de repente vira-se de costas e dá-lhe um coice e o homem cai no chão sem sentidos. E depois o elefante avançou e as pessoas aproximaram-se do homem mas logo o elefante voltou e todo o mundo fugiu… Xiii. Pô pô pô. E o bicho voltou e deu mais dois pontapés no “home”. Xiii. Aquilo eu nem sei o que foi. – e o Sr. Horácio interrompe o discurso; franze muito a expressão, como que intrigado e abana a cabeça – Xiii – faz nova pausa, sério, escancarando as pálpebras dos olhos grandes – Aquilo… Aquilo, aquilo não era o elefante. – e conclui, com um sussurro sibilado – Era um diabo que entrou ali ou o raio…. Xiii Pô pô pô.

Umas horas mais tarde, num final de tarde quente e perfumado próprio dos trópicos, dou com o Sr. Horácio sentado no chão do alpendre da sua casa na sede do parque a relatar ao André e à Francesca mais uma das suas perplexidades:

- E o Pepe deu um pontapé no jogador. Xiii. Mas via-se mesmo que não foi assim uma coisa a quente, porque ele volta lá e dá-lhe um novo pontapé assim mesmo para lhe apanhar as costas. Entre os dois pontapés passou tempo… ele, ele, aquilo não foi a quente. Via-se que estava descontrolado. Xiii. – e o Sr. Horácio repete a expressão facial de mistério – Foi o diabo que entrou dentro dele ou coisa do género. E ele, claro, ele mesmo, o próprio Pepe, explicou à televisão depois que não sabia o que estava a fazer. Ele disse isso com estas palavras. – enfatiza o Sr. Horácio, como se o esclarecimento do Pepe fosse a prova evidente da sua tese. – Pô pô pô.

Os irans, entidades mágicas animistas da Guiné-Bissau (aparentemente trans-étnicas; não consegui obter informações mais esclarecedoras a este respeito), entram dentro das pessoas e obrigam-nas a cometer actos que não fazem parte da sua vontade. Esta interpretação africana do pontapé – do Pepe ou do elefante – lembra-me uma utopia viva: a Índia hinduísta. Um mundo onde as pessoas não são bem pessoas, onde não são esses compactos herméticos ocidentais de carne e espírito, mas canais de veiculação de deuses, corpos porosos em constante mutação, sujeitos a ventos etéreos e invisíveis, à influência dos lugares (de templos a divisões da casas), de tempos (estações, horas do dia, etc.) e dos outros homens. Essa Índia é um lugar onde a individualidade não existe com a solidez que nós estamos habituados a atribuir-lhe e onde as categorias de personalidade são menos estanques. No ideal, para fornecer um exemplo pobre, um homem não pode ser intrinsecamente simpático, egoísta e cantar bem. No máximo, é gentil para alguns, foi egoísta numa situação específica e canta bem enquanto não lhe aparecer uma laringite ou enquanto lhe durar a presente encarnação.

Não tão pronunciadamente, é certo, mas também a Guiné-Bissau parece deter ainda uma pitada de uma sabedoria antiga, ou apenas divergente, que contrasta com as sociedades ocidentais “sobre-psicologicizadas” onde um pontapé pode ser reduzido a uma personalidade com um código alfanumérico, integrado sem piedade nem esperança num cadastro ou num historial clínico. Tal como a hinduísta, esta epistemologia exótica do Sr. Honório relembra-me que há componentes de transitoriedade, temporalidade e relatividade indissociáveis da existência e das acções humanas (ou não humanas). Dos coices dos elefantes aos pontapés do Pepe.

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