terça-feira, 1 de setembro de 2009

II

Em Marrocos é cada vez mais difícil volatilizar o rótulo de euro andante. Muitas vezes, não há nada a fazer. Deixámos de ser pessoas, transformámo-nos em carteiras com pessoas nas calças. Tal como aqueles arrumadores que riscam carros quando não lhes damos nada depois de nos terem orgulhosamente apontado um lugar no meio de um oásis de lugares livres (onde ainda por cima temos que pagar parquímetro), o vendedor marroquino sente-se no direito de ficar zangado só porque não se lhe compra nada.

Tentámos sempre perseguir esse patamar às vezes inatingível em viagem (ser-se pessoa), ao qual acedemos, por vezes, através de um reportório discursivo de sensibilização alheia que incluiu desde a desleal mentira de que éramos professores voluntários, ao Portugal pobre, passando pelo “trabalhei na agricultura para vir até aqui”, algo que parecia infligir profunda estupefacção, uma vez que o Ocidente, como veiculado pela televisão, é uma sociedade de rappers e prestadores de serviços engravatados. Esta e outras patranhas fizeram parte do nosso kit “Abre-te Sésamo” do viajante, indispensável para desbloquear o extraordinário lado da hospitalidade africana, que, apesar de tudo, existe (e é maravilhoso).

Ignoro qual das Áfricas é a mais verdadeira, mas sei que a dificuldade em aceder ao patamar «pessoa» diminui, com extraordinária sintonia geográfica, com a latitude (pelo menos no continente negro).

Actualmente, alguns países arriscam-se a perder o que têm de melhor. Marrocos, no cume da nossa descida vertiginosa, tornou-se num grande shopping center étnico. Será, porventura, suficiente para quem apanha aviões para ir às compras, mas não o é para quem pretende obter algo mais que uma colecção tecidos exóticos e instrumentos tradicionais. Adicione-se a este caldo a ocidentalização arquitectónica da paisagem urbana marroquina e a referida desumanização do turista e compreende-se que, conhecer Marrocos actualmente, requer um processo de escavação, versões infinitamente mais imbricadas e sofisticadas da fórmula “Abre-te Sésamo”. Devemos recorrer ao mais dotado Harry Portter das relações públicas dentro de nós para garantir o acesso às faces desbloqueadas e desanuviadas das pessoas, um lado que persiste, intacto, por trás da cobiça cintilante de intrujões e guias turísticos, mas que não é o lado imediato numa sociedade que se habituou a extorquir o turista como forma de vida.

No Sara Ocidental, um pouco mais a Sul, uma peculiar mistura entre isolamento e problemas políticos, afugenta os turistas e desaparecem os preços sensíveis à cromatografia da pele humana, e esta transforma-se subitamente em meio automático de desbloqueio da curiosidade, do interesse, da simpatia do outro.

Descem-se mais 2.000km, e, num restaurante senegalês, basta uma fórmula elementar – je ne veux pas prix toubab [branco] – para escapar ao racismo económico. Mesmo assim, é necessário fazer uso de uma frase.

A Sul do Senegal, por tantas e tão complexas razões, as rotas do turismo cessam, os hotéis não estenderam os seus tentáculos de betão, as lojas de artesanato também não proliferam, e, extraordinariamente, foram erradicas as destemidas sanguessugas humanas do turismo, das suas formas mais primitivas às mais sofisticadas. Depois de uma omnipresente sacanice de milhares de quilómetros (mas não quero deixar transparecer o que não é a minha impressão; a par da dita “sacanice” co-existiram sempre demonstrações formidáveis de hospitalidade genuína para connosco), a despida honestidade guineense parece boa de mais para ser verdade.

A conclusão é proverbial e não consegue escapar ao que já se sabe: a quantidade de turistas tem tudo a ver com a qualidade do turismo (sobretudo se entendermos o turismo como “experiência da realidade do outro”). É preciso não passar pela Abreu para conseguir férias numa praia deserta, é preciso ir a uma aldeia transmontana para comer mais barato e não levar uma alheira de Mirandela torrada em lugar do verdadeiro enchido (às que existem nos restaurantes lisboetas, deviam chamar-lhes panados de alheira), é necessário escavar os lugares para obter uma vontade honesta de partilhar o tempo connosco.

É por isso que é tão extraordinária esta gente guineense, os militares, por exemplo, fardados, embaraçados, e também essas mulheres feitas, com catrefadas de filhos e também elas envergonhadas, todos eles a dizer-nos, constantemente, de uma forma terna, carinhosa e tão irresistivelmente desinteressada (tão aliviante), enquanto passamos na rua:

- Você quer ser meu amigo? Eu gosto muito de você.

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