quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Viagem

Antes da viagem perguntei-me se seria mesmo necessária a viagem. Pergunto-me ainda.
Dois dias antes de partir, o André, que viaja comigo, insistiu que eu comprasse uma almofada de viagem, daquelas insufláveis, que se encaixam à volta do pescoço para nos impedir de irmos no avião a dormir com a cabeça aos tombos durante duas horas e meia. Acabei por encontrá-la numa loja chinesa ao fundo da minha rua, incluída no pacote «Tres Têsouros» (sic). O segundo e terceiro tesouros eram dois tampões para os ouvidos e uma venda preta para os olhos, daquelas que se vêem nos filmes; em suma: um kit completo de alienação sensória da realidade. Volvidos quatro meses, o kit revelou ser de pouca ou nenhuma utilidade (à excepção dos tampões para os ouvidos). A almofada, utilizei-a duas vezes, os tampões servem quando há gente a fazer amor nos quartos contíguos dos sítios por onde vou dormindo, quanto à venda, a única vez que a usei, causou-me uma inflamação no olho que me durou três dias. Porém, os três tesouros escondiam a sua maior preciosidade – um quarto tesouro – estampado no próprio exterior da caixa. Tratam-se das informações e instruções de uso do produto, que passo a citar.

Tres Têsouros (sic)
Travesseiro Eyepatch earplug
Pnaduct Ponkile

Com pseudónimo de três tesouros desocupados. Earplug de parada-barulho de pillow, blinder, and ambulante soprado integrando em um produto. Ajuste para criar um ambiente pequeno confortável e quieto ao levar um resto curto em escritório ou quando estando em casa ou viajando.
Cautions: squeeze a válvula quando você sopraou descarga. Mantenha longe de fire; avoid carga pesada e artigos pontudos. Um par de buracos na asa pode permitir uma corda para ir through, se sobra soma o flotage quando você aprender natação. (Limitou para usar em águas rasas)
Made in R.P.C

Perfil de Companhia

Equipamento principal em nossa companhia inclui frequência alta imprensa e moldador de injeção. Nós somos especializados em produção e desígnio de products, including de excursão soprados travesseiro category, blinder category, soft gelo category, hot ensacam category, put-fora clientes de series, etc. Welcome de caneta de casa e no estrangeiro discutir e ordenar.

Dificilmente se conseguirá obter uma definição mais acurada da expressão “lost in translation” (o que quer que fosse que se tivesse querido transmitir, perdeu-se irreversivelmente na tradução). Porém, o que me interessou nesta bizarra conjugação de palavras é que, ironicamente, depois destes quatro meses de viagem, não julgo ter-me deparado com um exemplo mais perfeito da própria viagem do que este texto (o que contribuirá porventura para atestar a inutilidade do movimento físico). A quintessência (da viagem) – a intersecção entre o heterogéneo, línguas, espaços, pensamentos, ou seja: a estupefacção, o absurdo, a surpresa, o desajustamento – encontra-se toda aqui, condensada e concentrada no pacote Tres Têsouros (sic), à distância de 1€ e do bazar chinês mais próximo. Daí a pergunta: seria mesmo preciso sair da minha rua?
Porém, sinto-me tentado a ir mais longe: seria mesmo preciso sair de minha casa?

- Do you ever just want to get the hell out of this country? – woman.
- And go where? – man.
- I don´t know, anywhere. It doesn´t matter. Just some other place. – woman
- I don´t know. I´ve traveled. And all it is is bad water, bad food, you get sick. You gotta deal with strange people. And when you get back, you can´t tell whether it really happened to you or you just saw it on TV. – man

Linklater(Dazed and Confused, A Scanner Darkly, After Sunset, Before Sunset) in Slacker

Okay, mesmo cedendo no aspecto de que não está tudo, ou quase tudo na televisão (e fingindo que não conheço quem argumente que está), não consigo evitar que a viagem me pareça, ainda, frequentemente, uma desculpa esfarrapada para a incapacidade de qualquer coisa…
Luís, um catalão que nos albergou uma noite em Andorra, explicava-nos que tinha definitivamente abandonado a «viagem física», para a substituir simplesmente pelo Hospitality Club. Há já uns anos que tinha passado a albergar uma média de três pessoas por mês e revelou-nos fazer dessa ocupação um dos principais meios de educação das suas duas filhas pequenas (que assim podiam aprender línguas, coisas sobres outros lugares, e sobretudo a contactar desde cedo com pessoas e culturas diferentes). Sobre a sua opção de vida de extinção da «viagem física», disse-nos: “aprendo mais sobre a Itália falando durante cinco minutos com um italiano, do que numa semana inteira a fazer uma excursão pelas catedrais e museus italianos”.
Porém, mesmo se o Luís me parece um pouco mais perto da verdade, não me consegue fazer querer que é na diferença entre «viagem/excursão» e «viagem/imersão-na-cultura-e-nas-gentes» que está a resposta à minha dúvida. Não que a minha dúvida – sobre a vanidade ou não da viagem – peça uma resposta metafísica. Não. Na realidade trata-se até de uma dúvida muito concreta, quase prática: não poderei experienciar tudo aquilo que experiencio numa viagem sem sair do mesmo sítio, a partir de uma televisão, de uma conta no Hospitality Club, de uma viagem ao mundo das instruções dos produtos das lojas chinesas e talvez de um trabalho de voluntariado na associação local de emigrantes? O problema da «viagem/excursão» e da «viagem/imersão» é que me parecem ainda pertencentes um mesmo lado de uma moeda: o da viagem exterior. O outro, o da viagem interior, permanece ausente, e é talvez o único que conta (e insisto, isto não é ainda metafísica, é uma questão prática importante. Há regiões inteiras, como a Toscânia, que fazem do turismo 50% do seu PIB. O que aconteceria se toda a gente pensasse como o Luís, ou, pior, como alguém que acredite única e exclusivamente na viagem interior?).
Na porta do armário de cozinha da minha actual casa em Fiesole, Florença, alguém que já não habita na casa, e que não se sabe quem é, escreveu, em letras garrafais castanhas:

Il vero viaggio di scoperta non consiste nel trovare nuove terre ma nell´avere nuovi occhi.
(A verdadeira viagem da descoberta não consiste em ver novas terras mas em ver com novos olhos.)
Marcel Proust

É uma frase que está sempre a olhar para mim. Estou a lavar os pratos, a fazer o café, a pelar batatas, a conversar com alguém, e ela lá está, por cima do forno, a intrometer-se em mim e nas minhas conversas. E, de há uns tempos a esta parte, passou a fazê-lo ainda com maior facilidade e frequência, mais precisamente depois de uma conversa que tive com um co-inquilino, nessa mesma cozinha. Dizia-me ele, seguindo uma linha de raciocínio que começara bastante atrás, na praga turística que carcome as ruas de Florença: «As pessoas inventam e pagam turismo apenas para não terem trabalho. As pessoas também são megalómanas e, pior, não porque tenham pensamentos grandiosos, ou planos magníficos, mas porque não conseguem criar coisas simples, porque sofrem de um colossal deficit de imaginação. Bastava esta cozinha, madonna! Uma semana por 1500€ em Phuket quando têm tudo o que precisam aqui dentro. As pessoas vão procurar longe o que está perto. Uma só cozinha, como esta, é alimento mais do que suficiente para uma curtíssima vida humana. Porque dentro desta cozinha há milhares de cozinhas. Há as cozinhas que se apreendem a partir de diferentes perspectivas (sentado, de pé, de cócoras, a fazer o pino), há a cozinha das pessoas que por aqui passaram, há a cozinha das pessoas imaginárias que por aqui passaram, há a cozinha das pessoas imaginárias que por aqui passarão, existem as histórias todos sobre os objectos dispostos nas suas prateleiras, existem infinitas atmosferas mutantes que acompanham a variação da inclinação dos raios de sol que entram ou não entram pela janela, há a palha dos assentos das cadeiras e a madeira dos móveis, ainda atafulhadas do que resta de todos os odores de todos os pratos que aqui alguma vez se cozinharam. Eu posso levantar-me todos os dias, entrar por esta porta, e encontrar todas as vezes um lugar completamente diferente. Não preciso de uma semana em Kuala-Lumpur. Esta cozinha é potencialmente tão rica como todo o mundo. Se eu tenho que gastar dinheiro para conseguir contactar com o exótico, o diverso, o novo, é porque tenho um sério problema de imaginação.” (e é para mim ainda absurda e indecifrável a forma como eu abanava vigorosamente a cabeça em sinal de absoluta concordância com este discurso sem me chegar a recordar, durante um só instante, que eu próprio estava em viagem, que eu próprio tinha dedicado pelo menos um ano da minha vida a viajar).
Põe-se-me, portanto, a pergunta: para quê viajar se está tudo cá dentro? Ou, como um título de uma performance teatral de uma amiga minha baseada em textos de Fernando Pessoa, exibida há uns anos atrás em Lisboa: «e se na véspera da partida a alma for mais real que o mundo exterior?»
Alguém precisará mesmo de viajar para aprender alguma coisa? Não arrisco, por enquanto, uma resposta a estas perguntas.

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