domingo, 18 de janeiro de 2009

O gorro (ou, do outro lado do vidro)

À minha frente, ergue-se, enorme e pomposa, uma montra cintilante, revestida de espelhos e lantejoulas, e onde 30 câmaras de vigilância falsas e prateadas apontam para um prato giratório na base da própria montra, que sustenta o brilho do único objecto que está realmente à venda: um gorro de lã, preto, e – mais importante – da Louis Vutton. É um gorro curto e elástico, do género do do guitarrista dos U2: tem ar de se ajustar bem ao crânio. 935€.
Eu sei que a reivindicação social está fora de moda, a esquerda é aborrecida – na realidade toda a política é aborrecida (actualmente, quando se quer sugerir um tema verdadeiramente absurdo de conversa, diz-se: “então, falamos de política?”), e expor a injustiça é como usar uma espécie de casaco usado e coçado. Também sei que é conversa gasta, temática em enésima mão, e, pior, inútil insistência crítica, este repisar do fosso que separa o gerente do banco, do filipino que lhe limpa o gabinete. O fosso é escandaloso, ultrajante, desumano, mas também a mim estes adjectivos me parecem usados, gastos, e, às vezes, entediantes.
Porém, neste momento, à frente desta montra incandescente, esses adjectivos ganharam vida, chama, respiraram e absorveram uma estranha força violenta e poderosa. Fazem-me sentido.
Há duas horas atrás recebi o pagamento do meu trabalho como vindimador. No bolso, tenho um papel com tudo descriminado e explicadinho. 7.63€ à hora, taxas aplicadas aqui e ali, 6€ e qualquer coisa líquidos; resultado final de 131 horas da minha vida de corpo agachado, coluna dobrada a aplicar o mesmo gesto a uma tesoura de poda na minha mão direita: 920€. Ainda me faltam 15€ para comprar o gorro.

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