quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor castrejo

Como dizia um personagem de certo filme francês, o amor foi uma invenção de um trovador numa corte, acesso imaginativo entretanto transformado em justificação da vida por gente entediada. Os séculos amadureceram a ideia, a moda pegou, e o amor culminou nesta lavagem cerebral injectada à força nas nossas cabecinhas vulneráveis de crianças pela “Bela Adormecida”, pela “Música no Coração”, pelos “Beatles”, por milhares de desenhos animados, comédias românticas lamechas de Domingo, romances e canções. Formataram-nos nessa ilusão de bem-estar fusional profundo, de salvação no outro, de príncipes azuis, escravizando-nos a essa demanda impossível e ocultando-nos tudo sobre o quotidiano, sobre autoclismos não puxados, bloqueios emocionais, divisão de tarefas e despertares rabugentos, que continuam e continuarão a existir, para além do casamento, dos filhos, e de todo e qualquer progresso civilizacional.

Mas o amor de Romeu e Julieta, o “meant to be”, essa ideia de colisão de duas almas prevista numa espécie de Livro do Tempo no início do Universo, esse amor – como lhe chamar (?), amor castrejo? – não tem a universalidade que ostenta. Aqui, por exemplo, não é assim.

Para começar, faz demasiado calor para andarmos de membros e corpos embaraçados e aos beijos e a dormir enrolados, e é um pesadelo ficar-se abraçado depois de fazer amor, a trocar carícias e afectos submersos em poças de suor, emaranhados na rede mosquiteira desfeita, a deixar passar os mosquitos que se vêem afogar na pele encharcada.

Também não há cinemas. O jantar à luz das velas é uma obrigação, não um prazer, e o pôr-do-sol é um filme já visto, um casaco coçado. Aliás, não se percebe esta lírica fixação ocidental com o pôr-do-sol. No meio da natureza, na terra do horizonte descoberto, sem betão a perfurá-lo, o pôr-do-sol é aquela banalidade que está lá sempre.

E depois é só problemas: ele é fula, ela é balanta, ele é manjaco, ela é nálu, ele é cristão, ela é muçulmana, amo-te a ti mas o meu pai prometeu-me à filha de um amigo seu há vinte anos atrás depois de um negócio entre ambos. Até queremos ficar juntos mas eu quero emigrar. Até me casava contigo, mas nesta aldeia o matrimónio implica no mínimo 50.000 CFAs à tua família. Onde é que raio vou eu desencantar 50.000 CFAs? É melhor pensar noutra coisa.

Vocês europeus é que têm essa coisa do amor. – diz-me o Mali – Aqui em África o amor é outra coisa e é muito fácil: se tens dinheiro, tens amor. Tens uma mulher, duas mulheres, três mulheres. As que quiseres. Se estás doente, se estás triste, se não tens dinheiro, se perdes emprego, aí já a mulher te deixa por outro. É assim. Não há essa coisa de cuidar do outro… Como é que vocês dizem? - e o Mali ri-se - Na alegria e na tristeza e na dificuldade e na doença… – e o Mali não termina o raciocínio, porque se continua a rir – Essas coisas… Sabes do que é que estou a falar não sabes?

No alpendre da sua casa, onde vive com uma dessas famílias nucleares que fazem inveja às nossas famílias extensas, e cujo almoço de dia de semana mete num canto as nossas ceias de Natal, Moustapaha fala-me e confunde-me com a vida e os nomes de alguns dos seus vinte e um irmãos. São filhos de três madrastas que deram ao mundo e ao seu pai, quatro, quatro e seis filhos, mais os quatro de sua mãe e dois de uma mulher anterior. Mas Moustapha tem uma postura crítica, escarnece desta manada de gente, e demarca-se:

- Mas eu quero casar-me com uma branca porque sou diferente. Não quero saber o que o meu pai diz. Para além disso a mulher negra gosta de ti enquanto lhes carregas o telemóvel. Mesmo a minha namorada, numa altura em que eu não tinha dinheiro, começou a dizer que eu já não gostava dela, e deixou-me. Mas não era verdade. Eu gostava dela. – e depois o Moustapha diz-me assim de repente o mundo em quatro ou cinco frases – Eu quero casar por amor. É por isso que me quero casar com uma branca, só uma, e ter dois ou três filhos. Mais não. Eu sei como é lá no teu país. Já vi nos filmes na televisão.

É tão verdadeira a ideia que o amor castrejo vem dos filmes que aqui ainda há quem tenha ouvido falar dele, justamente, através dos filmes.

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