quarta-feira, 13 de maio de 2009

Ver e «vi-ver»

I

Chegámos a Palmarin, aldeia piscatória na costa senegalesa, com intenções de eremitério e aspirações de isolamento. Os primeiros quinze dias no Senegal, entre um carro que pegou fogo, a iniciação a uma seita islâmica, mas sobretudo a convivência humana sufocante, pediam repouso, e uma trégua na socialização, e escolhêramos a aldeia de Palmarin porque a língua de areia sem acessibilidades onde se situa e os discursos sobre a rarefacção humana daquelas praias (escutados Senegal fora), concordavam acerca do potencial terapêutico do lugar.

Todavia, uma aldeia, para ser aldeia e figurar no mapa, tem que ter gente. Sabendo-o de antemão, e conhecendo os senegaleses, fizemos questão de assegurar um perímetro tampão à nossa volta, elegendo um lugar não excessivamente longe da aldeia (para garantirmos acesso às boutiques de alimentos), mas suficientemente distante para, julgávamos nós, evitarmos ser importunados. Ao chegar enveredámos por um caminho de terra batida que contorna Palmarin e acabámos por montar arraial na periferia da aldeia, a uns quinze metros da beira-mar, no meio de um palmeiral contíguo a um acampamento de bungalows abandonado, aparentemente entregue aos fantasmas, mas também – viemos depois a descobrir – ocupado por um pequeno e heterogéneo grupo de vendedores de várias idades e proveniências que utilizam os bungalows, uns como casas, outros como pontos de venda de artesanato aos turistas provenientes de um resort que fica a um quilómetro de distância, e que são apanhados desprevenidos a apanhar conchinhas na praia por avalanches de bugigangas very tipical.

Volvidos quatro dias em Palmarin, a nossa missão de retiro revelara-se um redondo falhanço, o pretenso magnetismo humano levara melhor sobre as nossas pulsões de solidão, e África ensinara-nos mais uma lição.

Ao quarto dia, acordo prematuramente sob o efeito de estufa da tenda, abro-a, e preparo-me para concluir a recta final do meu sono debaixo de uma palmeira. Agarro no saco cama, na almofada insuflável, meto o primeiro pé fora da tenda, e fico por momentos a cobiçar as sombras frescas que bailam suavemente na areia. Ouço então o meu nome, gritado nas minhas costas, muito perto de mim. Olho, e deparo-me com o Papis, um jovem vendedor de artesanato, e mais dois amigos, sentados em cima de dois bidões, uns quatro metros atrás da nossa tenda.

- Bom dia. – murmuro, tímida e ensonadamente.

Como réplica, sou pulverizado com uma nuvem densa de cumprimentos:

- Bom jour! Nengadef ? Bien dormi? La nuit? Bien passé? En forme? Tranquille?

- Oui. Oui. Et vous? Ça va ? – (que tristonhos são o solitário “ça va?” e o insosso “bom dia, como estás?”, quando comparados com o chorrilho de cumprimentos e perguntas de saudação do senegalês médio)

- «Ouei!» Trés bien. Estávamos mesmo aqui à vossa espera. Nunca mais acordavam. – e o Papis abana a cabeça, em sinal de desaprovação – Vocês dormem muito! – e ri-se – E o André?

- O André ainda está a dormir.

- Mas anda, vem aqui sentar-te. Porque é que estás de pé? Temos que falar com vocês. Tenho aqui estes amigos que hoje nos vão levar a almoçar a Sambadja. Eles querem que vocês venham comer a casa deles e conhecer a sua família.

Fito as expressões dos dois pretos que ladeiam o Papis, sorridentes, olhando mais para o chão do que para mim, como se tivessem vergonha do seu convite, ou medo que eu não o aceitasse.

- Claro, claro que vamos almoçar com vocês. Não há problema. – apresso-me a dizer, em parte porque me apetece ir, em parte porque me faz pena não aceitar o convite, em parte porque quero despachar a questão para continuar a dormir.

Os dois pretos espremem as caras doces e ovais, como duas amêndoas verticais, em dois sorrisos de uma sinceridade embaraçante para as minhas emoções em segunda-mão.

- Então mas que estás à espera? Senta-te aqui connosco. Vamos falar sobre isto. – insiste o Papis.

Indeciso, olho ora para as sombras fofas de areia ao meu lado, ora para as expressões amáveis e bem-dispostas do Papis e dos seus amigos. São oito da manhã. Está no teu direito dormir, tento convencer-me, mas estico a hesitação demasiado tempo. Entretanto o André acorda, sucede-se nova agitação de cumprimentos, chegam mais o primo e o sobrinho de não sei quem, o ar empapa-se de barulho e acabo por compreender que o dia, irreversivelmente, começou.

Em Palmarin tem sido sempre assim. De manhã, quando acordamos, há já sempre quem esteja junto à tenda sentado num banco à espera que acordemos, a enrolar um cigarro, a fazer fogo, a bebericar vinho de palma, ou apenas a olhar o mar. Depois, durante o dia, o número de pessoas tende a aumentar: trazem a festa e o R´n´B dentro dos telemóveis, trazem peixe, trazem tachos grandes, trazem bancos, trazem enormes almofarizes de madeira e respectivos pilões do tamanho de homens, e vêem comer o peixe que se grelha ao almoço; os miúdos vêm jogar ao berlinde, os miúdos maiores vêem jogar à bola, os pescadores vêm falar da pesca, os mourides da sua seita, os desempregados da falta de trabalho, e há ainda dois sujeitos engraçados que vêm sempre olhar para as imagens das revistas de golfe que outro dos habitués rouba do resort.

(…)

Às quatro da tarde, estamos de volta do almoço, depois de uma viagem de carro de uma hora à torreira do sol, e de volta ao palmeiral onde temos a tenda.

De barriga ainda pesada do djebudjen (arroz com peixe e legumes, prato típico senegalês) e a cabeça a chocalhar da miríade de vozes da sessão de visitas a milhentos familiares que previsivelmente se sucedera ao almoço, olhamos com um enfado escondido e uma alegria um pouco forçada para o simpático grupo de homens que rodeia a nossa tenda, e que nos recebe com sorrisos e acenos, já saudosos e impacientes, assim que avista a nossa viatura. Paro o carro, respiro fundo e apelo aos meus melhores sentimentos. Claro que, mesmo volvido tanto dia, ainda estou a imaginar que bem que ficaria o meu corpo anatomicamente almofadado no piso de areia esponjosa. Mas eles não e, afinal de contas, vivemos em sociedade, não é? É justo que aqui estejam, afinal nós é que nos viemos meter na sua aldeia. Saímos do carro, sob o habitual dilúvio de cumprimentos, e um destes guardas voluntários da nossa tenda, o Momar, aponta-nos um alguidar cheio de solhas.

- São para vocês. – diz-nos – Hoje vou preparar um prato especial. Vamos fazer uma jantarada.

- São quatro da tarde, acabámos de almoçar, e já está o jantar tratado. Isto é que é vida! – diz o Papis, com um sorriso, e toda a gente se senta, contente, a cacarejar. Só eu é que fico a olhar para o alguidar, a tentar agradecer ao Momar, mas incapaz de extrair mais da minha expressão que um sorriso indeciso, e um esgar de sofrimento, de asfixia.

Tento recordar-me se tinha alguma coisa importante para fazer neste dia, e que afazer importante é esse que me está sempre a puxar para trás, a impedir-me de me deixar ir com o dia, uma vez que, faça eu o que fizer, aqui não tenho qualquer controlo sobre ele. Mas não me lembro. Seria apenas o dormir?

II

Não se pode desaguar num lugar e ter a presunção de poder não interagir com ele como se se visitasse um jardim zoológico ou um museu, e no entanto é muito difícil não cair no erro de julgar que a viagem não é mais do que exercitar a posição do contemplador: espreitar por cima de um caderno, escrevinhar sensações escondidos atrás dele, bisbilhotar através do zoom de uma máquina fotográfica, susceptibilizar a nossa massa encefálica (prepará-la, vulnerabilizá-la intencionalmente, da mesma forma que a preparamos para ir a uma galeria de arte) para se deixar estampar pelas impressões que chegam de fora, da janela de um carro, de um café, de um comboio.

Mas se essa ideia é absurda em termos gerais, em África é pura e simplesmente impraticável. Aqui, alteradas as regras da privacidade e do espaço físico (seja culturalmente, seja pela necessidade – questão antropológica vasta), ninguém parece conhecer limites temporais de confraternização, barreiras espaciais de privacidade, e ninguém parece reconhecer itinerários individuais de comportamento demasiado… individuais (vem-me invariavelmente à mente, certo dia, em Kaloack, em que tive que expulsar alguém que quis vir comigo à casa de banho, preocupado que eu não conseguisse usar a sanita africana, e que me teria ficado a ver defecar se não o tivesse impedido).

Se o contemplador, para exercer a sua arte (de contemplar), necessita da existência de uma relação indirecta entre ele mesmo e o contemplado em que, sobretudo, o segundo não o interpele, em que jamais lhe exija que abandone o seu mutismo de observador para interagir, então os senegaleses são o pesadelo do contemplador, e certamente, como comentou certa vez o André, a terapia de choque – talvez o antídoto supremo – para o tímido. Nos antípodas do Safari envidraçado, do turismo-vitrine, a África senegalesa é uma espécie de modelo humano de pintura ao mesmo tempo fascinante e inquieto – sedutor, belo, mas ao mesmo tempo insuportável, impossível de registar – e, certamente, é o garante de uma imersão turística no típico, no tradicional, no nativo, no local, com todo o risco de nos soterrarmos na nossa própria vontade de imersão. Há ver e há vi-ver.

Um mês antes, um casal de jovens belgas que tinha tirado seis meses para viajar por África numa carrinha, cruzava-se connosco na Mauritânia. Nós estávamos a descer, eles a bater em retirada. Tinham feito apenas três meses mas tinham decidido pôr cobro à viagem e gastar os restantes três no Sul da Europa. Porquê?, perguntáramos. Não tínhamos descanso. Estamos exaustos, fora a resposta que, na altura, não compreendi muito bem.

2 comentários:

  1. De volta, depois de quase um mês de silêncio forçado, não? Cá estamos para voltar a ler novos e soberbos textos. Para já, fica a constatação - a África cansa. Deve cansar até aos africanos, que votam aos milhares, todos os dias, com os pés. Grande abraço. FCO

    ResponderEliminar
  2. Cansa, pois cansa, e eles também se dizem sempre muito cansados. E o problema é precisamente esse: está tudo exausto e ninguém acredita honestamente que as coisas possam mudar, e por isso também ninguém faz nada por isso. Já o que vi de eleições, ainda tem mais de Benfica-Sporting que as nossas… Um dos badalados argumentos do Kumba Yalá (que está de novo a concurso) nas eleições que ganhou, durante um debate frente ao seu adversário foi: “és feio”.
    Os únicos que não estão cansados parecem ser os quadros das ONGs, que aqui são aos milhares, mas esses também estão aqui a ganhar somas anti-cansaço.
    Fica outro abraço e, uma vez mais, o agradecimento pelo incentivo, que conta muito

    ResponderEliminar