quinta-feira, 21 de maio de 2009

O enclave

I.

Em Sukuta, a uns 20km de Banjul, capital da Gambia, existe um parque de campismo gerido por um casal de alemães que aí também habitam, e que poderia ser descrito sobretudo como um enclave de lei e ordem em solo babilónico: do gerador que carrega baterias de máquinas fotográficas ou telemóveis que tem que ser a Claudia (a alemã) a ligar (embora não passe de um estúpido botão), há hora dos check-outs, à impossibilidade de se trazer comida de fora para o agradabilíssimo alpendre que está sempre vazio e a cheirar a lixívia e que não se percebe para que serve, ao quadro de giz onde devemos escrever o nosso nome até duas horas antes da refeição se pretendemos almoçar ou jantar, tudo está submerso numa aura densa de regras e normas que delimitam, categorizam e definem espaços, tempos e tarifários para todas as situações possíveis dentro deste pequeno mundo, como se o objectivo fosse esquecermo-nos – ou esquecerem-se – que estamos em África.

A situação que relato, por insignificante que seja – a história é sobre a secagem de um alguidar de roupa lavada – não deixa, creio, de servir de ilustração etnográfica da persistência de fronteiras mentais dos povos, mesmo depois de décadas de íntima convivência.

Para dizer o que quero dizer devo começar por referir dois detalhes: o parque de campismo tem um estendal com cinco cordas, e o parque estava, no momento da nossa estada, a uns 10% da sua ocupação (havia apenas 5 pessoas).

Naquela manhã, durante uma hora, lavei quase toda a minha roupa – que cabe numa mochila de 40L (umas dez peças diferentes) – e chegou eventualmente o momento em que pergunto a uma funcionária do parque se a posso estender nas tais cinco cordas, que se encontram meio ocupadas.

- Claro – diz-me a gambiana – as cordas estão aí para isso.

Estendo parte da minha roupa em duas dessas cordas. Passado um bocado, a Claudia vem ter comigo à tenda:

- Peço-lhe desculpa, mas tem que tirar a sua roupa dali. É que hoje temos muita roupa lavada.

Não consigo evitar olhar à minha volta para me certificar que ainda estamos no mesmo acampamento deserto. Depois admiro o alguidar que a Claudia segura nas mãos, olho para o espaço que resta na corda, mas não me atrevo a dizer que existe espaço para tudo.

- Com certeza. Há algum outro sítio onde a possa estender?

- Sim, numa corda entre duas árvores. – responde ela, resolutamente.

- Ok. E onde é que ela está?

- Tem que ser o senhor a montá-la.

- Ah… não existe. Bem, se tem que ser, não tem problema. Tem aí a corda para eu a meter? – pergunto naturalmente, e nem me ocorre que a resposta possa ser negativa.

- Não. Desculpe. – e a Claudia ri-se – não temos cordas. Tem que ser uma corda sua. – e, como que para vincar que o problema da minha roupa estendida nas suas cordas, apesar de eu ser hóspede do seu parque de campismo, é radicalmente meu e termina ali (pelo menos para ela), e que as posso meter onde bem quiser desde que as tire do estendal, vira as costas e vai-se embora (mas será que ela percebe que eu não vim para África com cordas da roupa na insignificante mochila que trago às costas, e, afinal de contas, estamos num parque de campismo: não terão algures uma corda?).

Resignado, derrotado, retiro a minha roupa das cordas e começo a estende-la por cima da tenda e nos ramos das árvores em volta, e dói-me o coração por cada peça de roupa tão esmeradamente lavada que agora entrego ao pó das novas superfícies de secagem. E eis que, subitamente, uma preta que vive com os filhos e o marido numa barraca num recanto dentro do parque (é uma família africana que está toda empregada aqui: são guardas-nocturnos, cozinheiros, mulheres da limpeza, jardineiros e construtores civis) me começa a chamar:

-Oh! Tu! Que é que estás a fazer? Vem aqui meter a roupa! – diz, ao mesmo tempo que me acena. Está a oferecer-me a sua própria corda da roupa, que fica por cima do fogo onde estão a fazer a comida, por cima do espacinho onde cinco miúdos estão a brincar, por cima do banco onde ela própria está sentada.

- Não é preciso. – digo eu, receoso de arranjar trabalhos – Vou armar aí uma confusão.

- Não vais nada! Não tem problema. Anda! – retorque a preta, com uma gentileza que tinha ficado sobretudo bem aos donos do parque, de quem sou cliente, e não a esta mulher, que não ganha nada com a minha roupa encharcada.

Dirijo-me a ela e à sua corda, e começo a estender a roupa. Ela observa os meus movimentos, e às tantas escangalha-se a rir. Sem uma palavra, tira-me uma camisola das mãos, enrola-a e começa a espreme-la com toda a força.

- Assim é melhor. – diz, categórica, enquanto força um rio de água a espirrar com toda a violência da camisola.

Rio-me perante a eficácia do método e digo:

- Tem razão.

E entretanto, sem ninguém lhe pedir nada (e esta não é minimamente a obrigação dela, que está, afinal, na sua casa), começa a pegar-me nas calças, camisolas, e roupa interior e espreme-las e a ajeitá-las na corda, escarnecendo o tempo todo da minha falta de jeito.

Regressando da sua barraca, passo pelo estendal do parque e contemplo, com tristeza, a enorme quantidade de espaço livre deixado: teria sido suficiente retirar o espaçamento de meio metro entre cada lençol da Claudia para permitir que coubesse toda a minha roupa. Uns vinte minutos mais tarde, ao dirigir-me à casa de banho, deparo-me com toda a família gambiana a almoçar do mesmo prato precisamente debaixo da minha roupa molhada, e contemplo, quase comovido, os pingos esporádicos provenientes dos meus boxers ou t-shirts que vão caindo em cima dos seus pescoços dobrados sobre o prato ou em cima do arroz com peixe (djebujen), situação que não parece aquecer nem arrefecer ninguém, uma vez que bastava deslocarem o prato meio metro para o lado para evitar esse contacto excessivo com a minha roupa lavada.

II.

É bem possível que se a preta não me tivesse oferecido tão desinteressada e, ouso dizer, humanamente a sua corda, nunca tivesse chegado a ganhar verdadeiramente a perspectiva da dimensão da antipatia comichosa alemã. Não que fosse grande surpresa comprovar que são os alemães que detêm o parque de campismo, mas que são os gambianos que sabem como se tratam as pessoas. Porém, não consigo perceber o que é que este casal está aqui a fazer há 11 anos. Se o objectivo era virem para aqui mas continuarem numa Alemanha com 35 graus Célsius, conseguiram-no.

Neste duelo local de titãs entre os dois grandes pragmatismos do globo, concluo que a badalada praxis alemã é uma parente muito pobre do pragmatismo e facilitismo africanos, e é talvez erroneamente denominada. Trata-se porventura mais de uma bóia de salvação: uma espécie de meio único de acesso ao oxigénio no meio de um mundo (talvez não apenas africano) de um caos asfixiante e sob a ameaça implacável da essencial componente de incerteza da vida (com que os alemães decididamente não sabem lidar). O pragmatismo alemão (de que os países protestantes padecem um pouco mais, e a Europa do Sul um pouco menos) é menos uma simplificação do que um meio de fuga à angústia da desordem e tende a reduzir-se a uma mera aplicação das regras (do livro, da lei) e de pré-determinações, sendo rígido e inflexível, ao passo que o pragmatismo africano não parte de um livro, de uma lei ou de nenhuma pré-determinação, mas surge no momento, improvisado na dificuldade da situação, e é completamente plástico e adaptativo.

Isto não deixam de ser resmunguices necessariamente enviesadas pela minha posição de cliente: o pragmatismo alemão, tão bem oleado, tão funcional, tão escrito, foi incapaz de lidar com a minha roupa lavada. O pragmatismo africano, tão etéreo, sem recibos, sem preços tabelados, secou-me a roupa. Mas estou convencido que se tratam também de emblemáticas contingências de um povo hiper-funcionalista, destinado a vencer, mas a chatear-se sempre com os outros.

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