sexta-feira, 15 de maio de 2009

Ver e «vi-ver» II - Momar

I

Depois de um almoço para o qual tínhamos sido convidados, é tempo de regressar aos arredores da aldeia piscatória de Palmarin, onde temos tenda montada. De barriga ainda pesada do djebudjen (arroz com peixe e legumes, prato típico senegalês) e a cabeça a chocalhar da miríade de vozes da sessão de visita a milhentos familiares que previsivelmente se sucedera ao almoço, olhamos com um enfado escondido e uma alegria ligeiramente forçada para o simpático grupo de homens que rodeia a nossa tenda, e que nos recebe com sorrisos e acenos, já saudosos e impacientes, assim que avista a nossa viatura. Aguarda-nos essa algazarra comedida, que quer apenas tagarelar, beber e comer. Paro o carro junto à tenda, respiro fundo e apelo aos meus melhores sentimentos. Mesmo volvido tanto dia, ainda estou a imaginar que bem que ficaria o meu corpo e a minha barriga cheia anatomicamente almofadados no piso de areia esponjosa. Mas eles não e, afinal de contas, vivemos em sociedade, não é? É justo que aqui estejam. Afinal nós é que nos viemos enfiar na sua aldeia. Saímos do carro, sob o já habitual dilúvio de cumprimentos, e o Momar é o primeiro a avançar para nós.

Momar é um corpo frágil, a maturar há uns quarenta anos, onde se equilibra a custo um crânio erodido e sulcado, de ossos salientes que lhe retesam a pele nos vértices, e de dentro do qual vibra uma voz quente e cadenciada. Vive aqui, em Palmarin, e vende artesanato na praia aos turistas de um resort de luxo que fica a não mais de um quilómetro de distância. Dá-nos as mãos, conduz-nos até à fogueira apagada, atrás da tenda, e aponta-nos um alguidar a abarrotar de solhas.

- Banquete para os meus amigos! – exclama – Hoje vou preparar um prato especial. Vamos fazer uma bela jantarada.

São quatro da tarde e nem queremos acreditar que o dia já se desfez de todos os seus problemas práticos. Desfazemo-nos em sorrisos, agradecemos a gentileza, e mostramo-nos felizes com a surpresa.

- Não tinha nada para fazer. – acrescenta o Momar, abrindo os braços, em gesto, todavia, de lamentação – e passei o dia a ajudar a puxar as cordas dos pescadores, em troca do peixe. Faltam apenas alguns ingredientes para acabar a preparação do jantar.

Recebemos e encaixamos bem o pedido subentendido de co-financiamento do jantar e garantimos a compra dos componentes em falta. É justo, afinal fomos presenteados com uma enorme quantidade de peixe fresco, fruto do trabalho de braços do Momar, e das vicissitudes da vida em Palmarin, aldeia que tem, de facto, apenas duas fontes de entrada de divisas: o peixe e o artesanato para os turistas. Esta última depende quase em absoluto do resort que, neste momento, está às moscas, o que força os vendedores a ir ajudar a puxar as redes das pirogas para terra a troco de quatro ou cinco peixes por barco.

Aparentemente acordados os termos do jantar, preparamo-nos enfim para não fazer nada, e sentamo-nos na companhia de toda a gente. Todavia, o Momar mostra-se irrequieto, e acabamos por perceber que, por qualquer razão obscura, pretende ir de imediato à aldeia comprar o que falta para cozinhar. Embora só me apeteça deitar-me e deixar para o meu estômago todo o trabalho produtivo desta tarde, faço-lhe a vontade.

Minutos mais tarde, já no caminho de regresso à tenda, com o óleo vegetal, pimento, cebola, farinha, Jumbo (caldo de carne ubíquo, condimento omnipresente em todos os pratos do Senegal), concentrado de tomate e batatas dentro de um saco, o Momar começa, como quem não quer a coisa, a traçar-me as linhas gerais da sua situação financeira, que se pode resumir ao facto de não vender nada há duas semanas. Acredito nele, e sei que esse retrato significa que o Momar não tem, de momento (e provavelmente há já duas semanas), qualquer tostão no bolso, ou em lado algum do mundo.

Exprimo-lhe a minha inútil compreensão, tento animá-lo dizendo-lhe que com certeza estão para chegar mais turistas, mas ele continua a queixar-se, e, nesta toada, damos por nós de novo na tenda. Sento-me com os outros mas, novamente insuflado de uma atitude de urgência, e mesmo perante a letargia alheia, o Momar dá início aos preparativos para confeccionar o jantar. Limpa tachos, corta cebolas, acende a fogueira, e, durante algum tempo, ninguém tem coragem de lhe dizer para parar nem de levantar o rabo para o ajudar. Finalmente, exibem-se panças dilatadas e expõe-se o óbvio: são cinco da tarde e ninguém tem fome. O André acrescenta, amavelmente, que, se tem muita fome, pode todavia continuar.

O Momar retorque, com uma amabilidade que lhe custa, não ser questão de apetite, e que era sua intenção comer em casa com a família, razão pela qual pretendia preparar já o jantar. Este prato, explica-nos, é a grande especialidade das suas mãos, e é apenas um presente. Dito isto, embora já tenha a fogueira acesa e tudo encaminhado, cessa todo o movimento e deixa-se ficar sentado, desconsolado e tristonho, sem saber bem o que fazer, a olhar para as labaredas. Passado uns minutos, chama-me de lado e confessa-se:

- Há duas semanas que só faço peixe e nada de moeda. Hoje tenho que voltar para a minha mulher e não tenho nada para dar de comer à minha filha amanhã de manhã. – o resto não precisa dizer, embora o diga com rodeios. Fico a olhar para ele e para a confecção interrompida e a juntar as peças de um puzzle muito simples.

- Quanto é que precisa Momar?

- Ah, não sei… não consigo... – balbucia, encabulado, olhando para o chão e brincando com a sandália na areia – Eu não lhe peço nada.

- 1000CFAs, chega? – pergunto-lhe.

- Sim. – aquiesce o Momar, muito sério, muito atrapalhado, esfregando os ossos da cara.

Dou-lhe a nota para a mão e pergunto-me, com violência: que outra coisa podia eu fazer? Então este homem saiu de casa de manhã, esteve a puxar cordas para conseguir peixe que não lhe servia para nada, e, mesmo sem saber onde estávamos hoje, se voltaríamos para dormir, reuniu lenha para a fogueira, trouxe tachos, e assentou praça meio dia na nossa tenda à espera que chegássemos para nos cozinhar um jantar que não sabia se queríamos comer, a uma hora completamente absurda, tudo isto para ter uma razão para nos pedir qualquer coisa em troca. Que podia eu fazer? Cabe-me a mim limitar-me a comer as solhas, e dar-lhe o pequeno-almoço da filha (fictício ou não) em troca. O Momar mereceu bem as 1000CFAs (1.80€).

II

Eu e o André desembocáramos no pequeno paraíso perdido que é a aldeia costeira de Palmarin com o intuito específico de descansar dos homens, de um Senegal que, até aqui, tinha sido, simplesmente, excessivo. Mas essa utopia do éden tropical balnear (esse lugar-postal onde, mais que tudo, ninguém nos chateia) existe apenas dentro dos muros do Club Med. Limitámo-nos, de facto, a acampar nas redondezas de Palmarin, furtivos, silenciosos, sem dizer palavra a ninguém, e todavia, sem aviso prévio, a aldeia caiu-nos cima, e continuou a cair, dia após dia, num movimento sem tréguas.

Palmarin tentou perceber o que queríamos, o que nos podia dar, o que lhe podíamos dar em troca, e procurou balançar o equilíbrio de intercâmbios connosco (e este foi um entre tantos exemplos possíveis). Sem controlo possível, os dias foram passando, e fomo-nos tornando parte orgânica da aldeia. Se um de nós tossia, alguém aparecia com uma mezinha tradicional, se começávamos a acender uma fogueira, havia quem começasse a apanhar cocos, se nos confessávamos solitários, alguém nos oferecia uma mulher. E esta não é a postura de uma aldeia experimentada e sabichona em relação a turistas brancos (raramente aparecerá aqui alguém na nossa situação. Os brancos que aqui passam são parelhas de Victorias e Beckmams do resort de luxo, cujo contacto mais íntimo com o Senegal consiste na recolha de conchas) objectivamente apontada à extracção financeira. Não creio que tenha existido entre nós mais do que um natural mecanismo de procura relacionamento (do qual, obviamente, a questão económica faz parte). «Sinergias», como agora está na moda chamar a tudo: as pessoas estão em constante rota de colisão umas com as outras, colam-se, ficam de pele grudada umas às outras.

E, todavia, o turismo é que criou essa diferenciação artificial, essa ideia de que se pode passar pelos lugares sem interagir com eles, sem nos envolvermos directamente na questão do pagamento do pequeno-almoço da filha do vendedor que conhecemos na praia, sem sermos, de certa forma, responsáveis por essa refeição. Mas, e uma vez mais, essa diferenciação entre homem e turista (que consiste na ideia de que há quem viva, e quem apenas veja), é puramente ilusória. O turista está envolvido até às orelhas na vida da aldeia. Apenas o ignora. A insignificante nota de 2000CFAs pela qual o ricaço francês compra um colar à filha por brincadeira e que vai ficar esquecido no fundo de uma mochila de praia ou do porta-luvas do carro alugado, é a nota que vai ser usada para sustentar uma família inteira durante dois ou três dias. O turista é que não se apercebe disso. Nós, acampados ali na praia, pudemos ver esse dinheiro – tão escasso – a mexer-se, a ser esticado, retalhado, e um comerciante a fazer pirraça aos outros quatro ou cinco por causa de um colar vendido, e o Louis a alcoolizar-se com vinho de palma para se esquecer que não vendeu nada.

No dia seguinte, a mulher do Momar, com um bebé atado às costas, ciranda à volta da nossa tenda, tentando compreender o que pode fazer por nós, ensaiando tirar-nos das mãos todo e qualquer trabalho manual que experimentamos principiar. A situação, claro, é insustentável, mas não tem nada de invasivo. É justo que ela aqui esteja, afinal nós é que viemos enfiar-nos na sua aldeia. Se há um invasor aqui, somos nós. Já o facto de sermos turistas e de, eventualmente, termos imaginado de qualquer outra idílica forma a nossa presença, é problema nosso. O turismo, por turismo que seja – por ver a vida que seja – é ainda vida efectiva.

2 comentários:

  1. Então e se abrirem um negócio de comércio justo e sustentável? Sabem que terão colaboradores em Portugal.

    Abraço

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  2. Não tenho a certeza que saibam o que é comércio justo ou sustentável (embora desconfie que o pratiquem sem o saberem)... Também acho que não sabem que terão colaboradores em Portugal (também não devem saber onde fica).
    É difícil.

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