domingo, 31 de maio de 2009

Geografia

Um dos mais belos e recorrentes momentos do branco em África é a inevitável lição improvisada de geografia. Basta perguntarmos os projectos de vida a um jovem africano para garantirmos uma boa possibilidade de sermos convertidos em cartógrafos. Numa das recorrências da lição, no Sul senegalês, terminava um almoço num restaurante de liberianos: um cubo feito de ripas de cana entrelaçada com um tecto de leques de folhas de palmeira que pareciam papel de parede, dentro do qual se chupam as cabeças dos peixes em cima de uma enorme porta de madeira estendida sobre dois jerricans de água. Alguém me berra, como que subitamente espantado de me ver ali, violando o silêncio salivante dos maxilares:

- Mas então tu…? Estás aqui e porque é que não nos explicas como fazemos para ir para o teu país, se sabes que queremos ir para lá?

Aturdido, olho para o preto espadaúdo e indignado. Demoro a responder:

- Mas o senhor nem sabe de que país é que venho.

- Vem da França.

- Por acaso não, venho de Portugal.

- Mas eu também quero ir para lá. Ah! Ah! – retorque, e os restantes clientes riem-se também. – E quero ir para a América!

- Mas então quer ir para todo o lado? Tem que se decidir.

- Eu quero é sair daqui! – e a gente volta a rir-se, mas ele adopta repentinamente uma postura séria, e pergunta – Mas diga-me lá: como faço para ir para a América? Tenho que passar pela França?

Talvez devido à entoação da voz, que pede resposta concreta, há quem pouse colheres e peixes nos pratos de plástico para ouvir o que tenho a dizer. Começo por uma revelação escandalosa: digo que os Estados Unidos estão praticamente à mesma distância de Portugal que do Senegal. Mas a minha precipitação em largar esta novidade bombástica gera um gargalhar geral que me estremece as têmporas e as paredes de folhas do restaurante e me impede de concluir que é devido a ela que não é necessário passar pela França, que fica a Leste. O problema é que a gente ri disparatadamente. Agarram-se uns aos outros, guincham, e cochicham sobre o que eu disse em línguas que me são estranhas como se eu tivesse pronunciado as palavras mais incríveis.

Olho em volta, para aquela balbúrdia, dou por mim a rir sozinho, como um louco, e parece-me subitamente impossível não achar graça à barbaridade que eu próprio disse. Quando as coisas acalmam, esforço-me por recuperar a sanidade mental e desenho um mapa no chão do restaurante, para ver se torno as minhas palavras credíveis. Homens, mulheres, crianças, há um magote de gente que se aproxima e se acotovela sobre as minhas linhas de areia.

- Está a ver senhor: o Senegal é aqui. Por cima fica a Mauritânia, depois o Sara, Marrocos, Espanha e Portugal. O Atlântico está para este lado, pelo que os Estados Unidos são do outro lado. Para ir até lá…

Mas o tipo interrompe-me:

- E os Estados Unidos são mais longe de Portugal do que Portugal da França?

- Sim, muito mais.

- Quanto mais?

- Não sei. Umas cinco vezes.

- Cinco?! – exclama-se por todo o lado. Ribombam novas explosões de risos histéricos por todo o restaurante. Percebo que, noutras línguas, comunicam o que eu disse aos que não me compreenderam. Percebo-os a gritar uns aos outros: “cinco vezes!“, “cinco vezes!”. Por fim, quando os ânimos serenam, volto ao planisfério e ponho-me a exemplificar o que disse. Há cada vez mais gente debruçada sobre mim.

- Mas tu… – diz um rapaz num tom que é quase de protesto, meneando a cabeça, arrastando a voz ao mesmo compasso que escancara as pálpebras. – Tu podes ir a todo lado. Sabes as estradas todas.

Olho, sem saber o que dizer, para o meu mapa tosco: a silhueta deselegante de África, a Europa circuncidada da bota italiana, o Mediterrâneo encolhido e uma América do Norte desproporcionada.

- Não. Eu não sei ir a todo o lado. – e tento explicar que conheço as distâncias por alto e alguns países também, mas que não conheço as estradas dentro deles, nem as aldeias ou as cidades, que sei apenas direcções gerais, e que é apenas isso.

- Não, não, não. – discordam todos, e há um homem, dos seus quarenta anos que me tenta persuadir – Se eu soubesse assim os lugares como tu sabes, sabia sempre onde estava. Nunca me poderia perder. Podia ir onde quisesse.

Não os posso convencer. Este último insiste:

- Tu – e arrasta também ele o “tu”, que adquiriu um “T” tão monstruoso que eu nunca me senti tão importante na minha vida – Tu és um grande professor. Sabes muitas coisas.

- Já foste à América? – pergunta um terceiro.

- Não.

Noto algum desapontamento no mar de caras pretas que me fixa.

- Então és europeu e não foste à América?

- Não estás a prestar atenção. – respondo a este, que me está a tentar pôr em xeque – Então olha lá para o mapa. Vê lá as distâncias. Então não acabei de dizer que estamos à mesma distância? Para mim a América é tão longe como para ti. – respondo. E venço. A lógica da minha tirada é aprovada, e desata-se tudo a rir e a galhofar. Os homens protestam com ele, chamam-lhe burro, espetam-me safanões amigáveis nas costas e apertam-me a mão. Há quem fale consigo próprio e se abandone a uma ruminação meio extasiada da minha reafirmação de divórcio entre Europa e States.

- E de Portugal a Paris, pode-se ir de metro? – pergunta-me a custo um velho, no qual já há muito tinha visto vontade de falar, exprimindo a ideia com gravidade, como se essa fosse uma dúvida profunda e antiga (o metro é uma pergunta recorrente. Não sei a que túnel o foram buscar, mas toda a gente acha que se pode ir de metro para todo o lado. Não tenho a certeza se é porque não têm noção das distâncias, se porque o metro, por ser o único meio de transporte inexistente em África, se tenha transformado num pedaço de civilização mítico, arquétipo do desenvolvimento, quintessência tecnológica de propriedades excepcionais).

- Não.

- E Cabo Verde? Onde é? – pergunta outro.

- Cabo Verde é aqui – aponto na areia.

- Ouvi dizer que de Cabo Verde se vê a luz de Lisboa ao fundo no mar. – diz um rapaz.

Atrapalho-me.

- Não sei. Não sei se se consegue ver. – tento explicar – Estão a ver a distância aqui no mapa… talvez se veja luz de outra ilha… E além disso a Terra é curva… é por isso que o horizonte é finito… – e perco-me nestas explicações inúteis.

- Mas um amigo meu esteve lá e viu as luzes de Lisboa.

Hesito.

- Bem, mas… sim, sim, porquoi pas? – acabo por concordar. – É possível caramba!

E enche-se tudo de sorrisos à minha frente. Festeja-se. Parece que vamos todos partir de viagem juntos. O mundo inteiro cabe dentro da nossa barraca. Cada cabeça aqui flutua pela crosta terrestre a uma velocidade super-sónica e, tenho a sensação, com um ímpeto tão mais pujante que aquele que me fez partir de Lisboa. Se pudesse, naquele momento, levava-os todos comigo

1 comentário:

  1. Do Sal vê-se a luz de Lisboa... bela imagem. Cheia de poesia, de segundos e terceiros sentidos. Boa frase para começar o que quer que seja - uma conversa, um poema, uma prosa mais ou menos romanceada. Nunca tinha ouvido. Mas vou ficar com ela para sempre. Abraço, Francisco.

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