domingo, 24 de maio de 2009

Neo-colonialismo

Sentamo-nos para jantar num restaurante na vila de Kafountine. De um lado da prancha de madeira, eu e um ex-mecânico de caças francês de 32 anos que acabou de largar o emprego para vir procurar no Senegal o que não encontrou de chave-inglesa na mão dentro das turbinas. Do outro lado da barricada, um velho francês ladeado por duas jovens irmãs senegalesas, uma mais açucarada, bonita, com um bebé às costas, na casa dos vinte, a outra, muito tímida, melancólica ou enjoada – não cheguei a perceber – e mais nova. Este velho vive espojado no ócio africano há 28 anos, e tem andado aparentemente por aqui a gozar dos privilégios associados à tez caucasiana, ou não se babasse com tamanho à vontade e abundância para cima das duas moças. Quando nos sentamos, enlaça-as com os braços e ri, com regozijo. Humedece os lábios engelhados com a língua antes de falar:

- Bela moldura, hem? Olhem para a minha sorte. Vocês é que são os miúdos, e a mim é que me saíram estas duas na rifa.

O velho tem essa postura desdenhosa de macho quarentão, com que deve ter desembarcado aqui 28 anos antes, que consiste numa atitude estandardizada de sarcasmo para com a realidade, independentemente de a situação o justificar ou não, e que pretende dar a entender aos outros o seu distanciamento completo de todos os pormenores mesquinhos da existência, da estupidez individual intrínseca de cada um e de cada situação, pose de superioridade omnisciente que se torna patética porque o velho já não compreende parte das situações que se desenrolam à sua volta (dos velhos, frequentemente, fica-lhes só o tom da voz que usaram para viver; uma prepotência discursiva sem conteúdo, que já não tem relação com o que se passa, que já não diz nada senão sobre eles, que é apenas som – por vezes tenho medo disto).

Irrequieto, olhos cintilantes e boca a salivar, vai afagando as lombas de carne mais salientes das duas meninas com as mãos mucosas e aracnídeas: as pregas fofas que lhes pendem, consistentes, dos antebraços, as bochechinhas, os queixos, a pança rechonchuda da mais espevitada. Vai também saturando o diálogo de entrelinhas porcas:

- Com que então gostas de vinho minha filha! Tens bom gosto. Preferes o que leva tempo a madurar. – depois reclama, entre dois tragos do anis que se lhe tem vindo a acumular no nariz bolboso e vermelho – Ah, meus amigos, puseram-me numa situação difícil. São duas princesas tão encantadoras que não sei qual é que hei-de escolher.

O decorrer da refeição, e o nariz dilatado, vão-lhe progressivamente soltando as mãos, que se entregam a locomoções larvares, como dois tentáculos gordurosos e irrequietos, que se ocupam de investigar os recantos do corpo das duas, guardando evidentemente as prospecções mais insistentes para a mais bonita. Eventualmente, os seus braços acabam por submergir de vez debaixo da mesa, irresistivelmente enclausurados nas pernas das duas. Por esta altura, o velho já não bebe nem come, porque já não tem mãos para isso. Tem os maxilares cerrados, os lábios entreabertos, e os dentes amarelos a rangerem e a esguicharem pelas frestas convulsões de ar respirado sem coordenação. Está descontrolado.

A sua excitação contrasta com a cara da pretinha acanhada, solidificada numa apatia incomodada, como se estivesse nauseada, e que não deixa perceber o que lhe faz o velho com a mão; a da mais bonita, sempre sorridente, vai balançando e contraindo-se em trejeitos, e transparece pelo menos a resignação de quem reconhece nada poder fazer perante o poder indiscutível de uma mão branca. Esporadicamente, o velho mete-se com a irmã mais feia e diz disparates do género:

- Uma rapariga tão bonita mas tão tímida. Non Non Non. Tens que aprender a ser com a tua irmã. – e os presentes riem-se, como se aquilo fosse coisa que se dissesse a alguém – Ela sabe o que um pobre homem velho cansado como eu gosta.

Eu também estou descontrolado. Sei vagamente que deveria abandonar a mesa mas não abandono: paira sobre ela uma conivência relaxada que me confunde, uma atmosfera ébria de descontracção tropical tão absoluta, que a minha rigidez moral me suscita dúvidas, me parece exagerada. Para além disso, deduzo que o velho me vá pagar o jantar. Sou pior que ele.

E, de repente, muito naturalmente – eu já o tinha previsto –, a senegalesa mais bonita pesca o bebé do pano que o sustém e espalma contra as suas costas, tira o seio murcho para fora, e começa a dar-lhe de mamar. O velho, apanhado de surpresa, demora um bocado a arranjar uma reacção adequada:

- Oh la la! Mas de onde é que este veio? – diz, já fora de tempo – Ah! Em África os putos saltam de todo o lado. – e percebe-se que estava tão vidrado no seu próprio gozo que não tinha antes reparado que ela trazia um bebé consigo.

Depois de um breve compasso de desilusão, recompõe-se e cessa de dirigir a palavra à jovem mãe. O jantar aproxima-se do fim, e, como se não soubesse como penetrar na apatia da outra, troca a voz irónica e ácida por um falsete meloso em baixo volume e por um discurso mal soletrado, imitando a forma como se dizem parvoíces a um bebé:

- Meu docinho… Meu amorzinho… – sussurra-lhe, embora se oiça – Tu es si belle.

Ela não reage. Conserva a expressão muda, alienada, como se não estivesse ali, e que a torna ainda mais feia. A irmã continua a rir, e a criança a mamar tem dificuldade em abocanhar o seio, que sacoleja e lhe salta dos lábios.

-Já te tinham dito que és linda não já? – prossegue o ancião, aproximando-lhe os lábios do ouvido – Quero que venhas comigo. Hoje à noite vamos brincar, meu bebé.

Mas ela nada diz. Limita-se a fitar uma perna de frango inacabada no prato à sua frente, e a brincar com o garfo com o seu osso feito antena, feito cano de tanque, apontado ao velho.

- Vens comigo não vens? – diz o decano, agora mais imperativo, mas não obtém reacção e, como que desesperado, redobra os esforços de insinuação: chega-se, faz-lhe perguntas, propaga os membros viscosos debaixo da mesa. – Então, o gato comeu-te a língua? – e a irmã ri exageradamente – Porque é que não falas? Tens vergonha? Não precisas de ter vergonha. Tens medo. É isso, não é? Mas eu não te vou fazer mal nenhum... – diz, deixando escorregar as palavras da boca como chocolate derretido.

Admiravelmente, a rapariga resiste, e provoca-me nesse momento a impressão violenta de ser a única pessoa a portar-se condignamente nesta espelunca: é a única que não faz teatro. Porta-se como o insecto a que está reduzida. A sua circunspecção é uma muralha majestosa e impenetrável. Por detrás dessa face de betão armado, dos seus lábios grossos de cimento castanho, pode estar a acontecer tudo: do mais atroz sofrimento, a um passeio nas nuvens, num qualquer castelo de fadas, muito longe dali. Os outros que apreciem as baboseiras do polvo francês.

- Gostavas muito de passar a noite comigo, não gostavas?

E por esta altura, tardia e passivamente, a mesa sofre um click subliminar. Eu, como provavelmente os outros, sinto-me subitamente sugado para fora da peça de deboche representada à mesa, saído de dentro de um filme, e a minha cabeça cansada discerne enfim um limiar cristalino da razoabilidade, ultrapassado há tanto. Não sou o único. Já ninguém ri deste calor, do álcool, da comédia da vida, dos desvarios de um velho febril e castiço, afectado pelos trópicos e pelo sexo fácil: a cena tornou-se crua, degradante, a tragédia de um homem patético.

Gosto de pensar que esta transformação se dá devido ao silêncio invencível da preta enjoada. Todavia, não é suficiente para que alguém manifeste uma centelha de indignação.

- Não gostavas? Responde-me. – diz o velho com brusquidão, impacientando-se finalmente, esquecendo-se da voz mimada, e criando um momento de tensão.

E os senegaleses que andam ali pelo restaurante fitam a rapariga, um rasta que a meio do jantar me fazia uma conversa sobre colonialismo francês cheia de moralismos fita-a, a irmã, que também já não ri, fita-a, eu fito-a, o mecânico francês também, a dona do restaurante também, e ela, mergulhada num poço de olhos, vai preservando com todas as forças uma indiferença insustentável

- Talvez. – murmura, por fim.

- Não é talvez. É sim. É sim. Vá, diz que sim, para me fazeres feliz.

E ela não diz. Vale mais que nós todos juntos.

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