quarta-feira, 5 de agosto de 2009

As coisas

Aqui há uns anos, assisti a uma palestra de Daniel Miller, um antropólogo inglês especializado nas questões da modernidade. Através de uma série de diapositivos relativos ao seu case-study de Trindade e Tobago, Miller introduzia a audiência a um fenómeno muito particular que se disseminara pelas casas de fotografia do arquipélago.

Antigamente, quando íamos ao fotógrafo, era frequente enquadrarem-nos num pano de fundo onde se impunha um cenário majestoso nos Alpes suíços, composto por lagos, um chalé perdido e imponentes montanhas nevadas. De forma análoga, as paredes das casas de fotografia destas ilhas nas Caraíbas são pintadas com dois motivos dominantes, ainda que inesperados. Num, a parede é colorida com um grande móvel com estantes preenchidas com objectos, onde figura, invariavelmente, e como centro destacado, uma televisão ou uma aparelhagem Hi-Fi. O cenário alternativo é uma cozinha. Neste, as estrelas são o frigorífico e o micro-ondas.

No Senegal, num contexto cultural e geograficamente muito distinto, mas que talvez partilhe com o caribenho muitos dos sonhos, aspirações e miragens do ocidente, fui encontrar um caso extraordinário de convergência cultural de um produto visual da diáspora.

Os emigrados senegaleses – sobretudo em França – têm (como talvez qualquer comunidade migratória desde que a fotografia se massificou) o costume de enviar fotografias da sua nova vida aos familiares que permaneceram na terra natal. Por várias vezes, fui convidado a passar os olhos por centenas dessas imagens.

Num dos casos, uma tia, casada com um francês, terá enviado cerca de quatrocentas fotografias ao longo de cinco anos, com um incrível denominador comum: 90% delas foram tiradas na sua sala de estar ou na cozinha da sua nova casa, na terra de Napoleão. Em todas essas imagens, a tia figura sozinha, sorridente, de íris cintilantes e – outro pormenor inesperado – em movimento. Uma perna retorcida, os braços semi-levantados, há sempre uma parte do corpo que contraria a pose rígida e fixa. A tia dança. E, como se flutuassem, como que presos por fios invisíveis, num ballet mágico, o frigorífico e o fogão (ou a TV, o Hi-Fi e o computador) dançam com ela. São os seus pares. Para além dos movimentos da tia, o único elemento de variação nas fotografias é a sua própria toilette. Embora muitos das fotos aparentem ter sido tiradas no mesmo dia, traja peças invariavelmente diferentes. Mas esta senhora está longe de ser um caso isolado. Com o tempo, e há medida que fui conhecendo mais álbuns de família, fui descobrindo que os objectos são um dos temas principais recorrentes nas fotografias dos emigrados africanos.

Durante a conferência, Daniel Miller referira-se a este e outros fenómenos sociais, em que a pressão material e consumista – que, pelo menos num movimento inicial, é sempre, em grande medida, importada do ocidente – distorceu e extremou comportamentos ao absurdo e ao ridículo, como tragicómicos. Na altura, o termo foi recebido pela plateia com alguma desconfiança e cepticismo. Tragicómico não é uma categoria científica, é uma categoria literária. Se Daniel Miller se tivesse referido, por exemplo, a uma dinâmica de importação de valores, teria colhido mais simpatia.

Porém, hoje, volvidos tantos anos, creio compreender melhor a utilização do termo. Ou, pelo menos, compreendo melhor que certos patamares de escravidão emocional e existencial da humanidade sem coisas ao mundo material, causem o tipo de perplexidade (que nos desarma de tal forma) que nos leve, à falta de mais justa expressão, a referir-nos à tragicomédia da vida.

As “personagens” de Miller, ao elegerem para pano de fundo de um retrato um frigorífico que nem sequer pretende ser real (a pintura é relativamente realista mas de modo algum ao ponto de pretender confundir-se com a realidade), parecem estar de tal forma subjugadas aos estranhos valores da sociedade de consumo, que um simples frigorífico pode ganhar dimensões de valor que vão muito para além da sua utilidade como objecto. Como se fosse bonito, como se a nossa própria imagem ganhasse uma outra aura, uma outra beleza, ao ser associada a um frigorífico, tal como se pretendia quando a associamos ao Monte Branco. Da mesma forma, nas fotografias dos senegaleses, também o estéreo e a televisão me parecem ter adquirido propriedades que extravasam em muito as capacidades dos objectos. Nessas imagens, esses electrodomésticos são repetidos delirantemente, de todas perspectivas, apresentados por uma infindável gama de gestos da sua proprietária (que parece uma daquelas meninas do Preço Certo que faz festinhas e acaricia espectaculares leitores de DVDs e formidáveis faqueiros), como se cada um desses gestos e ângulos pretendesse revelar umas das mil e uma facetas de felicidade dos próprios objectos.

A dimensão tragicómica da situação é acessível apenas ao observador exterior, proveniente da humanidade com coisas, incapaz de identificar tantos matizes e cambiantes de magia em objectos tão cinzentões e monocromáticos, incapaz de os interpretar para além da sua estrita funcionalidade, convencido – e ao mesmo tempo impotente para convencer os outros – do monstruoso embuste a que estão presas estas pessoas.

Uma fraude que, inevitavelmente, serve sobretudo para enganar quem não tem. Tanto que, quem acede à humanidade com coisas continua normalmente a participar no “jogo” (e, pessoalmente, gostaria muito de saber se, volvidos cinco anos em França, a tia se maravilha tanto com o que tem à sua volta de cada vez que entra na sala de estar como o parece demonstrar nas fotos). Novamente, África presenteou-me com um brilhante exemplo do mesmo: um grupo de jovens guineenses emigrados na Suécia desciam a costa africana para visitar a terra natal e entraram na Guiné ao mesmo tempo que nós, conduzindo um reluzente Jeep topo de gama.

- Bela máquina que têm aí! – comentou o André, com simpatia. – Estão-se a safar bem na Suécia, hã?

- Pá, eu trabalho a repor latas de Coca-Cola numa prateleira de um supermercado de Estocolmo – responde um deles, rindo-se para nós – Essa senhora aí – aponta para o distinto Jeep, e pisca-nos o olho – foi alugada na Gâmbia e é só para girar a Guiné-Bissau este mês.

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