sábado, 15 de agosto de 2009

Caraban

Um mar aveludado galga o areal de exíguos dois metros de largura praticamente até às raízes dos baobás, aos alicerces das construções, às portas das casas. É um laço a estrangular um pescoço. Tudo o que está dentro da ilha se retrai, se encolhe, se comprime. Os homens, os barcos estacionados, as casas, os animais. Talvez por isso não sobre aqui espaço para estradas nem carros nem rios nem barragens nem montes. Caraban é um mato denso. Como numa metrópole estrafegada, os objectos empilham-se e desabrocham nas alturas. Há casas em cima de árvores, árvores em cima de casas, uns corvídeos inteligentes em cima de umas vacas estúpidas, galinhas em cima de telhados, crianças ao molho. Uma antiga mulher-a-dias de casa dos meus pais, entretanto sumida, teria gostado de Caraban. Tinha a mania de confundir arrumo com empilhamento, organização com cordilheiras e escarpas de objectos. Para ela, o verbo arrumar significava criar torres de Pisa de papéis, pirâmides de bibelôs, arranha-céus de lixo. E eu, claro, zangava-se quando entrava no meu quarto, tornado irreconhecível, geminado com Tóquio. Se calhar a Wanda anda por aqui, maravilhada com tanto método.

Os mangais, centopeias vegetais, colaboram com a sensação de sufoco rasteiro. Os seus mil e um pés, garroteados com um nó de uma gravata invisível, explodem, como tudo o resto, como leques tentaculares, metro e meio acima do chão: como as palmeiras, como as crânios guedelhudos que o excesso patológico de reggae aqui germina, como os telhados de palha farfalhudos das cabanas circulares asfixiadas, que se assemelham a obesas ampulhetas de desenho animado.

Como meros elementos adicionais de Caraban, damos pelo nosso corpo envolto nessa armadilha imensa de água achatada. A pressão bombeia-nos o sangue à cabeça, e, como tudo o resto, também ela rebenta. Aqui, trago-a sem tampa, aberta, a derramar ou a receber caldos grumosos, conforme as marés.

Não há electricidade e a noite mergulha Caraban nas trevas. Esconderam-se os lagartos multicolores agarrados aos troncos e às paredes da prisão colonial em ruínas do século XIX. Já não há cães raquíticos, de pelo sujo. Desapareceu o Obama nas T-shirts, figura política de proa da ilha. Recolheram às cabanas os cinquenta ou sessenta bandidos que aqui vivem e que, sem vergonha na cara, pescam o almoço à cana do alpendre da própria casa.

Caminho, no breu, à beira-mar. De um lado, fica a muralha ininterrupta e imponente de vegetação. O outro lado simplesmente não existe. Os dois metros de largura do areal praticamente horizontal não chegam a dar a ideia de descontinuidade e, no breu, são uma continuação perfeita do mar. A sensação é a de andar sobre a água. A cacimba emergente refracta a luz lunar esbatendo ainda mais os elementos, tudo acinzentando e avioletando, reduzindo todos os cambiantes cromáticos a este néon colossal e baço. Com céu e mar reduzidos ao mesmo, só sobra esse muro preto paralelo às minhas pegadas na areia, a desabar sobre mim, prestes a engolir-me. Sobra também a silhueta de uma piroga que levita na atmosfera. E sobram iridiscências alaranjadas que flutuam, que dançam, como fogos-fátuos, no meio da selva compacta, onde algumas vozes rugosas riem e assam peixe.

Caraban não pertence a este planeta. Pertence a outro. A um planeta que tem escassos quilómetros de raio, que é plano e onde o elemento mais alto é uma palmeira. Quem disser o contrário vive fora da realidade. Caraban foi um dos lugares mais incríveis que já vi.

É um convite.

Sem comentários:

Enviar um comentário