domingo, 23 de agosto de 2009

O turista como mamífero herbívoro e obeso, vulnerável aos caninos afiados dos seus predadores naturais

Enfada esta imensa horda de impostores e oportunistas. Um exército feroz de desdentados racistas que não têm o mínimo respeito pelo branco endinheirado (e terão razões para ter? Provavelmente não). Mas, sendo eu um dos raríssimos brancos sem tostão, as coisas neste aspecto podem tornar-se complicadas mas também divertidas. Cedo me apercebi ser ave rara, corpo estranho, difícil de encaixar numa estrutura bem definida onde o turista está na base da cadeia alimentar.

No centro de St. Louis, a minha passada errante e indecisa é apanhada desprevenida por um negro elegante e girafídeo, com orelhas de abano, que faz de uma propensão inata para a lábia profissão de surripianço mágico de euros.

Assim que lhe revelo a minha nacionalidade, a imaginação fértil do meu novo melhor amigo cria um irmão de traços verosímeis, um querido irmão, emigrado no Algarve, agradecido a Deus pela oportunidade que lhe foi dada de trabalhar na construção civil na Europa. Ah! E que dizer do ancestral parentesco senegalês com o povo luso, germinado no tempo das caravelas, ao qual ainda hoje – como decerto concordarei – é impossível ficar indiferente.

Mas a profusa jactância vocabular, mesmo se notoriamente esguichada de memória, seduz pelo nível de requinte e pela bem-disposta eloquência. Quando me convida para ir espreitar a sua loja, já me tem na mão e reduziu os meus protestos a balbuciares sem convicção. Tento, claro, recusar:

- Mas eu…

- Está de férias, não está?

- Sim, mas é que…

- E a arte africana? Espero que uma condição rara não faça com que ela lhe danifique a vista… – diz, à gargalhada.

- Não é isso…

- Então qual é o problema de vir dar um passeio com um amigo e admirador do seu país?

Chegamos ao seu bazar, num quarteirão colonial, ignoro quanto tempo depois, tal é o meu emaranhamento na tagarelice do virtuoso falador. Eu próprio, já não consigo conter a gentileza e o adorno sorridente das minhas palavras. Quase sem que me aperceba, enfia-me um colar no bolso. A minha súbita atrapalhação empolga-o:

- Ah, o senhor é especial. Quero oferecer-lhe, a si, um outro objecto que me é muito querido. Aceite-o como presente de um amigo. Veja, olhe para isto: a pedra azul veio da Tunísia, a âmbar da terra dos seus irmãos cabo-verdianos, a terceira pedra veio de uma mina na Costa do Marfim. É uma pulseira que simboliza a beleza da união dos povos. Simboliza a soma, que é sempre maior que as partes. Imagine que a pulseira apenas continha pedras de um só destes países… Não seria tão bela, pois não?

Apresso-me a fazer que não com o crânio – que outra coisa poderia fazer? –, vejo a minha atrapalhação redobrada e tenho dificuldade em mostrar que quero recusar o presente. Mesmo assim, o negro encarrega-se de afastar todos presságios da minha negação:

- Sabe, a cultura africana é assim. Nós gostamos de dar, de partilhar. Muitos europeus às vezes não são capazes de o compreender. Os americanos então, uff! – não sei porquê, mas tenho a sensação que toda a África (pelo menos a francesa) já percebeu que é vantajoso dizer mal dos americanos aos europeus.

Tento explicar-lhe que já estou há cinco meses em África, que estou habituado e também que tenho a bagagem cheia, que… Mas o tipo é hábil. Corta-me repetidamente a palavra com uma delicadeza sofisticada. Num último esforço, tento devolver-lhe os berloques de conchas e pedras pretensamente preciosas.

- O meu amigo não está mesmo habituado, pois não? – diz, com um paternalismo jocoso, afastando os objectos – Tem muito que aprender.

Por fim, rendido, presto-me a sair da loja.

É então que, já de costas voltadas, começo a ouvir falar de uma certa festa de handicapés. Com um olhar redobradamente frontal, directo, quase confrontante, o fulano pede-me – ou, melhor, suplica timidamente por, como um pequenino hamster falante – uma pequena contribuição para a compra de uma ovelha para o evento. A convicção e a diplomacia com que o faz são tais que só com dificuldade ponho em dúvida a existência da festa (o que é já dizer algo, pois há muito me julgava imune a esta sorte de patranhas). Naturalmente, sei que a festa não existe, mas, por momentos, isso parece-me irrelevante. Ainda antes de me poder ouvir dizer não, o tipo ultrapassa-me e coloca-se na própria posição de recusa da contribuição:

- Mas só a aceito se vier do seu coração. Não a quero se não vier daqui – põe-me a mão no peito e sinto o peso da quinquilharia no bolso. – Compreende, meu amigo? – diz, escancarando-me as pupilas à frente das minhas – Não tem qualquer problema, se achar que não vem de dentro pode contribuir mais tarde, quando sentir o coração mais… – pára de falar, procura uma palavra no seu vasto dicionário encefálico – cristalino. – Tente perceber se é uma pessoa com a capacidade de “dar”… Os handicapés não quereriam que fosse de outra forma….

Neste ponto, tenho a certeza que 90% das pessoas acabariam por deixar qualquer coisa. Não que eu seja mais matreiro que os outros. Simplesmente pertenço a uma classe aberrante e quase inexistente: o turista que objectivamente não tem nada na algibeira. Constrói-se, assim, uma situação provavelmente rara: ele é o único que não sabe como vai acabar esta história embora julgue ser o único que sabe como ela vai acabar.

O tom educado do diálogo aguenta-se apenas mais uns minutos. Incrédulo, o tipo acaba por perceber que não vai levar nada. Para minha surpresa, vejo o desapontamento e o desconforto desfigurarem -lhe a expressão, estalarem-lhe rugas e fissuras do rosto, como se um monstro se revelasse. Virando a cara de lado, para que eu não lhe veja a vergonha estampada na cara, estende-me a agressivamente a mão ao bolso e tira-me os colares que, afinal de contas, tinham estado todo este tempo a ser negociados.

A minha vontade é converter toda a minha decepção em simpatia e massacrá-lo com um pouco do seu veneno mas viro as costas e vou-me embora, radiante com a humilhação alheia. Radiante.

Não é uma história bonita, mas teve um doce desfecho.

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