quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Final de viagem

A oleosa película negra grudada às minhas plantas dos pés já não sai nem com água nem com este sabão inofensivo. Ao cortar-lhes as unhas, um golpe falhado demonstra-me que o corta-unhas é a única ferramenta que me permite extrair eficazmente a sujidade da pele. Durante um período exagerado, dedico-me a talhar bocados de cútis negra calejada, que esconde um tecido dérmico menos conspurcado e mais delicado.

Os dois pares de calças de gangas abriram buracos como cheddar que, de tão desfiados, lembram franjas de tapetes.

A costura da mala rebentou em seis pontos diferentes. Uma das asas foi progressivamente despedaçada pelos esticões com que foi sendo abrutalhadamente içada para os tejadilhos dos transportes públicos. O iminente rasgão total da mesma é um presságio do fim da viagem. Dechatlon, só a 5.000km. Adicionalmente, tresanda à urina de uma cabra que lhe fez companhia na caixa de uma pick-up.

A máquina fotográfica expirou há muito, ainda a tempo de depositar quase todo o esforço de memorização da viagem nas minhas sinapses. Reaprender a viver com a subtracção da máquina, que, devido ao hábito, se tornara num membro quase corporal de prospecção da realidade, é como reaprender a olhar. A sensação é ilusória, falsa, mas não consigo evitar estar convencido que uma série matizes desta experiência ficarão irreversível e amargamente perdidos.

Outro obstáculo, muito mais grave: acabaram-se as páginas dos livros. Primeiro, a Guerra e Paz desfez-se em 1108 páginas soltas que, frequentemente, tive que recolher e juntar de novo. Mesmo assim, li-as todas e já lá não restam palavras novas para abocanhar. Outro romance, dei-o a uma senegalesa que estudava português numa aldeia isolada. Não me arrependo, mas na altura não medi a consequências do gesto. Os restantes dois livros estão lidos. Não parece, mas este é um forte golpe à aventura. A única livraria do país chama-se “Paz e Bem”. Fechou-se um imenso portal de abstracção. Desde que deixei de ler, estou um bocadinho mais enclausurado dentro de África, mais preso nos seus intestinos.

Trago a pele sarapintada de pequenas borbulhas da sujidade e da humidade do ar. Trago o cabelo desidratado e casposo dos sabões de má qualidade. De cada epistolar vez que me reencontro ao espelho, surpreendo-me por ter envelhecido.

Sou um crescente maltrapilho. A barata, insecto arquétipo do nojo, rainha da parte mal-amada da Natureza (símbolo da debilidade macarrónica das convicções dos new-agers amantes do campo), introduz-me a um novo estado de tolerância quando, ao passear na barriga da minha perna, dou por mim a enxotá-la com serenidade e indiferença.

Tenho a tenda montada no centro paroquial de Bissau, num dos três coretos hexagonais do espaço. Todos os dias, a umas matinais e impreteríveis 7:30, a miudagem catequista reúne-se em torno do meu hexágono. Tagarelam e eu não percebo nada senão brancu, brancu, brancu, e revolvo-me no colchão hexagonal de cimento, dormente de sono. Espreitam a medo pelo tecto da tenda e, quando encontram o meu rosto caucasiano, chiam, riem-se e voltam a sentar-se velozmente no banco que acompanha o perímetro do coreto. Produzem uma gritaria infernal, mas durmo na mesma. Duas manhãs consecutivas, o centro paroquial liga um gerador a diesel de dimensões, para mim, industriais. Mas também durmo, o que me deixa orgulhoso. Depois destes dias, vejo-me obrigado a abandonar a tenda. Deixo-a a um irmão franciscano depois de ter cosido duas vezes o respectivo saco e de ela, como um cogumelo, ter insistido em brotar cá para fora. Já não tenho casa portátil. Passei de caracol a lesma.

Tudo se caleja. Tudo se couraça: as papilas gustativas, que se habituam a saborear apenas arroz e peixe; a pele, que já não reclama dos banhos com caneca de plástico; o rabo, mudo, conformado com o bidé substituído por regadores de jardim.

Sobretudo – surpreendente revelação – é o cansaço que se torna irrelevante, factor sem peso, variável desprezável. Trata-se de um pequeno bónus do Tempo, não da alma ou do carácter individual (digo eu). Mas, por trás da espessura calosa que os sentidos ganham há um âmago contundido – carcomido ou adormecido (?) – e é aí que reside o busílis do problema.

Em África berra-se ao lado de quem dorme, regateia-se mais felinamente com quem está cansado, fala-se ao mesmo tempo, condimenta-se com caldo de carne até o pão com manteiga, continua-se a dançar mesmo se as colunas distorcem tanto a música que ela se torna informe e indistinta, come-se enquanto há comida no prato e não enquanto há espaço no estômago, e este arabesco fantástico e selvagem de caretas e cores histéricas, urros e acrobacias, depois de deixar de nos cansar ou surpreender, embrutece-nos.

Que não haja ilusões. O europeu a tentar fazer vida de africano é como uma florzinha de estufa a tentar vingar numa floresta tropical.

Daí que a figura, para mim, mais intrigante desta viagem tenha sido um estranho siciliano que largou tudo para viver como um africano. Foi o único brancu que conheci que efectuou por completo esta transição. Mas esta é outra história.

Para mim, chegou a hora de voltar.

4 comentários:

  1. Muito obrigada Chico, vou sentir a falta dos teus relatos sempre bastante expressivos.
    Grande aventura.

    Beijinhos,

    Sofia Marta

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  2. Bom regresso a casa. Apesar da dureza será uma experiencia que seguramente te irá deixar grandes recordações.
    Abraço

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  3. Obrigado eu por me teres seguido Sofia Marta.
    Se quiseres, fica o convite para continuares a seguir até a aventura terminar, daqui a pouco tempo.

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  4. Obrigado Vagamundos. Sim, a própria dureza ensina muitas coisas boas.

    Boas viagem também para vocês.

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