quarta-feira, 18 de março de 2009

Baobab [ebondeiro]

Nota: Ebondeiro, na estrada entre St. Louis e Louga (Norte do Senegal)

domingo, 15 de março de 2009

Mark

O Mark é um inglês rechonchudo, gordo de bochechas, e sardento. Há aqueles homens a quem a massa corporal parece acrescentar força, pujança, mas o Mark é dessoutros a quem ela parece apenas retardar, amolecer. Singularmente, os seus gestos e movimentos viscosos e pesadões são, todavia, inesperadamente imprecisos, pouco resolutos, e mesmo precipitados. Se num homem magro, o nervosismo se detecta facilmente pela velocidade caótica da sua gestualidade, num homem gordo, a lentidão costuma camuflar o desassossego. Mas este não é o caso do Mark, e isso torna-o num personagem algo conspícuo, de cuja estranha conjugação entre massa e desconjuntamento não se pode esperar outra coisa senão grandes estragos.

Tínhamos acabado de apanhar o Mark numa boleia que duraria, no mínimo, 200km, à saída de St. Louis, capital colonial senegalesa, na costa Norte do país.

- Então Mark, que fazes aqui? – pergunta-lhe o André, emprestando à frase uma lentidão e à palavra aqui uma espessura que significavam que a pergunta possuía uma amplitude que se não resumia aos últimos cinco minutos e à cidade de St. Louis, mas que abrangia todo o Senegal, África, a sua viagem, a sua vida.

Mera coincidência, a pergunta encontrara um daqueles interlocutores que vivem à espera que a curiosidade alheia sobre os próprios se manifeste a todo o momento em proporções dessa monumentalidade.

- Bem, eu sempre tive boas notas e era bom em desportos. – começa o Mark, aproveitando todo o espaço que lhe permitia a pergunta do André; e como se estes dois itens (notas e desportos) resumissem a totalidade dos indicadores de sucesso de uma criança. – Mas cresci e o tempo foi passando sem que eu achasse alguma coisa para fazer na vida ou sem que algo me interessasse verdadeiramente. Ainda hoje não sei porquê. – como a repetição viria a provar, o principal recurso expressivo do Mark para traduzir desnorte e incerteza existencial (componentes basilares da sua vida) era a afirmação: «não sei porquê» – Depois os meus amigos tornaram-se advogados, homens de negócios, alguns já têm mulher e filhos e eu, não sei porquê, nunca me consegui fixar numa carreira. E o mês passado despedi-me do trabalho para vir para África, sem que percebesse bem porquê e sem que a minha namorada também me percebesse ou que eu lhe conseguisse explicar porquê. – na vida do Mark, foi-se tornando claro, o grande problema é que ninguém sabia explicar nada. Talvez se alguém soubesse explicar alguma coisa, as coisas tivessem sido diferentes. – Há três anos também me despedi do trabalho e estive um ano na Índia, numa espécie de viagem espiritual. E o ano passado voltei lá, mais uns meses. Estas viagens acalmaram-me, mas eu ainda sentia fome de qualquer coisa. Voltava para Londres e continuava a sentir-me desconfortável, infeliz, sem que percebesse porquê. No meio disto sempre soube uma única coisa – e os nossos ouvidos aguçaram-se, sob o auspício tranquilizador da primeira certeza desta história: tinha que vir a África. Era uma convicção íntima que possuía, e que estava umbilicalmente ligada à ideia de que a Índia não era suficiente. – e, infelizmente, o Mark nunca chegou a explicar em que é que ela não era suficiente – Por isso, há dois meses atrás, decidi vir. Mas foi apenas na semana passada que descobri finalmente a razão da minha vinda: estava em Dakar à noite, a dirigir-me de táxi para um posto da polícia para apresentar uma queixa de um pequeno furto de que tinha sido vítima. O taxista deixou-me numa esquina, explicando-me detalhadamente o curto caminho de 40m até à esquadra. A partir daqui não me lembro de muito. Só sei que, no caminho, um homem se atravessou bruscamente à minha frente. Impulsivamente, eu virei-me para mudar de sentido, mas já tinha um outro tipo a bloquear-me a passagem; os dois ou mais tipos (não sei quantos eram) agarraram-me, atiraram-me para trás de uma sebe de um canteiro, tiraram-me uma carteira com 300€ e o telemóvel, e só sei que às tantas sinto uma mão a tentar baixar-me as calças à força, mas sem conseguir. É que eu tenho um cinto mesmo forte, que nem a minha namorada consegue abrir – ri-se o Mark – e só me lembro de tirar para fora tudo o que ainda tinha nos bolsos e de lhes dizer, talvez a chorar, «je te donne, je te donne» e, tão depressa como apareceram, os tipos volatilizaram-se, e dei por mim sozinho, a sangrar não sei de onde, com um outro homem a apoiar-me e a tentar ajudar-me. – o Mark faz uma pausa e respira fundo. A voz treme-lhe um pouco da emoção e vê-se que não lhe foi fácil narrar a história. Depois prossegue – Como eu disse, eu sabia que tinha que vir a África, e acho que finalmente percebi porquê: foi por isto que vim, foi por esta noite, por este assalto. Agora acho que finalmente posso voltar para Inglaterra e sentir-me bem lá, dar valor à minha vida. Pela primeira vez, sei que é em Londres que quero viver, tranquilamente, com a minha namorada.

Terminada a história, prosseguimos viagem em silêncio. Nem eu nem o André sabemos bem que comentário fazer ou talvez não queiramos apenas comentar. Afinal de contas, o Mark parece bastante seguro da sua conclusão e ninguém quer alimentar duvidas numa vida que, a acreditar nas palavras do próprio, parece finalmente ter perdido os “porquês”. E, no entanto, é impossível não a problematizar…

A mente humana percorre caminhos sinuosos, é retorcida como os ramos dos embondeiros que passam lá fora. O Mark pensa que é necessário vir a África, sofrer um roubo, um espancamento e uma tentativa de violação para dar valor à vida, episódio que me lembra automaticamente o Frank, um holandês que nos disse em Nouakchott que um dos dias mais felizes da sua vida foi passado numa prisão no Senegal. Fenómeno bizarro este; como se a vitrina europeia – esse lado enfeitado, perfumado, arranjado e limpo do vidro – se tivesse tornado o cárcere de alguns dos próprios habitantes que protege, e gerasse esse estranho impulso que impele gente a andar à deriva por esse mundo fora, a vir procurar longe o que está perto, a vir procurar no desconforto o conforto do conforto que sempre tiveram mas que não conseguem experimentar.

Há uns tempos atrás alguém percebeu que o turismo que consiste em estar quinze dias sentado numa espreguiçadeira de plástico a fritar ao sol não era suficiente para algumas pessoas. Nasceu o turismo de índole etnográfica, a imersão do turista no banho-maria do outro, o contacto forçado com a realidade alheia, o choque cultural refrescante e terapêutico, posto ao serviço da relativização dos problemas comezinhos e quotidianos da existência; depois nasceu também o turismo-aventura, ligado à utilização do canivete suíço e da fogueira, nasceram as viagens ao fim do mundo e os programas turísticos dedicados a fazer vir ao de cima o Indiana Jones e o Macgyver adormecidos dentro de cada um de nós.

Do Mark, do Frank, doutros exemplos, posso atestar que parece existir ainda mercado suficiente para o turismo-penitência, que consiste apenas num contacto tão radical com o espectro negativo da vida, que o dia-a-dia ocidental, o trabalho, a família, o pequeno-almoço, recuperam a magia da sua monotonia, o encanto da sua mediania emocional (para quem assim sentir as coisas, claro está).

Se a sua previsão de bem-estar psicológico se confirmar, foi o Mark, e não o amigo inglês a tomar banhos diários de protector 90 na Republica Dominicana, quem tirou umas férias revigorantes. O bronze, afinal, talvez seja apenas um dos lados da viagem.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Quatre cent quatre

Peugeut 404 Automatic no Auberge Menate, Nouakchott, Mauritânia


Conhecemos Frank Titus, um engenheiro aeronáutico holandês dos seus 50 e poucos anos, magro, muito alto e desengonçado, num albergue em Nouakchott, capital mauritana. O Frank é um excêntrico, que uniu duas das suas paixões – África e carros clássicos – em vinte anos de viagens absurdas sob o sol da terra mãe da humanidade, não obstante os buracos na estrada, ao volante de Austin Martins descapotáveis, carros funerários americanos, e outras extravagâncias

Quando o conhecemos, o Frank acabara de sair de uma noite de prisão no Senegal por ter sido apanhado sozinho, nu, a dançar à volta de uma fogueira no Parque Nacional senegalês de Niokolo-Koba, história que narrava a uma mesa da esplanada do albergue para uma plateia de viajantes. A fogueira, segundo ele, pretendia apenas evitar que os leões se aproximassem e o pudessem atacar, mas, esclarecia, o verdadeiro problema que levara à sua detenção não fora nem o nudismo nocturno, nem a dança, nem a fogueira no meio do parque nacional, mas sim não possuir a permissão especial que é necessária para permanecer neste mesmo parque mais do que 24 horas seguidas.


- Como é óbvio. – comenta o Jean com ironia. O Jean é um bretão, designer de moda, de cenários de pistas de música trance e de lareiras gótico-futuristas, que está em trânsito para vir trazer um Mercedes e 200g de haxixe para um amigo maliano.

- E a prisão? – pergunta alguém.

Antes de abordar a experiência de encarceramento, o Frank procura inspiração nas estrelas, escancarando as pupilas e fitando o céu, e depois diz:

- A noite na prisão foi talvez das melhores noites da minha vida, e por isso não me arrependo de nada. No meio do desespero, atrás das grades, sozinho, dei por mim a pensar: não posso sair daqui; faça eu o que fizer, estou condenado a permanecer neste antro durante tanto tempo quanto aquele a que for obrigado. E, no instante em que formulei este pensamento, as coisas tornaram-se subitamente claras. Tinha duas opções: sucumbir ao desânimo, entregar-me a um estado de apodrecimento lamentoso, ou ser livre no calabouço e feliz naquele vazio. E garanto-vos que, nesta cela senegalesa, experimentei a mais pura liberdade e felicidade.


Um jovem viajante suíço, visivelmente tocado pela sageza das palavras do Frank, ou apenas pela sua entoação, e visivelmente ansioso para que África lhe encha a boca de fraseologia antológica como esta, diz-lhe, de forma sentida:

- Sabes Frank, isso faz todo o sentido do mundo.


O Frank anui com gravidade, como que validando o comentário às suas próprias palavras. Afinal, trata-se de um mestre espiritual viajante, e a arte da viagem é para ser levada a sério.

- Oh no, man. We´re doomed. – ri-se o Jean, que está ora abismado, ora agarrado à barriga a rir perante as palavras do holandês – Frank is going to create a sect, and already has costumers. – e prossegue – You know. In a metaphysical sense I understand that what this guy [Frank] is trying to say does makes sense, but I prefer to think that it is possible for you to feel integrally happy and free without being in a prison in Senegal. – ri-se, e recolhe os ombros para dentro, como que para ilustrar a pequenez da sua pessoa – But this is just me saying. I´m a strange guy, you know. – e continua a rir.


Depois, a conversa acaba por divergir para outras temáticas e por se fragmentar em vários diálogos, e eu e o André damos por nós a falar com o Frank meio em privado, e ficamos a saber que, lições de vida à parte, o facto é que esta história também teve consequências muito práticas: o resultado foi que o Frank não teve tempo de ir pôr o espectacular Peugeot 404 Automatic de 1972 desta históiria a Banjul, capital da Gâmbia (onde deveria ficar estacionado, por uma quantia muito moderada, num parque de campismo de um amigo, durante oito meses, altura em que deveria voltar para fazer mais fogueiras), porque tinha que estar na Holanda a tempo de ir buscar o filho à escola e para isso não podia perder o avião, que tinha reservado a partir de Nouakchott. Não obstante, na noite em que o conhecemos, o Frank tinha acabado por perder o avião, devido a problemas de papéis, e explicava-nos:


- Mas ainda vou a tempo de ir buscar o meu filho à escola na Segunda-feira com o avião que reservei para Domingo à noite. E este é um gesto que preciso de fazer pelo meu filho… – e, como se o Frank tivesse detectado que este miúdo, aos olhos dos seus interlocutores, por filho que fosse, não justificava tamanha confusão, deixa escapar – e… porque, bem… a minha a ex-mulher não tem muita confiança em mim e no meu papel na educação do meu filho e não me posso dar ao luxo de queimar mais créditos com ela.


- I wouldn´t expect that from you, man. I´m sorry. – diz o Jean, mordaz, e a retirar um gozo terrível desta história, enquanto manda um safanão compincha nas costas do Frank.


E é aqui que nós entramos. Damos por nós e o Frank está a tentar convencer-nos a levar o 404 até Banjul em troca, bem, do mero prazer da viagem (e dos 70L de gasolina armazenados no depósito do carro). A proposta é irrecusável: viagem África adentro neste chaço com 37 anos, a cair de podre, bordeux, lindo, que tem sofás de couro em vez de assentos.

Aceite a proposta, ouvimos, mais tarde, a opinião do Jean:


- Colateral damage de um story guy. – sintetiza ele. Para o Jean, o Frank é um story guy, um desses curiosos tipos de pessoas para quem viver a vida consiste precisamente em passar o tempo a bater África em carros clássicos, do Kilimajaro ao Sara, passando pelas prisões africanas e fazendo fogueiras para afugentar leões esfomeados. – What to say? Life alone can be boring for some people. –, e nós somos mais duas vítimas, uma espécie de meios propagativos voluntários do caos que o Frank gera à sua passagem; colateral damage, ou, talvez, na opinião do Jean, apenas mais duas almas entediadas.


Dois dias volvidos, mesmo antes da partida do Frank, e eu e o André já contamos com duas horas de mecânica elementar, um mapa do motor do carro sinalizando o lugar dos quatro líquidos que se devem repor gradualmente, e uma miríade de apontamentos de soluções para problemas de mecânica simples, e também já acordámos múltiplos cenários futuros para o carro (e se a viatura é roubada, e se empana, e se…) e, apenas uma hora antes de partir para o aeroporto, já com documentos e chave nos bolsos, é que o Frank se lembra de nos dizer:

- Ah, é verdade, é ilegal terem esta viatura na vossa posse na Mauritânia. Neste país só o proprietário pode guiar a viatura.

- Mas Frank, nem o primeiro dos cinco check points até à fronteira conseguiremos passar, quanto mais a própria fronteira! – naquele momento, parece-me desnecessário acrescentar que, ainda por cima, estamos no pior país de toda a costa Ocidental africana para este tipo de trafulhices.

- Be creative. – é tudo o que o Frank responde, com um sorriso amplo e sincero.

- Yeah man, don´t let you get down by this insignificant detail. – e o Jean more definitivamente a rir, como se estivesse há dias à espera deste desenlace.


- Pois. Colateral damage.

Na manhã seguinte expomos, mais por curiosidade (já que entretanto desistimos de levar o carro), o nosso problema a um recepcionista do Auberge Menata, que nos foi dito possuir alguns contactos. Claro que já o devíamos ter previsto antes de abrirmos a boca: cinco horas depois, sem termos pedido a ninguém, o chefe do posto de polícia fronteiriço de Rosso, 203km abaixo de Nouakchott, está, em pessoa, no Auberge Menata a tomar chá connosco. Dois dedos de conversa mais tarde, uma soma aceitável (para ambas as partes) de dinheiro, quinze garrafas de água para gargantas e radiador, porta-bagagens arrumado, e aqui vamos nós, 203km até à fronteira, no nosso recém-adquirido Peugeut 404 Automatic de 1972 (como atesta a nova papelada, comprar carro nunca foi tão fácil).


O chefe da polícia está no lugar do morto a rir-se que nem um perdido – c´est une trés bonne voiture, monsieur, trés bonne – e pede-nos para parar de vez em quando para se exibir, orgulhoso, dentro da viatura, aos amigos que vai encontrando à beira da estrada. O André está no meio, de palito na boca; o sol e o vento entram pelo tecto de abrir, e os nossos rabos sentados naquela poltrona andante, as minhas mãos no volante rijo e com um diâmetro que me abre os braços e o peito, como se manejasse de um camião, e a máquina a fazer um barulho tremendo e extraordinário, como um avião, a irromper estrada fora. Lá fora (como continuará a acontecer nos sucessivos 1500km), toda a gente acena e grita à nossa passagem: Quatre cent quatre! Toubab [branco em wolof] Quatre cent quatre! (iremos descobri-lo, este é o carro do pai de todos os africanos, e o veículo onde todos aprenderam a guiar – o 404, resistentíssimo, foi um carro construído a pensar em África. Tem uma mecânica simples e resistente, e suporta anormalmente bem ao calor). Mas o melhor de tudo é passar os controlos policiais em que somos mandados parar (cinco): ver as caras antipáticas dos gendarmes, polícias e militares, a mandarem-nos encostar à berma, a pedirem-nos os documentos, e a empalidecerem subitamente e a transfigurarem-se em pedidos de desculpa – pardon monsieur, pardon – e gestos cordiais para avançarmos ao se depararem com a cara do seu chefe no lugar do morto. Ciao bello, até à próxima, que gozo formidável, só faltaram os óculos escuros.


Mas o bizarro desta história é que, nos 20 dias seguintes, até Banjul, assistimos à bifurcação da nossa própria viagem numa viagem paralela, à mente e ao passado de um homem chamado Frank Titus, como se fosse impossível guiar o carro do Frank sem seguir as suas pegadas. Por onde quer que passemos, escutamos histórias de anteriores passagens de um tal Frank, invariavelmente descrito como lunático. Nas fronteiras, reconhecendo o carro, vem gente perguntar se somos os filhos dele, mecânicos que passaram horas à volta do Peugeut, e as pessoas que pintaram desenhos na sua chapa; nos parques de campismo, toda a gente se lembra deste homem, e contam-nos histórias às vezes com 15 anos, mas que se gravaram na memória dos próprios pelos seus incríveis labirintos (brilhantemente inventados pelo próprio) no mundo burocrático, geográfico, e humano africano.


Surrealmente, a pergunta parece estar escarrapachada em toda a África: o que motiva este homem a viajar desta forma? Quem é Frank Titus? Tão presente essa questão está em todo o lado, que me esqueço que, nós próprios, estamos a conduzir o seu carro. De vez em quando, vejo-me ao espelho, e a pergunta reflecte-se, intensificada por um homem que parece fazer da viagem caótica vida, e por esta sinergia que, durante estes dias, confundia a nossa história com a deste homem: o que me motiva a mim a estar aqui? Há um bichinho irritante que mo insiste em perguntar. Este chama-se Jean.


sábado, 7 de março de 2009

A estrada II


Graças à bondade dos sauditas, a Mauritânia é finalmente atravessada de Norte a Sul por uma estrada de alcatrão. Ficam as impressões pouco aprofundadas de um país visto a 50km/h…
Há mais metades de casas do que casas inteiras, numa variedade de construção notável dentro de uma gama de escolha miserável: há a barraca às riscas feita de tiras de bidões Castrol, a palhota, o casebre feito de blocos de adobe, a tenda colorida inventada com cordas, trapos, plásticos e oleados, e múltiplas combinações destes materiais. E estes «edifícios» estão de tal forma dispersos que não dá para dizer se certas aglomerações mais afectadas pelo magnetismo (muito moderadamente, convém repetir) chegam a formar aldeias ou não, como se uma invisível força de repulsão mantivesse tudo separado. E as árvores isoladas, as cabras solitárias, os carros abandonados e as ossadas de carros que dão à paisagem uma atmosfera de cemitério, obedecem a essa mesma força dispersora, como, afinal, tudo o resto. Nunca tinha visto tanto espaço junto, e talvez por isso as coisas se possam dar este luxo de respirar. Decididamente, estamos do outro lado de Hong-Kong.
Há corvos enormes saltitando dentro de currais de galinhas, no dorso de uma duna, ou agrafados às costas de um burro. Árvores retorcidas e secas. Uma carcaça de um mamífero de grande porte à beira do alcatrão, um alicerce isolado, e depois outro alicerce, e ainda mais outro (invariavelmente composto por quatro ferros espetados e torcidos, com pedaços de betão mal agarrados, a saírem da terra como se fossem garras – que, se quisermos ser muito maus ou apenas fiéis à estatística, devia ser o postal típico ou o ícone da Mauritânia, como elemento mais recorrente da paisagem que é, se excluirmos, claro, as dunas). Há uma cama de ferro em condições aceitáveis deitada em cima da areia que parece flutuar magicamente num oceano castanho; uma pilha de caixotes de fruta que lembra as traseiras de um mercado que não existe, um tronco comprido sem folhas nem ramos, sinuoso, esticado em direcção céu como uma serpente que tivesse saltado e sido carregada no pause. Há filas individuais de pneus que crescem, muito direitas, a partir da estrada, e se perdem no horizonte: marcam estradas na areia em direcção ao vazio, de outra forma inidentificáveis. E depois uma placa de sentido proibido no meio do pó para a qual um pássaro olha, desconcertado. Há um grupo de mulheres, raparigas e meninas (umas oito) à beira estrada de joelhos, a verem-nos passar e a gesticularem, e que não se percebe se nos acenam, se pedem boleia, se riem, se choram, quem são, o que fazem da vida. E a estrada roça a praia, saímos três do carro para urinar, e um volta com uma enorme carapaça de tartaruga, outro com o crânio de um golfinho de rio, o terceiro com coral negro, um leque rendilhado do tamanho de uma caixa torácica. A seguir há um rebanho de cabras que ataca violentamente uma acácia. Ao fundo, um bando de quinze crianças que parecem espantalhos, tão atabalhoadamente enroladas em trapos e farripas de tecidos oleosos e coloridos que estão, que emergem numa algazarra de uma palhota distante e correm.
Tudo isto semeado ao acaso numa planura de sonho, de realidade imaginada, ou de jogo de computador; um lençol calcado de terra, tão colossal e tão bem aplanado que não parece poder pertencer a capricho da natureza e muito menos humano. Maravilhoso.
Aqui, o apocalipse já aconteceu. Explodiu, varreu tudo, e o que sobra é uma gente miserável sob um sol escaldante numa terra árida e estéril a fazer o que pode com bocados de lixo.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Notas falsas

O Isa, um senegalês alto e magro que nos apanhou em Boujdour e galgou connosco uns 700 quilómetros até à fronteira com a Mauritânia, é daquele tipo de homens que está sempre a tentar explicar aos outros o quão descontraído está. Se cai um objecto insignificante ao chão do carro, ele insiste em dizer:

- Pas de probléme.

Se há uma mosca presa no carro cujo barulho se torna irritante (talvez apenas porque ele lhe dirigiu atenção e já ninguém consegue ignorá-la), podemos perfeitamente sentir crescer a frustração e a ansiedade no Isa, à medida que vai agitando mais os braços, abrindo e fechando janelas, pegando em objectos para a enxotar, e podemos mesmo apanhá-lo a praguejar sozinho contra a mosca, abstraído da nossa presença, tenso, tenso. Mas, se depois de enxotada a mosca, outra pessoa conclui muito naturalmente “raio da mosca.”, o Isa é daquele tipo de pessoas que lhe responde imediatamente:

- Calma. É só uma mosca.

E depois é capaz de acrescentar:

– Ouve a música. Relaxa.

Durante 700 quilómetros a furar o deserto do Sara é assim, ao som da mesma cassete de Alpha Blondy (uma espécie de Bob Marley costa-marfinense) e da oralidade sedativa do Isa, dentro da sua pick up violeta com vidros fumados, imaculada e cintilante.

Dentro do bólide fulgurante, o Isa vai-se dando a conhecer, como quem concede um favor: segundo o próprio, estamos perante um tipo simples, que vê o mundo de forma simples. Para ele, o racismo está condenado a acabar; as diferenças religiosas também, e o exemplo máximo disso é ele mesmo: é muçulmano, reza todos os dias, mas ostenta o nome do filho do Deus cristão e é casado com uma católica. Para o Isa, África vai também desenvolver-se; é apenas uma questão de tempo. O Isa é assim: as suas opiniões são normalmente positivas, e, acima de tudo, são servidas numa embalagem de gargalhadas e boa disposição. O Isa é cool.

Entre outras coisas, o Isa diz-se farto da Europa, e explica-nos que esta terá sido das últimas vezes que lá meteu os pés. Diz que os europeus são enfadonhos e que, sobretudo, deviam deixar de jogar, e deixar para os africanos tudo o que é jogo, porque a verdade é que não sabem jogar:

- E o que é o jogo, Isa?

- O jogo é a música, o futebol, a dança, e fazer amor. Tudo o que implica ritmo. E os toubabs [brancos em wolof] não têm ritmo. Os pretos, sim. – o Isa diz as coisas com uma frontalidade irresistível. Lembra-me o Samuel L. Jackson ou alguns personagens dos filmes do Tarantino.

Depois, explica-nos que, para deixar a Europa, tem um plano infalível de uma empresa de importação de carros por via marítima para o porto de Dakar, que lhe permitirá fazer vida só no Senegal.

- Mas para isso é preciso algum dinheiro, não?

O Isa olha para nós com uma cara que diz: “mas acham mesmo que eu não sei do que é que estou a falar?” Depois, introduz-nos ao contexto da sua presente viagem: a pick up é apenas um dos dois/três veículos em segunda-mão que tem trazido por mês nos últimos seis meses da Europa para o Senegal.

Hoje é Sábado. O Isa apalavrou este carro na Quarta-feira pela internet, viajou Quinta de manhã de Dakar para Madrid, Quinta à tarde fechou negócio com o espanhol, Sexta de madrugada partiu, hoje está aqui, e quer ter o carro vendido Segunda-feira. Ganha entre 4.000 e 6.000€ por viatura. Com um sorriso nikel [cool, traquilo, relaxado, em wolof] conclui:

- Mas já chega. Já fiz o meu pé-de-meia. – e ri-se.

Pela meia-noite, chegamos ao limite do Sara Ocidental (Marrocos), onde pernoitamos, à espera que a fronteira abra, às 09:30 da manhã seguinte. Às 10:30 entramos na no man´s land, e o Alpha Blondy está de novo a descrever uma babilónia pacífica. Já nós, estamos a penetrar numa babilónia de lixo, crateras e sucata. Nem dez metros neste lugar, o carro é abalroado por um bando de árabes criminosos que aproveitam este vazio legal para fazer todo o tipo de negócios obscuros.

O Isa mete os óculos escuros Dolce & Gabbana, trava a pick up, abre a janela, e começa a negociar o câmbio de alguns dos seus Euros para Ouguiya, a moeda mauritana. Os árabes sacam dos telemóveis para darem uso à calculadora respectiva (imagem icónica destas bandas) e, entre apontamentos bem-humorados do Isa, vai-se regateando a taxa de câmbio. Por fim, troca uma nota de 50€ e concluí-se o negócio. Depois, o Isa fecha a janela, engata a primeira, hesita, e não chega a arrancar. Volta a abrir janela:

- Mes amies, on fait encore le business! – exclama, com uma gargalhada tirada a papel químico do Eddie Murphy.

Os árabes voltam a correr, começam a gritar taxas, e espremem-se na janela do 4x4 como carne num passador. Dentro do carro, é ver o emaranhado de mãos, como um insecto gigante, a definhar, esperneando e contorcendo milhares de patas que seguram notas e celulares.

Haja paciência! O Isa agora quer trocar mais 250€. Durante nova eternidade renegoceia-se a taxa de câmbio. Não presto atenção àquilo. Observo apenas o Isa, brilhante como a chapa da 4x4, aprumado na sua camisa de pseudo-veludo violeta, de óculos escuros, pele preta lustrosa, e os dentes brancos como uma banheira limpa a ornamentarem todas as frases. E, no entanto, por vezes o Isa parece-me estrafegado pela camisa, violentado por tanto número e tanta mão, exausto dos últimos três dias. É difícil dizer o que está realmente a pensar.

O câmbio acaba por ser concluído com o mesmo árabe da primeira vez, mas desta, assim que o tipo recebe as notas e que o Isa se prepara para seguir caminho, o primeiro ordena-lhe, muito sério:

- Pára.

-Então? – pergunta o Isa.

O árabe retorque com uma cara carrancuda, aponta-lhe as seis notas de 50€ que recebeu, e diz:

- Este dinheiro não é bom. Quero o meu dinheiro de volta.

Levanta-se um sururu, e as perninhas do insecto espremido na janela agitam-se mais ainda, freneticamente, como as mil patas de uma centopeia, como se estivesse a ser esmagado. Os árabes falam alto, gritam, discutem. Mas o Isa, dando tudo o que tem para conservar o ar mais tranquilo do mundo, diz:

- Nenhum problema, meu, nenhum problema. – mas a verdade é que as suas mãos tremem. A vida não é o Pulp Fiction. – Vamo-nos lá chatear por causa desta merda. Fica tranquilo que eu dou-te o dinheiro de volta. Se achas que o papel não é bom para ti, não há problema. Eu troco-o com outro. Tu é que perdes. Se queres outra taxa de câmbio, também podemos negociar. Eu sou um homem paciente.

- Não te ponhas com conversas. – diz-lhe o árabe – Devolve-me mas é o meu dinheiro.

O Isa não se deixa abater. Ainda com um sorriso estampado nos lábios, desfaz a troca, e os árabes vão-se afastando, muitos deles insultando-nos. Apenas um fica para trás. É jovem, não terá mais do que 25 anos, e guia um Mercedes sem matrícula na no man´s land. Vira-se para o Isa e diz:

- Parece-me que precisas de um guia para chegar ao outro lado. A estrada é perigosa, aqui há minas.

- Quanto é que queres?

- Quinze euros.

- Pá, não te vou dar quinze euros por uma estrada que sei que não tem nada! – diz o Isa.

Não obstante, o miúdo do Mercedes parte, e nós percorremos os três quilómetros seguintes atrás dele. 3km de Alpha Blondy altíssimo, onde brancos e pretos convivem todos de mãos dadas como numa grande roda de miúdos no recreio da pré-primária, mas que neste momento não harmoniza lá muito bem com a série de gestos motores nervosos e aparentemente inverosímeis do Isa: olha para todos os lados, arranca plásticos do tablier do carro, abre livros, apalpa o interior do carro por baixo do volante e dos assentos. Por fim, mete conversa connosco para nos distrair, abre a janela, embrulha os 300€ num papel, e atira-os para o meio do nada (o que explica os seus gestos: procurava um lugar para esconder o dinheiro).

- Meu, estes árabes são paranóicos! – diz-nos, rindo. – Dinheiro falso… Pensam que eu sou estúpido? – e continua a rir-se.

Aproximamo-nos da entrada na Mauritânia, mas, antes de entrarmos no país, o rapaz do Mercedes pára o carro, aproxima-se da nossa pick up, e, à janela, pede de novo quinze euros ao Isa para “chegar a bom porto”.

- Meu, eu já cheguei a bom porto. – diz o Isa com um sorriso arrogante. Parece-me agora genuinamente tranquilo.

O árabe olha com ele com desprezo e com uma cara que diz «tens mesmo a certeza?» e o Isa começa a hesitar, mas é tarde demais. O árabe está já a andar a toda a velocidade a caminho da Mauritânia. Passado o arco que assinala a fronteira, somos mandados encostar por um bisonte de boina enfiada no crânio na diagonal. Até agora, tudo dentro do normal. Mas depois seguem-se duas horas de revista ao carro. As nossas coisas – da roupa interior às necéssaires, de cada bula de cada pacote de medicamentos a cada página de cada livro – e a pick up – do tablier (que é todo desmontado) ao chão do carro (todos os estofos são removidos), do motor (percorrido com pinças longas) aos interstícios entre os faróis –, tudo é minuciosamente verificado.

Entretanto, fez-se meio-dia, o sol está a pique, não comemos nada desde o dia anterior, e estamos a racionar a pouca água que ainda temos. Por nós, passam carros que estavam uns dez lugares na fila atrás de nós na fronteira. Começamos a suspeitar que alguma coisa se passa. Tentamos perguntar ao Isa o que se está a passar, mas apenas conseguimos obter o seguinte:

- Isto é sempre assim. Passo sempre horas aqui. Só querem é dinheiro. – e ri-se – Tudo normal. Pas de probléme. – mas, parece-me a mim, que os risos ornamentadores e o vocabulário paliativo do Isa não disfarçam o desconforto, embora a única coisa visível que o parece estar a apoquentar – ou na qual depositou a sua concentração – seja um serviço de loiça que trás para a mulher, e que os militares insistem em cobiçar, e em abrir e reabrir. Verdade seja dita, ainda não consegui medir exactamente a espessura da carapaça deste senegalês.

Logo a seguir, eu e o André somos chamados pelo bisonte-chefe a uma salinha do posto de controlo. Pedem-nos para nos despirmos até ficarmos em cuecas. Revistam o interior das meias, debaixo das solas dos sapatos, apalpam-nos as virilhas, levantam-me a gola do pólo que tenho vestido, verificam atrás dos nossos cintos das calças ao longo de todo o seu comprimento, e perguntam-nos, pela enésima vez, qual é a nossa ligação ao Isa. Quando saimos da salinha há um miúdo que me vem dizer em segredo:

- Suspeitam de dinheiro falso. – Grande novidade! Infelizmente, não vão a lado nenhum. O dinheiro está diluído algures no meio do resto do lixo da no man´s land.

Frustrados, os bisontes encetaram entretanto nova busca, o que dura mais uma hora. Desfazem-nos as malas uma vez mais, com redobrada minúcia, e nós olhamos para aquela confusão com um desespero resignado. Já só me interessa comer e beber água, o resto é-me indiferente. E, de repente, somos subitamente, e com toda a cordialidade, autorizados a partir, o que nos apanha de surpresa. Tanta coisa e agora desistem assim?

Arrumamos as coisas, aliviados, metemo-nos dentro do carro, e eis que pedem o passaporte ao Iza para podermos seguir caminho. O Isa começa a procurá-lo mas lança imediatamente o aviso:

- Eu tinha o passaporte em cima do tablier e já aqui não está. Desapareceu durante as buscas.

- Monsieur, queira procurar o seu passaporte para o podermos deixar seguir viagem. – diz um militar.

Eu e o André olhamos um para o outro (não nos atrevemos a olhar para o Isa): ambos sabemos quem tem o passaporte.

- Mas eu não tenho. Como é que eu faço? – pergunta o Isa aos militares – Além disso, vocês já viram o meu passaporte…

- Ainda não fizemos nenhum registo da sua entrada, Monsieur Isa. Sem o passaporte não pode entrar na Mauritânia.

- Mas vocês já o viram! – grita o Isa – E eu nem sequer poderia ter saído de Marrocos sem passaporte.

- Desculpe Monsieur, mas não temos nada a ver com Marrocos. Aqui é outro país. Sem passaporte não pode entrar.

O resto é teatro. Durante duas horas, uns quatro ou cinco bisontes diligentes e subitamente simpáticos e atenciosos, juntamente comigo e com o André, encenam uma busca de um objecto que toda a gente sabe que não vai aparecer. Durante esse período, vou tristemente observando o Isa a perder controlo sobre os seus gestos. À sexta busca ao carro, ao sexto pedido para abrir o caixote com o serviço de loiça, o Isa atira com ele ao chão, partindo parte do conteúdo. Mesmo assim, há um polícia-abutre que vem apanhar os copos inteiros no meio dos cacos e que pergunta, desesperantemente, com um sorriso:

- Un cadeaux, pour moi?

E estas horas são liturgicamente pontuadas, como um relógio certo, por um novo militar ou polícia que aparece e nos diz sempre o mesmo, como se se tratasse de uma linha previamente decorada do manual obrigatório do militar fronteiriço:

- Calma. Agora vamos sentar-nos todos em conjunto, relaxar, e pensar tranquilamente no que aconteceu ao passaporte. Ele não pode ter desaparecido assim do nada Monsieur Isa, tem mesmo a certeza que entrou na Mauritânia ainda com o passaporte na mão?

São 4 horas da tarde, continuamos sem comer e sem beber água, e a recorrência infernal destes diálogos absurdos é ainda mais dolorosa que o sol a liquefazer-nos a carne. É um diálogo de uma maldade sem limite, mas é também mais um componente de uma máquina kafkiana implacável feita para dobrar o ferro, para vergar quem quer que seja. E, água mole em pedra dura, tanto dá até que fura: a certa altura, o smooth Isa, personagem caricatural, o traficante mauzão, está a chorar. E eu tenho mesmo pena dele. Pouco depois, acede à única hipótese que lhe apresentam: partir com uma escolta até à capital mauritana, Nouakchott, para ir ao consulado do Senegal.

Pelas 5 da tarde vejo o Isa partir, sem passaporte, dentro de um jipe que vale um dinheirão, com dois militares colossais de cara paralelepipédica mas sem nada na vida (que me cobiçaram até os pólos ranhosos que trazia na mochila – cadeux pour moi?), para o meio do deserto, em direcção a uma cidade que fica a 600km de distância (e, pelo meio, não há outra), sem que exista qualquer registo que este senegalês tenha alguma vez entrado na Mauritânia no dia 9 de Fevereiro de 2009.

Só eu e o André o sabemos. Espero sinceramente que não tenhamos sido os últimos, mas desconfio, sem o dizer levianamente, que assim foi.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

No man´s land


Franco caiu, a Espanha saiu à pressa das suas colónias e, em 1975, Marrocos disse: o Sara Ocidental é nosso. Mas a Mauritânia disse: não, não, o Sara Ocidental é nosso. E a Argélia disse: desculpem, meus senhores, mas o Sara Ocidental é nosso. Estavam a disputar as toneladas de peixe existentes nos 266.000 km2 de areia do sara ocidental. Também sal, potássio, e, no caso da Argélia, uma oportunidade única de ganhar uma janela para o Atlântico. Reza a história que Marrocos terá pago mais dinheiro a Espanha, e que terá sido assim que o Sara Ocidental se tornou maioritariamente território marroquino. Já a Mauritânia abraçou um terço do seu território.
Entre os territórios do Sara Ocidental (agora Marrocos) e a Mauritânia, as Nações Unidas abriram um corredor de segurança que nós cruzámos na fronteira costeira de Bou L´anouar. Bem-vindos à lua, a Marte, a Júpiter, a um vácuo legislativo, político, geográfico; três quilómetros de areia, calhau, cobertos por um manto de lixo e adornados por cemitérios de carros (ou de esqueletos de carros), a maioria ardidos, esventrados por uma pseudo-estrada muito pior que um caminho de cabras, pior que um trilho para 4x4, uma coisa que não passa de umas poças insignificantes de um alcatrão velho salpicando o chão aqui e ali, e que flutuam entre enormes buracos do tamanho de crateras de granadas ou morteiros.
Surpreendentemente (ou não), nestes 3km inóspitos sem rei nem roque, há homens a fazerem vida, gente que faz da no man´s land o seu dia-a-dia e sustento, e não são capacetes azuis. Um desses homens conduz um Mercedes sem matrícula, que utiliza para andar para trás e para a frente entre as duas fronteiras. Basta passarmos aqui para nos cruzarmos com ele: afinal de contas, não pode ir muito longe porque o carro está confinado a esta terra sem pátria, e, de resto, faz sempre a mesma estrada, já que aqui não há mais nenhuma.
A primeira impressão sobre esta gente poeirenta e sobre este homem que habita Marte na Terra é de assombro. O que há para fazer aqui? Aqui não há governo, não há lei, não há transportes, não há bancos, não há restaurantes, não há casas.
E depois cruzamos a estrada, falamos com ele, e aproveitamos os cinco diferentes controlos policiais das duas fronteiras para o observar. O que há para fazer aqui? A resposta é fácil: tudo. E por isso este homem faz tudo.
É o taxista no sítio certo para os que não têm meios de transporte e estão disponíveis a pagar o que for preciso para escapar ao calor abrasador daqueles três quilómetros, especialmente depois de horas de fila na fronteira a passar polícia, exército, e aduanas de cada uma das fronteiras; é o banqueiro que troca todos os tipos de moeda do mundo a câmbios obviamente despropositados aproveitando desconhecimento e necessidade; é o polícia que detecta notas falsas nestes câmbios (como aconteceu ao senegalês que nos dava boleia); é o cão farejador que pressente passagem de droga, e o justiceiro que denuncia às autoridades aduaneiras dos dois lados estes e outros produtos ocultos; mas é também o amigo que, por uma quantia moderada e bastante negociável, nos sabe ouvir e consegue compreender que todo o tráfico é crime menor perante as dificuldades da vida, escolha forçada num mundo cão. É também o guia iluminado que escolta até porto seguro, com o seu Mercedes, quem se deixa impressionar pela seu atencioso relato de uma estrada pejada de minas, capaz subtrair a vida em terra de ninguém ao viajante desprevenido. E ninguém quer morrer em terra de ninguém, e, aqui, este homem consegue convencer-nos de que é o único capaz de evitá-lo.
Oportunista da ignorância alheia, debicador de desgraças e fraquezas, aproveitador do sistema, parasita, ténia.
Por instantes, enquanto aqueles três quilómetros nos rodearam e permaneceram no nosso horizonte, experimentei, quase comovido, uma violenta nostalgia de ordem, lei e justiça.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Barraca de pescadores (entre Tan Tan e El Aaiún)

Estação de Serviço abandonada (algures no Sara)

A estrada


O Sara ocidental é um território vazio que às vezes parece pouco mais que uma estrada numa planície que se estende aos quatro horizontes. E essa estrada é um lugar estranho.

Fizemos a parte final da N1 à boleia com um senegalês magro e eléctrico chamado Iza. É um dos muitos africanos com passaporte europeu que fazem vida apanhando aviões para a Europa para comprar carros e regressarem com eles ao longo da África Ocidental para os vender, muito mais caros, na Mauritânia, Senegal e no Mali. Entrámos na sua pick-up, em Boujdour (Cabo Bojador)… Dahkla, uns 400km mais abaixo, desvia todo o tráfico automóvel, que desaparece por completo. Daqui até à fronteira com a Mauritânia de Bou L´anouar são cerca 350km de estrada estreita e areia, interrompidos por três ou quatro estações de serviço, e chega. Durante quatro horas de viagem não nos cruzamos com nenhum veículo (nem sentido contrário, nem na nossa faixa), nenhuma casa, nenhum arbusto, nenhum bicho, nada. Os quilómetros sucedem-se e o nosso corpo vai-se submergindo sensorialmente num meio novo, diferente de tudo; como se nos mergulhassem à força no mar, ou noutro qualquer espaço com condições físicas radicalmente diversas. O vácuo exterior infiltrasse-nos na mente e já não há nada para dizer. O mundo tornou-se ausente de estímulos. Aqui não há cartazes publicitários ao longo da estrada, ou árvores de formas curiosas para vermos passar e comentar. Viajamos mudos. A mim, pela cabeça, passam-me ideias estéreis, coisas vagas, sem princípio, meio e fim. Todavia, muito de vez em quando, acontece o oposto: recordo situações com uma vivacidade anormal, como num sonho vivo. Interpreto esta variação radical como mais uma componente de uma espécie de síndrome do deserto. É o vazio que nos apaga, mas é também ele a permitir que as coisas emerjam em plena força à sua superfície e tomem conta dele, já que não há lá nada que se lhes oponha.

A única coisa que nos diz que estamos a avançar é a aparição esporádica de bombas de gasolina. Tem sido assim desde Boujdour. Paramos em mais uma para atestarmos o depósito. De dentro de um casebre sai o tipo que trabalha ali (e que, provavelmente, também ali vive) e não consigo perceber se ele tem um aspecto estranhíssimo, se é apenas estranhíssimo encontrar um ser humano neste lugar.

- Como está? – perguntamos.

- Como estou?! Como acham que estou? – retorque, sem meias medidas – Aqui, sou eu e Alá, e mais nada. – grita, e expele uma gargalhada rouca. Levo algum tempo a aperceber-me que o grito e a gargalhada foram extremamente volumosos. Uma vez mais, parece-me ser o deserto a garantir o espaço para esse exagero. Tudo o que fazemos tem talvez que ser decidido e categórico, já que há tanto espaço para preencher.

São precisos mais 30km para a N1 nos oferecer uma nova intersecção no vazio, um ponto de referência, uma nova idiossincrasia para a qual podemos olhar: desta vez, é estação de serviço abandonada, consumida pela ferrugem, mas é impossível não a ficar a ver passar de olhos bem abertos e concentrados. Entretanto, a noite cai. 40 km mais tarde, uma nova estação. Paramos e entramos. Esta é um pouco mais movimentada: há pelo menos mais dois carros parados e seis pessoas dentro da casa da estação, o que torna este lugar no maior ajuntamento de seres humanos que vi nas últimas cinco horas e 300km. Decidimos comer qualquer coisa, mas aqui só chegam produtos empacotados, enlatados, embalados. Empanturramo-nos com uns bolos e umas bolachas.

Saio para tentar urinar lá fora. Assim que atravesso o limiar da aura de luz da estação dou entrada numa escuridão unânime. Em todas as direcções, o mundo é preto. Aproximo-me da entrada da estação, do poste de luz que a anuncia na estrada e que, supostamente, deveria indicar os preços da gasolina e gasóleo, mas os meus olhos ainda não estão habituados ao escuro e apanho um susto quando já estou muito perto do poste. Encostado a ele, jaz, ali por terra, um molho de gente, uma grande família (novo recorde de ajuntamento humano) cheia de mulheres e crianças. Têm imensa bagagem, e uma data de cobertores e edredões dentro de sacos de plástico próprios, daqueles com fecho-éclair. Faz um frio tremendo e não percebo porque não tiram os cobertores dos sacos. Volto para trás, urino noutro sítio, e reentro na estação para me juntar ao Iza e ao André. Lá dentro há um tipo que me pergunta:

- Tens Whisky para vender? Álcool?

- Não.

- O que é que tens para vender?

- O que é que queres?

- Qualquer coisa.

- Qualquer coisa? Tipo o quê?

- O que é que tens para vender? – repete.

Este lugar faz-me arrepios. O melhor é sairmos daqui para fora. Partimos. Um bom bocado depois, no meio de um raio de uns 80 km de desolação plana, está um tipo a andar ao longo da estrada no meio do preto, a fazê-la na mesma direcção que nós. Nem sequer vira as costas para nos ver passar, o que me parece absurdo. Podemos ser o primeiro e último veículo a passar por ele durante horas. Porque raio é que não olha para nós? Dentro do carro, eu, o André e o Iza viramos a cabeça em sintonia à sua passagem, como se ele fosse uma bola de ténis. Passado uma quantidade exagerada de tempo o Iza diz:

- Saiu de casa para ir ao café e não o encontra. – desatamos a rir (como aqui não há nada, podemos pegar numa situação que se passou há muito tempo, comentá-la, ironizá-la, e as pessoas ainda vão saber do que estamos a falar).

Mais à frente, encontramos um triângulo de perigo na estrada. Abrandamos e passamos a 10km/hora por um carro estacionado na berma. Três mulheres marroquinas (pelo menos a julgar pelas roupas) descarregam da mala de trás do carro caixotes de cartão de bananas Chiquita. Não consigo imaginar nenhum argumento verosímil que se adapte ao facto de serem 21h da noite e de estar alguém aqui, neste sítio, a tirar caixotes de um carro para o meio do pó.

Logo a seguir, vindo do nada, um Audi topo de gama com os quatro piscas ligados (o primeiro carro que encontramos) ultrapassa-nos e começa a travar tentando forçar-nos a parar. Estamos tramados, penso. O André olha para mim: também pensa o mesmo; afinal de contas, este tem que ser o melhor sítio do mundo para assaltar um carro. Mas o Senegalês é um bocado avariado (ou já fez esta estrada muitas vezes) e pára a pick-up mesmo ao lado do Audi. Abrem-se ao mesmo tempo os vidros eléctricos das janelas contíguas de ambas as viaturas. Eu estou no lugar do morto e não consigo evitar o pensamento exagerado, de inspiração talvez «hollywoodesca», de que tenho que estar preparado para baixar a cabeça. Aparece-me à frente uma cara enrugada e abrutalhada e o bigode farfalhudo de um árabe horrendo, com um ar tão criminoso como seria de esperar. Estamos decisivamente tramados, penso. Trocamos, cada um de nós, palavras na respectiva língua: árabe, wolof, inglês e francês, mas ninguém se entende. Por fim, o árabe ri-se e diz, em francês:

- Desculpem. Pensava que eram marroquinos. – e o Audi arranca. Absurdo. Então e se fossemos? Sentiu-se sozinho e queria dois dedos de conversa?

Mais adiante, paramos para desentorpecer as pernas. Lá fora, o mais perfeito silêncio presta justa homenagem ao mais cintilante dos céus.

Prosseguimos caminho até avistarmos novamente, ao longe, os quatro piscas de um carro. Vamo-nos aproximando e apercebemo-nos que está estacionado mesmo no meio da estrada. Outra vez o árabe? Diminuímos a velocidade e avizinhamo-nos do carro parado, lentamente. Quando paramos, os quatro piscas apagam-se. Saímos do nosso carro, deixamos os olhos habituarem-se à escuridão, e deparamo-nos com mais uma visão bizarra: a seguir a este automóvel sucede-se uma fila interminável de carros e camiões com as luzes apagadas, como se estivéssemos no meio da hora de ponta do deserto e toda a gente tivesse decidido desligar os carros para poupar gasolina. Depois, aguçamos ainda mais o olhar: afinal há também cobertores e sacos cama ao lado e por cima dos carros. Gente e mais gente a dormir por terra e até em cima dos capots. Chegámos. Estamos na fronteira Mauritânia, que é um país tipo supermercado: só está aberto das 9 às 18. Metemo-nos na caixa da pick-up e preparamo-nos também nós para dormir. A estrada acaba aqui.