domingo, 15 de março de 2009

Mark

O Mark é um inglês rechonchudo, gordo de bochechas, e sardento. Há aqueles homens a quem a massa corporal parece acrescentar força, pujança, mas o Mark é dessoutros a quem ela parece apenas retardar, amolecer. Singularmente, os seus gestos e movimentos viscosos e pesadões são, todavia, inesperadamente imprecisos, pouco resolutos, e mesmo precipitados. Se num homem magro, o nervosismo se detecta facilmente pela velocidade caótica da sua gestualidade, num homem gordo, a lentidão costuma camuflar o desassossego. Mas este não é o caso do Mark, e isso torna-o num personagem algo conspícuo, de cuja estranha conjugação entre massa e desconjuntamento não se pode esperar outra coisa senão grandes estragos.

Tínhamos acabado de apanhar o Mark numa boleia que duraria, no mínimo, 200km, à saída de St. Louis, capital colonial senegalesa, na costa Norte do país.

- Então Mark, que fazes aqui? – pergunta-lhe o André, emprestando à frase uma lentidão e à palavra aqui uma espessura que significavam que a pergunta possuía uma amplitude que se não resumia aos últimos cinco minutos e à cidade de St. Louis, mas que abrangia todo o Senegal, África, a sua viagem, a sua vida.

Mera coincidência, a pergunta encontrara um daqueles interlocutores que vivem à espera que a curiosidade alheia sobre os próprios se manifeste a todo o momento em proporções dessa monumentalidade.

- Bem, eu sempre tive boas notas e era bom em desportos. – começa o Mark, aproveitando todo o espaço que lhe permitia a pergunta do André; e como se estes dois itens (notas e desportos) resumissem a totalidade dos indicadores de sucesso de uma criança. – Mas cresci e o tempo foi passando sem que eu achasse alguma coisa para fazer na vida ou sem que algo me interessasse verdadeiramente. Ainda hoje não sei porquê. – como a repetição viria a provar, o principal recurso expressivo do Mark para traduzir desnorte e incerteza existencial (componentes basilares da sua vida) era a afirmação: «não sei porquê» – Depois os meus amigos tornaram-se advogados, homens de negócios, alguns já têm mulher e filhos e eu, não sei porquê, nunca me consegui fixar numa carreira. E o mês passado despedi-me do trabalho para vir para África, sem que percebesse bem porquê e sem que a minha namorada também me percebesse ou que eu lhe conseguisse explicar porquê. – na vida do Mark, foi-se tornando claro, o grande problema é que ninguém sabia explicar nada. Talvez se alguém soubesse explicar alguma coisa, as coisas tivessem sido diferentes. – Há três anos também me despedi do trabalho e estive um ano na Índia, numa espécie de viagem espiritual. E o ano passado voltei lá, mais uns meses. Estas viagens acalmaram-me, mas eu ainda sentia fome de qualquer coisa. Voltava para Londres e continuava a sentir-me desconfortável, infeliz, sem que percebesse porquê. No meio disto sempre soube uma única coisa – e os nossos ouvidos aguçaram-se, sob o auspício tranquilizador da primeira certeza desta história: tinha que vir a África. Era uma convicção íntima que possuía, e que estava umbilicalmente ligada à ideia de que a Índia não era suficiente. – e, infelizmente, o Mark nunca chegou a explicar em que é que ela não era suficiente – Por isso, há dois meses atrás, decidi vir. Mas foi apenas na semana passada que descobri finalmente a razão da minha vinda: estava em Dakar à noite, a dirigir-me de táxi para um posto da polícia para apresentar uma queixa de um pequeno furto de que tinha sido vítima. O taxista deixou-me numa esquina, explicando-me detalhadamente o curto caminho de 40m até à esquadra. A partir daqui não me lembro de muito. Só sei que, no caminho, um homem se atravessou bruscamente à minha frente. Impulsivamente, eu virei-me para mudar de sentido, mas já tinha um outro tipo a bloquear-me a passagem; os dois ou mais tipos (não sei quantos eram) agarraram-me, atiraram-me para trás de uma sebe de um canteiro, tiraram-me uma carteira com 300€ e o telemóvel, e só sei que às tantas sinto uma mão a tentar baixar-me as calças à força, mas sem conseguir. É que eu tenho um cinto mesmo forte, que nem a minha namorada consegue abrir – ri-se o Mark – e só me lembro de tirar para fora tudo o que ainda tinha nos bolsos e de lhes dizer, talvez a chorar, «je te donne, je te donne» e, tão depressa como apareceram, os tipos volatilizaram-se, e dei por mim sozinho, a sangrar não sei de onde, com um outro homem a apoiar-me e a tentar ajudar-me. – o Mark faz uma pausa e respira fundo. A voz treme-lhe um pouco da emoção e vê-se que não lhe foi fácil narrar a história. Depois prossegue – Como eu disse, eu sabia que tinha que vir a África, e acho que finalmente percebi porquê: foi por isto que vim, foi por esta noite, por este assalto. Agora acho que finalmente posso voltar para Inglaterra e sentir-me bem lá, dar valor à minha vida. Pela primeira vez, sei que é em Londres que quero viver, tranquilamente, com a minha namorada.

Terminada a história, prosseguimos viagem em silêncio. Nem eu nem o André sabemos bem que comentário fazer ou talvez não queiramos apenas comentar. Afinal de contas, o Mark parece bastante seguro da sua conclusão e ninguém quer alimentar duvidas numa vida que, a acreditar nas palavras do próprio, parece finalmente ter perdido os “porquês”. E, no entanto, é impossível não a problematizar…

A mente humana percorre caminhos sinuosos, é retorcida como os ramos dos embondeiros que passam lá fora. O Mark pensa que é necessário vir a África, sofrer um roubo, um espancamento e uma tentativa de violação para dar valor à vida, episódio que me lembra automaticamente o Frank, um holandês que nos disse em Nouakchott que um dos dias mais felizes da sua vida foi passado numa prisão no Senegal. Fenómeno bizarro este; como se a vitrina europeia – esse lado enfeitado, perfumado, arranjado e limpo do vidro – se tivesse tornado o cárcere de alguns dos próprios habitantes que protege, e gerasse esse estranho impulso que impele gente a andar à deriva por esse mundo fora, a vir procurar longe o que está perto, a vir procurar no desconforto o conforto do conforto que sempre tiveram mas que não conseguem experimentar.

Há uns tempos atrás alguém percebeu que o turismo que consiste em estar quinze dias sentado numa espreguiçadeira de plástico a fritar ao sol não era suficiente para algumas pessoas. Nasceu o turismo de índole etnográfica, a imersão do turista no banho-maria do outro, o contacto forçado com a realidade alheia, o choque cultural refrescante e terapêutico, posto ao serviço da relativização dos problemas comezinhos e quotidianos da existência; depois nasceu também o turismo-aventura, ligado à utilização do canivete suíço e da fogueira, nasceram as viagens ao fim do mundo e os programas turísticos dedicados a fazer vir ao de cima o Indiana Jones e o Macgyver adormecidos dentro de cada um de nós.

Do Mark, do Frank, doutros exemplos, posso atestar que parece existir ainda mercado suficiente para o turismo-penitência, que consiste apenas num contacto tão radical com o espectro negativo da vida, que o dia-a-dia ocidental, o trabalho, a família, o pequeno-almoço, recuperam a magia da sua monotonia, o encanto da sua mediania emocional (para quem assim sentir as coisas, claro está).

Se a sua previsão de bem-estar psicológico se confirmar, foi o Mark, e não o amigo inglês a tomar banhos diários de protector 90 na Republica Dominicana, quem tirou umas férias revigorantes. O bronze, afinal, talvez seja apenas um dos lados da viagem.

3 comentários:

  1. Estou a seguir esta aventura com atenção. E, se me for permitido saber... O que aqui contas é verdade, verdade apimentada aqui e ali com ficção, ou pura ficção?

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  2. Olá Rita
    Depende ligeiramente dos textos (há alguns casos,provavelmente óbvios, puramente literários), mas tenho sido fiel aos factos, reservando o "embelezamento literário" para o que fica para além deles.
    No caso específico de "Mark", tirando o nome do personagem, que é fictício, é tudo bem real, especialmente o pequeno monólogo dele, que é praticamente uma transcrição das suas palavras.
    É-te permitido saber o que quiseres! Tenho todo o prazer em responder a qualquer questão.

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  3. Esclarecida! Continuarei a seguir com atenção. Boas aventuras :P

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