quarta-feira, 18 de março de 2009

Dara Musti


Nota: A única fotografia sobrevivente de Sheikh Amadou Bamba.

Sé verdade que esse estado de espírito superiormente desprendido (o abandono do espírito – que é tão leve – aos caprichos do vento – que é tão forte) é o código de entrada na caixa forte do inesperado, nunca me pareceu essa ideia tão válida como naquele dia…

Chegamos à vila santa de Dara Musti (Norte do Senegal) pelo meio da tarde. Na grande praça central de terra batida, ao fundo da qual se ergue uma mesquita alva e de proporções anormalmente grandes, tocámos à campainha num portão de um recinto que nos pareceu ser uma escola, para pedir hospitalidade.

À porta apareceu-nos Suru Fall, um negro alto e espadaúdo, elegantemente vestido, de gestos dramatizados e efeminados, que nos fez entrar, com muitas vénias e pedidos de desculpa (sobre o quê, não se chegou a perceber, mas em África é frequente pedir-se perdão aos brancos por tudo, mesmo quando, por exemplo, eles tropeçam numa pedra na rua, como se fosse culpa do africano que a pedra jazesse ali, ou que África estivesse toda esburacada), e nos conduziu a uma sala a rebentar pelas costuras de vozes de homens, copinhos de chá e mãos agitadas a espremer arroz de enormes pratos e a enfiá-lo às bolas nas bocas. Entrámos, e fomos recebidos com algazarra e uma alegria que, nos primeiros instantes, nos pareceu excessiva, mesmo para África:

- Entrem, entrem! Foi Deus que vos trouxe até nós. – diziam muitos deles.

- Agora ficam aqui, e mais tarde vão conhecer o “grande irmão”. – disse-nos o Suru, em tom de quem fornece instruções.

Sentámo-nos e deixámo-nos automaticamente contagiar por uma avalanche verdadeiramente poderosa de sorrisos, emanados por uns dez homens. Não sabíamos quem era aquela gente. Lembro-me que a primeira coisa que me saltou à vista foi que quase todos traziam imagens de líderes espirituais (que se repetiam em posters nas paredes) penduradas ao pescoço em pequenas bolsinhas de couro, e envergavam t-shirts estampadas com a foto de Kara, um Petit Marabout (pequeno líder espiritual muçulmano).

Depois, durante algumas horas fomos, sem o sabermos, introduzidos à seita local (melhor dizendo, nacional), que até ai ignorávamos, o Mouridismo, confraria sufista, e ramo do islão.

Os homens começaram por discorrer sobre os nomes de uma interminável linhagem de Grand Marabouts, Petit Marabouts, e homens santos ligados à irmandade mouride. Depois, seguiram-se os incontáveis milagres realizados e contextualizados pela história de vida Sheikh Amadou Bamba, místico e líder religioso muçulmano que nasceu a 20km dali, em Touba, e que deu origem ao Mouridismo.

As suas vozes excitadas iam compondo gráfica e eloquentemente a história de Bamba, prendendo-nos a atenção durante mais tempo do que seria de esperar e, ao mesmo tempo, como pano de fundo, uma cassete de rádio gasta pelas inúmeras audições rodava para trás e para a frente a «Melodia Divina», onde Kara, acompanhado por uma penosa e sofrida orquestra de crianças – como se quem tocasse fosse na realidade um conjunto de almas penadas – ia gritando, com uma voz bruta e feia, os 80 nomes de Deus (“o grandioso, o incomensurável, aquele que te eleva, aquele que te diminui…”), em seis línguas (árabe, wolof, inglês, espanhol, francês e italiano), o que ia perfazendo levas de 640 agulhas por audição, nada inofensivas.

Ao mesmo tempo, incansáveis, os homens transmutaram o assunto da conversa para uma espécie de tentativa de cozinhado comunitário, em tempo real, da explicação da nossa presença ali (algo que, no nosso entender, não precisava de explicação): afirmou-se a irrelevância da nossa diferença de tons de pele, de nacionalidade e de religião e, quase ao ponto da comoção geral, toda a gente celebrou e aplaudiu a nossa presença (minha, do André, e do Mark), e, repudiando-se a teoria do acaso, reafirmou-se essa inescapável componente sagrada do nosso encontro, conspirado e destinado por Deus.

Bamba foi um pacifista (para ser excessivamente sintético), um Ghandi africano, e, para o bem e para o mal, todos os pequenos gestos realizados nesta sala derivavam necessariamente dessa inspiração. Havia uma gentileza permanente na divisão da comida – enquanto comíamos, do mesmo prato, as mãos ocupavam-se em partir a carne e o peixe e colocá-lo cuidadosamente na zona do prato mais perto de nós; havia atenção ao chá – fomos sempre servidos primeiro –, caíram silêncios reverenciais sobre a sala sempre que um de nós os três ousou intervir. Por causa disso, encetar um raciocínio em voz alta naquela noite, fomo-lo percebendo, era inevitavelmente partir para uma pequena conferência, um acto público, e, dada a atmosfera, resvalar inevitavelmente para um exercício de diplomacia moral e cultural que, à medida que se foram sucedendo, se tornavam mais exagerados, eloquentes, mas também mais sinceros. De facto, começámos a dar por nós a concluir tudo o que dizíamos como se a nossa boca se tivesse transformado na dos nossos convivas, como se já não soubéssemos agir de outra maneira em relação ao outro senão convergindo para o êxtase comum:

… porque há apenas um Deus. Viajámos, e todos os homens que encontrámos no caminho, com quem nos cruzámos, tinham duas mãos como estas, um coração, experimentavam as mesmas emoções; choravam, e riam, zangavam-se e apaixonavam-se; e isso não pode querer dizer senão que somos todos iguais, filhos do mesmo Deus.

- Isto aqui é uma espécie de Universidade de Deus. Somos estudantes de teologia. – deixou escapar alguém, e compreendi por fim que a ocupação desta gente era precisamente a presente: falar, falar, soltar a língua, soltar o coração, criar uma incontinência de amor verbalizado, uma torrente crescente, compacta e fluida de gentilezas, elogios, e comunhão mental; e também nós começámos a sentir os nossos pequenos gestos – apertar as mãos, dar espaço ao outro para se sentar ou sentir confortável, abraçar – a infectarem-se de uma cortesia que, se a início era forçada, se foi tornando completamente espontânea.

A conversa prosseguiu, mais veloz. Recuperou-se a História: os portugueses em África e os mouros na Península Ibérica. Tudo isto foi recordado com alegria, como um passado límpido, sem atritos nem fricções, como se esses antepassados comuns não tivessem feito mais do que se rir, misturar-se e tocar-se entre si, tal como fazíamos agora; e, com os copos de chá, brindámos a essa prova antiga desse destino de confluência.

Dei então por mim a contar e achar numa insignificância como o facto de a minha mãe dar aulas numa escola em Lisboa que fica do outro lado da estrada de uma mesquita, uma prova adicional, genuína e incontestável da quintessencial proximidade entre muçulmanos e cristãos, Lisboa e Dara Musti (e se qualquer insignificância, se dita com a entoação certa pode mudar o mundo, este foi o caso em que dei por mim a causar explosões de felicidade por uma coisa tão casual como o concurso do Ministério da Educação que um dia terá colocado a minha mãe “do outro lado do passeio”). Reduzidos a este estado de iluminação ou imbecilidade (quem sou eu para o dizer?), a um «transe da palavra trocada», crescia-nos das agruras a sólida certeza de que éramos também nós a, activa e independentemente, criar e trocar a palavra, direccionar o discurso, embora, e esta distância, compreenda que essa sensação de liberdade fosse talvez apenas o objectivo – mesmo inconsciente – desta gente. Afinal, tratam-se de profissionais da palavra; não estavam ali a brincar.

- Mas mesmo os teus olhos castanho escuros! – exclamou um tipo distintamente simpático e esperto chamado Seni – isso é sangue negro que tu tens. Tu… – gaguejou – tu és como nós. – disse, com uma convicção desarmante, e fechando o punho como que a simbolizar essa carne nuclear comum donde ambos brotáramos (mesmo se eu sou demasiado claro até para um português), e eu, por segundos, acreditei: Tenho sangue negro, pois claro que tenho, e sinto-me orgulhoso disso! E abraçámo-nos e os outros olharam para nós, enternecidos: o branco e o negro enlaçados, momento de celebração do Homem.

Começaram por essa altura a falar da herdade para Mourides que compraram na Califórnia com os donativos de milhões de crentes, da revista do mouridismo, agora publicada em dezenas de países, da celebração do Grand Magal – principal celebração mouride – agora alastrada a Itália, à França, etc., e de como isso lhes dava esperança para o seu grande projecto: o Movimento de Unificação Universal de Deus. E eu e o Mark e o André limitávamo-nos a abanar a cabeça afirmativamente, esquecidos do mouridismo, esquecidos porventura até de que era de Deus que se falava, sequiosos apenas de concordar com tudo, de confluir, de estar em sintonia, de puxar sempre mais longe os Joules da energia empática que pairava na sala (éramos homens de vinte e tal anos, isso é certo, maiores e vacinados também, mas, ainda assim, não é de menosprezar o efeito de um primeiro febrão espiritual).

Subitamente, dei por mim fora da sala, os olhos estremunhados e remelosos, como se tivesse acabado de acordar. Precisava de urinar (é o corpo, como sempre, quem chama a alma à terra). Lá fora, anoitecera sem que eu me tivesse apercebido, e, à medida que me afastava da sala, olhava para ela, e sentia os risos e as palavras excitadas a emanarem da sua porta, como se a claridade luminosa e vocabular fossem apenas partes de uma mesma radiação.

Caminhei um pouco, e comecei por fim a aperceber-me do lugar onde estava: era um espaço amplo, do tamanho de meio campo de futebol, polvilhado de pequenas casas, e atulhado de seguranças a patrulhá-lo. Um deles aproximou-se. Uma besta monstruosa que estava de óculos escuros postos embora estivesse completamente de noite, e de cachecol Dolce & Gabbana bem enrolado no pescoço embora fizessem uns 30 graus.

- Quem és tu?

- Estou aqui hospedado. – respondi, e ele continuou a olhar para mim, mas no escuro, e com a expressão facial tornada incompleta pelos óculos escuros, não lhe percebia a cara – Pelo Suru. Foi ele que nos hospedou. – acrescentei, e o tipo disse:

- Ah, ok. Eu sou segurança. Estou aqui a guardar o sítio porque aqui se fazem coisas muito importantes, e por isso preciso de saber quem anda por aqui… – disse, num francês rudimentar – Sou um ex-mercenário. Estou aqui porque… bem, arrependi-me de certas coisas na minha vida, e vim para aqui seguir a via de Bamba.

- Ah sim? Ok. – disse eu. – Olha, desculpa, tenho que ir. – e apressei-me a voltar para dentro da sala de onde ainda emanava a benfazeja radiação de palavras e de luz, um pouco confundido, a cabeça a latejar. Pela primeira vez, viera-me à mente a dúvida : mas que raio de lugar era aquele? E perguntei-me como teria sido possível que não me tivesse questionado sobre aquele sítio até aí. Que teria acontecido ao meu sentido critico? Qualquer coisa no chá?

Assim que entrei no quarto, encontrei um Suru agitado, que tinha posto o André e o Mark a calçarem-se e a arranjarem-se.

- Ah! Estás ai. Estávamos à tua espera. Depressa! Estás pronto? Temos que ir visitar o «Grande Irmão». Foi ele que vos acolheu aqui!

Dentro de uma salinha contígua à nossa, encontrámos um enorme gordo careca, muito negro, embasbacado perante um ecrã de televisão onde o Lima Duarte ia tendo uma zanga de amor dobrada em francês. Deste negro só se viam os dentes de um sorriso total. Este homem (cujo nome não revelo, mas que é um dos rostos do Mouridismo, reconhecido pelo nome por qualquer senegalês) estendeu-nos umas manápulas de gorila, com um sorriso que lhe abriu todas as feições do rosto, e recebeu-nos como se estivesse à nossa espera, como se nos tivesse endereçado um convite para um encontro meses antes e ao qual nós, agora, nos tivéssemos limitado a comparecer a tempo e horas. Depois, levou uma manápula ao crânio e, enquanto esfregava tranquilamente os pneus de carne enrodilhados na nuca, recontou-nos a história de Sheikh Amadou Bamba: os seus milagres, os 30 anos de exílio e sofrimento, os seus escritos ainda enterrados no meio do oceano, a vez em que rezou no mar, flutuando, depois de o ter sido impedido de fazer a bordo do navio daqueles que o consideravam louco, mil e uma histórias veiculadas por um vozeirão límpido, claro, e hipnotizante. Depois baptizou-nos:

- Tu, Francisco, a partir de agora, és Bamba, aquele que planta a árvore; tu, André, és Nourrin, aquele que protege e defende a árvore, e tu, Mark, és Kara, aquele que distribui os seus frutos.

Obrigou-nos a repetir os nossos novos nomes, perguntou-nos se compreendíamos a importância deste momento nas nossas vidas, e lembro-me de sentir o Mark a derreter-se e a comover-se até às lágrimas, e de me torturar uma hesitação imensa entre me deixar arrepiar, deixar-me levar, ou distanciar-me bruscamente de tudo aquilo (de qualquer forma, mal conseguia acreditar na facilidade com que o meu cepticismo se deixara tão facilmente escorrer pelo ralo do lavatório).

E as manápulas do grande e gordo irmão, ao compasso das suas gargalhadas, continuavam a amassar-nos as cabeças já amolecidas, e foi ai que, subtilmente, o tema de conversa divergiu.

- Portugal abandonou a Guiné e actualmente é o Senegal que toma conta dela. O Senegal tornou-se uma espécie de irmão mais velho. Mas com vocês vamos reforçar essa ajuda. Conheço muito bem o Nino [ainda não tinha sido assassinado] e o tio dele. O Nino fez muito pelo povo guineense e vou falar com o tio dele para que sejam recebidos condignamente na Guiné. Tu, Mark, vais ser embaixador do mouridismo em Londres. Vais ser um homem importante, com muito poder, mas sinto-te preparado para isso. Quanto a vocês os dois – olhou para mim e para o André – estamos a falar de 5, 10, 20 mil euros a cada um, contando comigo, claro – e riu-se. – Vamos agendar um encontro, e vou enviar um carro com cheffeur para vos ir buscar. Vamos vestirmo-nos bem, e vamos conversar propriamente, como gente séria, e desenvolver…. bem… projectos. Eu estou nos diamantes em Angola, nas telecomunicações no Senegal, no peixe na Mauritânia, enfim, corporações! – exclamou, de repente – Vamos desenvolver corporações! Meios de juntar esforços entre as pessoas. – acrescentou, como se procurasse uma forma de encaixar as “corporações” num outro tom qualquer de discurso, mas sem fazer grande esforço para isso – Corporações – repetiu, e calou-se, subitamente distraído e absorto, fitando o vazio, como se essa palavra lhe enchesse o imaginário…

Ouvi esta absurdidade – mais caricatural que um filme – mas não cheguei a perceber se o “Grande Irmão” nos tentava enganar, se entreter, se nos tomara por ricos, ou porque perdia sequer o seu tempo com gentinha como nós; e simplesmente não soube como reagir. Não me senti chocado, senti-me apenas dormente, sem conseguir pensar. Olhei para o André e para Mark: também eles me não pareciam surpreendidos com o rumo que a conversa entretanto tomara.

Na manhã seguinte, acordei, e, quando dei por mim, estava ajoelhado, a receber uma bênção, do filho do Kara, que acabar de chegar a Dara Musti e saíra de um SUV luxuosíssimo, embrulhado num lençol branco Uns minutos depois, finalmente, dei por mim a pensar… 14 milhões de mourides. 4 milhões de pessoas estão, neste momento, aqui ao lado, em peregrinação para chorarem até ao histerismo ao ouvirem a voz de tipos como este. E o “Grande Irmão” aqui a rir desta maneira; e o pior é que tem um sorriso bestial, de quem sabe gozar a vida. Aqui, ri como nenhum outro, e é preciso ter em conta que os africanos riem bem. É demasiada gente… Digam o que disserem, a razão está do lado dele. O “Grande Irmão” é um vencedor. O idealismo é inveja dos ricos, a rectidão moral, âncora identitária de quem não tem nada. A vida não é para ser levada a sério. Talvez eu e o André possamos mesmo fazer algum negócio com este tipo. Deixarmos também nós de levar a vida a sério…

Sai cá para fora, meti a cabeça debaixo de uma torneira, e depois passei a mão pela fronte – que estou eu a pensar?

Nesse momento, o André abordou-me:

- Vamos sair deste sítio muito rápido. – disse.

- Vamos.

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