quarta-feira, 11 de março de 2009

Quatre cent quatre

Peugeut 404 Automatic no Auberge Menate, Nouakchott, Mauritânia


Conhecemos Frank Titus, um engenheiro aeronáutico holandês dos seus 50 e poucos anos, magro, muito alto e desengonçado, num albergue em Nouakchott, capital mauritana. O Frank é um excêntrico, que uniu duas das suas paixões – África e carros clássicos – em vinte anos de viagens absurdas sob o sol da terra mãe da humanidade, não obstante os buracos na estrada, ao volante de Austin Martins descapotáveis, carros funerários americanos, e outras extravagâncias

Quando o conhecemos, o Frank acabara de sair de uma noite de prisão no Senegal por ter sido apanhado sozinho, nu, a dançar à volta de uma fogueira no Parque Nacional senegalês de Niokolo-Koba, história que narrava a uma mesa da esplanada do albergue para uma plateia de viajantes. A fogueira, segundo ele, pretendia apenas evitar que os leões se aproximassem e o pudessem atacar, mas, esclarecia, o verdadeiro problema que levara à sua detenção não fora nem o nudismo nocturno, nem a dança, nem a fogueira no meio do parque nacional, mas sim não possuir a permissão especial que é necessária para permanecer neste mesmo parque mais do que 24 horas seguidas.


- Como é óbvio. – comenta o Jean com ironia. O Jean é um bretão, designer de moda, de cenários de pistas de música trance e de lareiras gótico-futuristas, que está em trânsito para vir trazer um Mercedes e 200g de haxixe para um amigo maliano.

- E a prisão? – pergunta alguém.

Antes de abordar a experiência de encarceramento, o Frank procura inspiração nas estrelas, escancarando as pupilas e fitando o céu, e depois diz:

- A noite na prisão foi talvez das melhores noites da minha vida, e por isso não me arrependo de nada. No meio do desespero, atrás das grades, sozinho, dei por mim a pensar: não posso sair daqui; faça eu o que fizer, estou condenado a permanecer neste antro durante tanto tempo quanto aquele a que for obrigado. E, no instante em que formulei este pensamento, as coisas tornaram-se subitamente claras. Tinha duas opções: sucumbir ao desânimo, entregar-me a um estado de apodrecimento lamentoso, ou ser livre no calabouço e feliz naquele vazio. E garanto-vos que, nesta cela senegalesa, experimentei a mais pura liberdade e felicidade.


Um jovem viajante suíço, visivelmente tocado pela sageza das palavras do Frank, ou apenas pela sua entoação, e visivelmente ansioso para que África lhe encha a boca de fraseologia antológica como esta, diz-lhe, de forma sentida:

- Sabes Frank, isso faz todo o sentido do mundo.


O Frank anui com gravidade, como que validando o comentário às suas próprias palavras. Afinal, trata-se de um mestre espiritual viajante, e a arte da viagem é para ser levada a sério.

- Oh no, man. We´re doomed. – ri-se o Jean, que está ora abismado, ora agarrado à barriga a rir perante as palavras do holandês – Frank is going to create a sect, and already has costumers. – e prossegue – You know. In a metaphysical sense I understand that what this guy [Frank] is trying to say does makes sense, but I prefer to think that it is possible for you to feel integrally happy and free without being in a prison in Senegal. – ri-se, e recolhe os ombros para dentro, como que para ilustrar a pequenez da sua pessoa – But this is just me saying. I´m a strange guy, you know. – e continua a rir.


Depois, a conversa acaba por divergir para outras temáticas e por se fragmentar em vários diálogos, e eu e o André damos por nós a falar com o Frank meio em privado, e ficamos a saber que, lições de vida à parte, o facto é que esta história também teve consequências muito práticas: o resultado foi que o Frank não teve tempo de ir pôr o espectacular Peugeot 404 Automatic de 1972 desta históiria a Banjul, capital da Gâmbia (onde deveria ficar estacionado, por uma quantia muito moderada, num parque de campismo de um amigo, durante oito meses, altura em que deveria voltar para fazer mais fogueiras), porque tinha que estar na Holanda a tempo de ir buscar o filho à escola e para isso não podia perder o avião, que tinha reservado a partir de Nouakchott. Não obstante, na noite em que o conhecemos, o Frank tinha acabado por perder o avião, devido a problemas de papéis, e explicava-nos:


- Mas ainda vou a tempo de ir buscar o meu filho à escola na Segunda-feira com o avião que reservei para Domingo à noite. E este é um gesto que preciso de fazer pelo meu filho… – e, como se o Frank tivesse detectado que este miúdo, aos olhos dos seus interlocutores, por filho que fosse, não justificava tamanha confusão, deixa escapar – e… porque, bem… a minha a ex-mulher não tem muita confiança em mim e no meu papel na educação do meu filho e não me posso dar ao luxo de queimar mais créditos com ela.


- I wouldn´t expect that from you, man. I´m sorry. – diz o Jean, mordaz, e a retirar um gozo terrível desta história, enquanto manda um safanão compincha nas costas do Frank.


E é aqui que nós entramos. Damos por nós e o Frank está a tentar convencer-nos a levar o 404 até Banjul em troca, bem, do mero prazer da viagem (e dos 70L de gasolina armazenados no depósito do carro). A proposta é irrecusável: viagem África adentro neste chaço com 37 anos, a cair de podre, bordeux, lindo, que tem sofás de couro em vez de assentos.

Aceite a proposta, ouvimos, mais tarde, a opinião do Jean:


- Colateral damage de um story guy. – sintetiza ele. Para o Jean, o Frank é um story guy, um desses curiosos tipos de pessoas para quem viver a vida consiste precisamente em passar o tempo a bater África em carros clássicos, do Kilimajaro ao Sara, passando pelas prisões africanas e fazendo fogueiras para afugentar leões esfomeados. – What to say? Life alone can be boring for some people. –, e nós somos mais duas vítimas, uma espécie de meios propagativos voluntários do caos que o Frank gera à sua passagem; colateral damage, ou, talvez, na opinião do Jean, apenas mais duas almas entediadas.


Dois dias volvidos, mesmo antes da partida do Frank, e eu e o André já contamos com duas horas de mecânica elementar, um mapa do motor do carro sinalizando o lugar dos quatro líquidos que se devem repor gradualmente, e uma miríade de apontamentos de soluções para problemas de mecânica simples, e também já acordámos múltiplos cenários futuros para o carro (e se a viatura é roubada, e se empana, e se…) e, apenas uma hora antes de partir para o aeroporto, já com documentos e chave nos bolsos, é que o Frank se lembra de nos dizer:

- Ah, é verdade, é ilegal terem esta viatura na vossa posse na Mauritânia. Neste país só o proprietário pode guiar a viatura.

- Mas Frank, nem o primeiro dos cinco check points até à fronteira conseguiremos passar, quanto mais a própria fronteira! – naquele momento, parece-me desnecessário acrescentar que, ainda por cima, estamos no pior país de toda a costa Ocidental africana para este tipo de trafulhices.

- Be creative. – é tudo o que o Frank responde, com um sorriso amplo e sincero.

- Yeah man, don´t let you get down by this insignificant detail. – e o Jean more definitivamente a rir, como se estivesse há dias à espera deste desenlace.


- Pois. Colateral damage.

Na manhã seguinte expomos, mais por curiosidade (já que entretanto desistimos de levar o carro), o nosso problema a um recepcionista do Auberge Menata, que nos foi dito possuir alguns contactos. Claro que já o devíamos ter previsto antes de abrirmos a boca: cinco horas depois, sem termos pedido a ninguém, o chefe do posto de polícia fronteiriço de Rosso, 203km abaixo de Nouakchott, está, em pessoa, no Auberge Menata a tomar chá connosco. Dois dedos de conversa mais tarde, uma soma aceitável (para ambas as partes) de dinheiro, quinze garrafas de água para gargantas e radiador, porta-bagagens arrumado, e aqui vamos nós, 203km até à fronteira, no nosso recém-adquirido Peugeut 404 Automatic de 1972 (como atesta a nova papelada, comprar carro nunca foi tão fácil).


O chefe da polícia está no lugar do morto a rir-se que nem um perdido – c´est une trés bonne voiture, monsieur, trés bonne – e pede-nos para parar de vez em quando para se exibir, orgulhoso, dentro da viatura, aos amigos que vai encontrando à beira da estrada. O André está no meio, de palito na boca; o sol e o vento entram pelo tecto de abrir, e os nossos rabos sentados naquela poltrona andante, as minhas mãos no volante rijo e com um diâmetro que me abre os braços e o peito, como se manejasse de um camião, e a máquina a fazer um barulho tremendo e extraordinário, como um avião, a irromper estrada fora. Lá fora (como continuará a acontecer nos sucessivos 1500km), toda a gente acena e grita à nossa passagem: Quatre cent quatre! Toubab [branco em wolof] Quatre cent quatre! (iremos descobri-lo, este é o carro do pai de todos os africanos, e o veículo onde todos aprenderam a guiar – o 404, resistentíssimo, foi um carro construído a pensar em África. Tem uma mecânica simples e resistente, e suporta anormalmente bem ao calor). Mas o melhor de tudo é passar os controlos policiais em que somos mandados parar (cinco): ver as caras antipáticas dos gendarmes, polícias e militares, a mandarem-nos encostar à berma, a pedirem-nos os documentos, e a empalidecerem subitamente e a transfigurarem-se em pedidos de desculpa – pardon monsieur, pardon – e gestos cordiais para avançarmos ao se depararem com a cara do seu chefe no lugar do morto. Ciao bello, até à próxima, que gozo formidável, só faltaram os óculos escuros.


Mas o bizarro desta história é que, nos 20 dias seguintes, até Banjul, assistimos à bifurcação da nossa própria viagem numa viagem paralela, à mente e ao passado de um homem chamado Frank Titus, como se fosse impossível guiar o carro do Frank sem seguir as suas pegadas. Por onde quer que passemos, escutamos histórias de anteriores passagens de um tal Frank, invariavelmente descrito como lunático. Nas fronteiras, reconhecendo o carro, vem gente perguntar se somos os filhos dele, mecânicos que passaram horas à volta do Peugeut, e as pessoas que pintaram desenhos na sua chapa; nos parques de campismo, toda a gente se lembra deste homem, e contam-nos histórias às vezes com 15 anos, mas que se gravaram na memória dos próprios pelos seus incríveis labirintos (brilhantemente inventados pelo próprio) no mundo burocrático, geográfico, e humano africano.


Surrealmente, a pergunta parece estar escarrapachada em toda a África: o que motiva este homem a viajar desta forma? Quem é Frank Titus? Tão presente essa questão está em todo o lado, que me esqueço que, nós próprios, estamos a conduzir o seu carro. De vez em quando, vejo-me ao espelho, e a pergunta reflecte-se, intensificada por um homem que parece fazer da viagem caótica vida, e por esta sinergia que, durante estes dias, confundia a nossa história com a deste homem: o que me motiva a mim a estar aqui? Há um bichinho irritante que mo insiste em perguntar. Este chama-se Jean.


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