sábado, 7 de março de 2009

A estrada II


Graças à bondade dos sauditas, a Mauritânia é finalmente atravessada de Norte a Sul por uma estrada de alcatrão. Ficam as impressões pouco aprofundadas de um país visto a 50km/h…
Há mais metades de casas do que casas inteiras, numa variedade de construção notável dentro de uma gama de escolha miserável: há a barraca às riscas feita de tiras de bidões Castrol, a palhota, o casebre feito de blocos de adobe, a tenda colorida inventada com cordas, trapos, plásticos e oleados, e múltiplas combinações destes materiais. E estes «edifícios» estão de tal forma dispersos que não dá para dizer se certas aglomerações mais afectadas pelo magnetismo (muito moderadamente, convém repetir) chegam a formar aldeias ou não, como se uma invisível força de repulsão mantivesse tudo separado. E as árvores isoladas, as cabras solitárias, os carros abandonados e as ossadas de carros que dão à paisagem uma atmosfera de cemitério, obedecem a essa mesma força dispersora, como, afinal, tudo o resto. Nunca tinha visto tanto espaço junto, e talvez por isso as coisas se possam dar este luxo de respirar. Decididamente, estamos do outro lado de Hong-Kong.
Há corvos enormes saltitando dentro de currais de galinhas, no dorso de uma duna, ou agrafados às costas de um burro. Árvores retorcidas e secas. Uma carcaça de um mamífero de grande porte à beira do alcatrão, um alicerce isolado, e depois outro alicerce, e ainda mais outro (invariavelmente composto por quatro ferros espetados e torcidos, com pedaços de betão mal agarrados, a saírem da terra como se fossem garras – que, se quisermos ser muito maus ou apenas fiéis à estatística, devia ser o postal típico ou o ícone da Mauritânia, como elemento mais recorrente da paisagem que é, se excluirmos, claro, as dunas). Há uma cama de ferro em condições aceitáveis deitada em cima da areia que parece flutuar magicamente num oceano castanho; uma pilha de caixotes de fruta que lembra as traseiras de um mercado que não existe, um tronco comprido sem folhas nem ramos, sinuoso, esticado em direcção céu como uma serpente que tivesse saltado e sido carregada no pause. Há filas individuais de pneus que crescem, muito direitas, a partir da estrada, e se perdem no horizonte: marcam estradas na areia em direcção ao vazio, de outra forma inidentificáveis. E depois uma placa de sentido proibido no meio do pó para a qual um pássaro olha, desconcertado. Há um grupo de mulheres, raparigas e meninas (umas oito) à beira estrada de joelhos, a verem-nos passar e a gesticularem, e que não se percebe se nos acenam, se pedem boleia, se riem, se choram, quem são, o que fazem da vida. E a estrada roça a praia, saímos três do carro para urinar, e um volta com uma enorme carapaça de tartaruga, outro com o crânio de um golfinho de rio, o terceiro com coral negro, um leque rendilhado do tamanho de uma caixa torácica. A seguir há um rebanho de cabras que ataca violentamente uma acácia. Ao fundo, um bando de quinze crianças que parecem espantalhos, tão atabalhoadamente enroladas em trapos e farripas de tecidos oleosos e coloridos que estão, que emergem numa algazarra de uma palhota distante e correm.
Tudo isto semeado ao acaso numa planura de sonho, de realidade imaginada, ou de jogo de computador; um lençol calcado de terra, tão colossal e tão bem aplanado que não parece poder pertencer a capricho da natureza e muito menos humano. Maravilhoso.
Aqui, o apocalipse já aconteceu. Explodiu, varreu tudo, e o que sobra é uma gente miserável sob um sol escaldante numa terra árida e estéril a fazer o que pode com bocados de lixo.

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