sexta-feira, 20 de março de 2009

Touba

Nota: Touba, ao fim da tarde, depois do último dia do Grand Magal. Ao fundo, a mesquita, lugar de peregrinação para a comunidade mouride de todo o mundo.

Há aqueles filmes de ficção cientifica onde derivações mais ou menos criativas de «Grandes Irmãos», por meio de ecrãs instalados em todas as esquinas das cidades, megafones nas ruas, emissões televisivas de visionamento obrigatório, permeiam e totalizam cada segundo da vida dos seus habitantes, guiando-lhes todos os passos, criando-lhes a ilusão da existência de uma conduta única para a vida, homogeneizando comportamentos e liberdade de pensamento. São, no entanto, parentes irremediavelmente pobres de realidades que só não parecem igualmente fantásticas porque não estão dentro de uma caixa de raios catódicos.

No Senegal, como em tantos países muçulmanos, há essa asfixia permanente dos minaretes, existem esses aglomerados familiares imensos onde vivem dezenas de pessoas que lêem apenas um livro – uma verdade, uma perspectiva (casas que a um ocidental parecem inevitavelmente pobres de um ponto de vista intelectual), mas, caso do Senegal, e no que diz respeito ao mouridismo – seita islâmica dominante no país – acrescesse-se-lhe o sufoco de um país que pára à mínima ordem de Touba (cidade santa do mouridismo) por qualquer discordância política. Adicione-se-lhe ainda um sistema de transportes (milhares de autocarros com imagens e frases alusivas ao mouridismo que fazem circular a seiva humana do Senegal) completamente dominado por Touba; bem como a imagem do Sheick Ahmadou Bamba (o fundador do Mouridismo, nascido em Touba) que está em tudo o que é parede, ao pescoço e na t-shirt de milhares de homens, em autocolantes colados nos lugares mais improváveis, e, às tantas, também quando fechamos os olhos, também nos nossos sonhos; e mencione-se sobretudo – e foi isto que me impressionou determinantemente (em relação a outros países muçulmanos) – esse choque constante, a cada esquina, com homens de todas as classes, profissões e personalidades, empenhados em repetir-nos uma mesma lavagem cerebral de uma forma tão maquinal e monótona que não há como não mandá-los, de vez em quando, dar uma volta. Pior, qualquer conversa que pretenda atingir substratos mais fundos de profundidade, qualquer tentativa de escavar mais terra na mina da vida, arrisca-se a esbarrar inevitavelmente com um intransponível jazigo Bamba, como se do Universo, da relação entre os homens, da paz, da guerra, do amor, da psicologia humana, não houvesse mais a dizer senão Bamba, Bamba, Bamba.

Chegamos à cidade de Touba, núcleo orwelliano religioso, no rescaldo do Grand Magal – principal peregrinação mouride – e ainda por ali andam uns três milhões de almas, agora a tentar arranjar transportes para se ir embora. A nossa entrada é ridícula e disparatada. Remamos contra aquele mar de gente, parte da qual com retratos do grande Kara ao pescoço (Kara é um petit marabout, e uns dos três principais rostos actuais do mouridismo) e vamos – três pelintras num carro a cair de podre que normalmente recusam pães a 18 cêntimos por saberem possível encontrá-los a 15, e que não percebem nada de mouridimo – directos à grande e luxuosa casa do próprio Kara, bater à sua porta.

Entramos, fazemo-nos convidados, explicamos vir de Dara Musti (da casa de um outro personagem importante a que me refiro na história anterior), mas quem nos recebe mostra-se hesitante. Confiantes, sacamos do nosso trunfo, as nossas fotografias com esse mesmo personagem, em Dara Musti, e, vencida a relutância pela evidência factual, somos autorizados a passar a noite.

Entretanto, enquanto montamos a tenda e nos vamos pondo à vontade no local, compreendemos que a casa está pejada de talibes (aprendizes, estudantes corânicos) e baifals (soldados de Deus, disseminadores da palavra sagrada) que, primeiro a medo, depois, ao perceberem que estivéramos em Dara Musti e que estamos minimamente familiarizados com o Mouridismo (na realidade, estamos já, em parte, apenas a forçar interesse para obter hospitalidade), em ataque cerrado e continuado, vão debitando a lenga-lenga mouride que ainda ontem nos retirara a virgindade espiritual, mas que se transformou entretanto numa xaropada a que respondemos com monossílabos enquanto pensamos noutras coisas e vamos tecendo comentários jocosos pelo canto da boca em português e inglês (em menos de vinte e quatro horas passáramos de maravilhamento febril ao mais puro desdém, numa queda nada menos que meteórica).

Enquanto a doutrina espiritual anti-materialista, de partilha, igualdade e amor, nos vai sendo martelada na cabeça, somos – informa-nos um talibe – convidados a jantar pela segunda mulher do Kara, que se encontra na casa, e se prestou a cozinhar para nós. Somos também convidados a esperar um pouco pelo jantar, e enfiam-nos delicadamente num salão onde dezenas de estudantes corânicos que não fazem mais nada o dia todo senão ler o Corão, vêem, de olhos esbugalhados, o Jet Li a enfiar uns pontapés nuns mauzões. Nesse momento, o talibe Moustapha, um jovem de vinte e poucos anos, energético mas precipitado e errático nas palavras, vem-nos informar que a mulher do Kara espera uma doação, uma pequena contribuição para a causa mouride.

- Temos mesmo que dar? – pergunta o Mark.

- Só se quiserem, é por isso que é uma contribuição. – tranquiliza-nos o jovem talibe – Mas tenham em gentil consideração que a mulher do Kara vos está a preparar o jantar – Não, não há mesmo almoços grátis. Falamos entre nós, e acabamos por sugerir como oferenda uma garrafa de vinho que temos no carro, e que pertencera ao seu proprietário.

- Vinho não… Sabem, na fé muçulmana… – e nós assentimos, como que a dizer que sabemos o que ele vai dizer – Mas podem oferece-la ao Grand talibe, é ele que guia todos os outros talibes nesta casa, e iria gostar muito de recebe-la. – Pelos vistos o Grand talibe está ainda longe de ultrapassar a fase de aprendiz, mas nós, que de qualquer forma não queremos vermo-nos livres da garrafa de vinho porque a queremos guardar para outras núpcias, e perante a situação de termos que oferecer afinal não uma, mas duas contribuições, dizemos (ou melhor, improvisa o André):

- Ah, não, deixa estar. É que este vinho é um vinho muito bom, oferecido por um grande amigo nosso, e não queremos dá-lo assim a qualquer pessoa. Estamos a reservá-lo para uma pessoa muito especial.

- Não, não estão a perceber. – o talibe Moustapha mostra-se levemente ofendido – O Grand talibe é uma pessoa muito especial. Agora não vos pode receber, mas eu encarrego-me de levar a garrafa até ele.

O André retorque com mais uma patranha embrulhada numa cadência gentil e paciente:

- Pois, mas para nós seria uma grande falta de respeito para com o nosso amigo dá-la assim, muito menos sem ser directamente à mão da pessoa… Compreendes? – e esta conversa, intermitentemente, prolongar-se-á até ao final do dia.

Entretanto, o Moustapha explica-nos que, depois do jantar, a mulher do Kara nos quer ver, e que devemos dar-lhe nesse encontro a nossa contribuição. O Mark questiona-o sobre que tipo de contribuição ela espera.

- Qualquer coisa. Vocês é que sabem…

- Mas tipo o quê? – insiste o Mark.

- Bem, dinheiro, bebidas…

Eu e o André discutimos em português. O André quer dar à mulher do Kara uma cadeira retráctil Quechua da Decathlon do carro do Frank (que é a forma de esta brincadeira nos custar o mesmo possível, ou seja: nada), e eu irrito-me com ele e comigo mesmo por não possuir o mesmo sentido de humor e a mesma lata que ele. Finalmente, concordamos em comprar umas bebidas: Coca-Cola e Fanta, que é o que há nas boutiques. Informamos disso o Moustapha, que parte inesperadamente com a informação para voltar dois minutos depois a explicar-nos que a mulher do Kara diz que bebidas tem muitas, e para pensarmos noutra coisa. Entretanto o jantar chega, abundante e saboroso, os nossos estômagos vazios agradecem, enternecem-se, e compreendemos que, afinal de contas, estamos a ser muito bem recebidos, e decidimos oferecer dinheiro: uma nota de 1000CFAs por cada um (quase 2€), a nota mais baixa de todas mas a única que respeita a nossa política orçamental de viagem. Finalmente, somos dirigidos aos aposentos da mulher do Kara. Numa divisão anterior, separada daquela onde ela se encontra por cortinados coloridos de um tecido notoriamente rico e delicado, é-nos explicado que nos devemos ajoelhar e caminhar de gatas até sua Excelência. Em fila indiana, os quatro de gatas (nós três e o talibe Moustapha), cada um com uma nota ranhosa de 1000CFAs dobrada em quatro na não (como nos foi explicado, a nota deve estar dobrada em quatro partes e ser entregue discretamente no momento do aperto de mão) como qualquer espécie de imbecis, ultrapassamos as cortinas, e deparamo-nos com uma sala coberta de tecidos coloridos e brilhantes, tapetes persas, sofás rechonchudos e confortáveis, de longe o lugar mais requintado que irei ver durante toda a minha estadia no Senegal. Ao longe, estendida no chão de perfil, como uma Cleópatra (e, de facto, só falta um egípcio a abanar uma folha de bananeira e um outro a levar-lhe uvas à boca), está uma cavalgadura, uma gorda feia e banhosa, de aspecto entediado e ar de quem não sai daquela posição há vários anos, e que nem sequer deve saber estrelar um ovo (quanto mais ter-nos cozinhado o jantar), embasbacada à frente de um grande plasma, comando empunhado na mão a fazer zapping entre centenas de canais satélite.

- Para mulher de um líder espiritual sufista de milhões de pessoas, cuja tónica da mensagem assenta no anti-materialismo, não está nada mal – comentará o Mark mais tarde, embora o lugar perfeito do comentário pertença aqui, a este momento.

Depois, dizem-se três ou quatro patacoadas, o suficiente para perceber que ela não sabe nem nunca ouviu falar de Portugal, sua Excelência performa uma pequena oração por nós, e abandonamos os seus aposentos. Depois, até nos deitarmos, tudo se resume a um ataque final pela garrafa de vinho.

- Mas esta garrafa, na realidade, já estava prometida a um tipo de outro lugar, e só pensámos oferece-la porque se tratava da mulher do Kara, uma pessoa realmente muito importante. – bate-se o André.

- E de onde é esse tipo? – bate-se o Moustapha.

- De Tkoumb. – responde o André, inventando o nome da terra. Eu olho para ele, que mal se aguenta sem rir.

- E onde é que isso é? – insiste o jovem talibe.

- É ao pé de Mboumbo. – grunhe, inventado um outro nome.

- Mbour? – pergunta o talibe Moustapha.

- Isso, isso, Mbour! – diz o André, quase rebentando a rir (era óbvio que se continuasse a inventar nomes acabaria por dizer um nome que se assemelhasse a qualquer localidade real).

- Pois. Mas porque não compram outra garrafa? – volta à carga o talibe.

- Porque este é um vinho especial. Não vamos conseguir encontrar outro igual em lado nenhum.

É inútil transcrever, a insistência processa-se mais vinte minutos, até que o André se lembra de perguntar:

- Mas e o Grand talibe. Onde está ele agora?

- Ele não está em Touba. – e aqui o jovem Moustapha comete um deslize fatal, esquecendo-se que já nos tinha dado a entender uma outra coisa: que o Grand talibe estava presente, embora não pudesse receber-nos – mas mesmo que esteja muito longe, se ele rezar por vocês, vocês vão sentir o efeito. Dêem-me a garrafa que eu próprio lha entrego. Ou não acreditam em mim? – Neste ponto confirmamos o que já suspeitávamos: o jovem talibe está a mentir e está à horas a insistir porque quer a garrafa de vinho só para ele, o que decide decisivamente a questão. Um pouco depois, perante o reforço da solidez da nossa resistência, deixa-nos finalmente, completamente furioso. Mas não há nada a censurar-lhe. Mesmo um talibe que abandonou a sua vida normal para vir morar para Touba e seguir a via de Sheick Ahmadou Bamba não resiste naturalmente à perspectiva de um bom vinho.

O Senegal é um país multifacetado, profundo, complexo, mistura de variadas etnias e religiões. É por isso mesmo que salta mais à vista a máquina homogeneizadora do mouridismo. Neste contexto, a sua popularidade, a sua unanimidade crescente, talvez se possa apenas explicar por um país que, não sendo miserável como outros, é sempre muito pobre. Como um próprio mouride me verbalizou um dia: no meio de tanta miséria, se não fosse Bamba, o que seria de nós? Só assim me parece ser possível explicar (ainda que simplisticamente) a tremenda popularidade desta e de outras seitas muçulmanas no Senegal. Só assim se explica as crianças que não vão à escola para pedirem pedirem na rua, não para o sustento da família, mas para o Marabout, e se explica que, numa realidade em que quase todos os homens lutam pela vida diariamente, e em que o que há é o que têm no bolso (aqui não há contas-poupança ou dinheiro debaixo do colchão), esses homens possam mesmo assim chegar ao final do dia e ser capazes de comer com metade, e de tornar mais difícil o dia seguinte, entregando o resto ao Marabout.

Sobre a correspondência entre o ideal depositado pelas populações nas altas esferas deste movimento e a forma como estas esferas aplicam esse ideal às suas próprias vidas, esta história, mas sobretudo a anterior (intitulada Dara Musti) pretendem ser ilustração suficiente. Sobre a seriedade e gravidade com que se deve tomar toda a «estática» que interfere nessa correspondência, confesso, não tenho nenhuma ideia, nenhum julgamento, não para este lugar.

2 comentários:

  1. Estive a ler a vossa viagem e nem da para acreditar. Vou continuar a acompanhar este blog frequentemente. Por enquanto fica o abraço e a admiração por esse caminho que cada vez mais se revela com um proposito grande...

    Força nisso pessoal!!!!

    Lince

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  2. Obrigado lince! :)
    Ainda não percebi o propósito mas... sim, obrigado!
    Grande força para o teu caminho também!

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