domingo, 22 de março de 2009

Nouakchott a Banjul

O espaço aparentemente infinito do deserto – espaço tão amplo que é apenas interrompido, a quilómetros de distância, pelas colunas de vapor de água em ascensão, ou pela curvatura da terra, ou ainda por grandes acidentes geológicos como canyons e qualidades bizarras de crateras desmedidas que, longe de enclausurem, só parecem tornar tudo mais colossal –, esse espaço branco e de um brilho ofuscante, como um mar envernizado de sal ao sol, e que, às vezes, sentimos poder aspirar todo, de um só trago, para dentro dos pulmões, vai, quilómetro após quilómetro, escurecendo. Da areia branca, para uma areia amarelada, camada de milho sujo, desta para o ocre, do ocre para o vermelho-barro. Ao mesmo tempo, os arbustos solitários vão aceitando a coabitação com estruturas maiores, que se começam a assemelhar a árvores. Por alturas do vermelho-tijolo, já as árvores se roçam umas nas outras ao sabor das deslocações de ar, tal como os homens – que também andam ao vento e não sabem muito bem o que hão-de fazer – compondo as primeiras multidões. Entre eles, árvores e homens, a terra sarapinta-se progressivamente de erva, até os matagais acabarem por suprimir essa presença antes unânime que era a terra. As estradas por onde se avança, a princípio arrogantes e altivas na sua fácil penetração do vazio, rainhas da paisagem em terra de ausência de coisas, vão murchando os ombros, atacadas por todos os lados por uma vegetação cada vez mais obesa e atrevida, até se esconderem, timidamente, debaixo de túneis de folhagem. Despontam as primeiras chaminés de térmitas e as primeiras árvores de grande porte, os embondeiros: canhões bulbiformes e maciços de gordura celulósica apontados ao céu com as suas espinhas laterais. Depois, chega a vez do verde: primeiro as palmeiras, como florestas de cotonetes espadaúdos ou de palitos cabeludos, depois os cajus e as mangueiras.

A gente multiplicou-se, tal como as coisas onde habitam, e, ladeando a estrada, ao seu comprido espraiam-se agora muros e paredes de tijolo, adobe, cana, ou portas de automóveis encaixadas umas nas outras como peças Lego, em soma, tapumes de espaço, que abafam os matagais, os troncos e a perspectiva, deixando apenas as copas das árvores, feitas mirones, a espreitar para todo o lado. E de repente a estrada afunila-se num viela, encaixada entre os muros traseiros dos edifícios que subtraem o céu, e lhe deixam apenas clarabóias de poucos centímetros para se saber que é de dia, e na viela encolhida, que não é mais que um fiozinho, um gargalo de rua, avançamos cheios de atrito, deixando cair coisas das mãos e dos bolsos, e perdendo dinheiro nos regateios que não temos força para ganhar; vamos arqueando o corpo para escapar aos rabos sólidos de umas mulheres de um metro e oitenta que a andarem ridicularizam e ofendem os nossos copinhos de leite andantes e frágeis, mais a sua genética pobre, e vamos vergando o corpo para escapar às bolhas de muitos decibéis insufladas pelos enormes rectângulos falantes que aqui decoram a entrada dos supermercados e das boutiques, e que nos transformam em plasticina. E a viela desemboca noutra, e depois noutra, e às tantas já só queremos fugir do dédalo confuso de cimento que nos comprime entre tijolos e sulcos de esgotos a céu aberto, e fugir às manadas de negros que andam contra nós. Fixamos a curva interna do cotovelo às narinas para que filtre o odor nauseabundo que ascende dos esgotos, e praticamos sapateado para evitar o passeio esburacado que dá para as fossas por onde escorre esse cataplasma viscoso de dejectos e detritos, onde incubam enxames de mosquitos que daí emergem para nos virem chupar a carne. Ah, mas o sapateado é tão fatigante porque está um calor tão abafado e nos restam apenas corpos liquefeitos e a cútis feita resina, grudada às paredes e aos pretos e aos altifalantes encavalitados.

Encurralados finalmente numa casa de banho pestilenta, dentro da qual o nosso primeiro passo provoca uma explosão bela e harmoniosa de baratas gigantescas do centro para a periferia do buraco negro no centro do chão, como se tivéssemos atirado uma pedra a um charco e observássemos a propagação concêntrica das ondas, concentramo-nos:

A ciência da viagem está no comércio do amor, no poder de inculcar também a moeda de alma, na vassalagem do medo à vontade, e na tolerância da inexistência de mulheres da limpeza.

Decisivamente, não estamos num condomínio fechado. Peito insuflado, corpo feito granito, marche. O objectivo é apenas seguir em frente.

2 comentários:

  1. já se tornou um vício acompanhar o relato desta tua viagem.

    adriana oliveira

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  2. Fico feliz com o feito produzido e espero que o vício se agrave.
    Obrigado pelo incentivo.

    Francisco

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