quinta-feira, 5 de março de 2009

Notas falsas

O Isa, um senegalês alto e magro que nos apanhou em Boujdour e galgou connosco uns 700 quilómetros até à fronteira com a Mauritânia, é daquele tipo de homens que está sempre a tentar explicar aos outros o quão descontraído está. Se cai um objecto insignificante ao chão do carro, ele insiste em dizer:

- Pas de probléme.

Se há uma mosca presa no carro cujo barulho se torna irritante (talvez apenas porque ele lhe dirigiu atenção e já ninguém consegue ignorá-la), podemos perfeitamente sentir crescer a frustração e a ansiedade no Isa, à medida que vai agitando mais os braços, abrindo e fechando janelas, pegando em objectos para a enxotar, e podemos mesmo apanhá-lo a praguejar sozinho contra a mosca, abstraído da nossa presença, tenso, tenso. Mas, se depois de enxotada a mosca, outra pessoa conclui muito naturalmente “raio da mosca.”, o Isa é daquele tipo de pessoas que lhe responde imediatamente:

- Calma. É só uma mosca.

E depois é capaz de acrescentar:

– Ouve a música. Relaxa.

Durante 700 quilómetros a furar o deserto do Sara é assim, ao som da mesma cassete de Alpha Blondy (uma espécie de Bob Marley costa-marfinense) e da oralidade sedativa do Isa, dentro da sua pick up violeta com vidros fumados, imaculada e cintilante.

Dentro do bólide fulgurante, o Isa vai-se dando a conhecer, como quem concede um favor: segundo o próprio, estamos perante um tipo simples, que vê o mundo de forma simples. Para ele, o racismo está condenado a acabar; as diferenças religiosas também, e o exemplo máximo disso é ele mesmo: é muçulmano, reza todos os dias, mas ostenta o nome do filho do Deus cristão e é casado com uma católica. Para o Isa, África vai também desenvolver-se; é apenas uma questão de tempo. O Isa é assim: as suas opiniões são normalmente positivas, e, acima de tudo, são servidas numa embalagem de gargalhadas e boa disposição. O Isa é cool.

Entre outras coisas, o Isa diz-se farto da Europa, e explica-nos que esta terá sido das últimas vezes que lá meteu os pés. Diz que os europeus são enfadonhos e que, sobretudo, deviam deixar de jogar, e deixar para os africanos tudo o que é jogo, porque a verdade é que não sabem jogar:

- E o que é o jogo, Isa?

- O jogo é a música, o futebol, a dança, e fazer amor. Tudo o que implica ritmo. E os toubabs [brancos em wolof] não têm ritmo. Os pretos, sim. – o Isa diz as coisas com uma frontalidade irresistível. Lembra-me o Samuel L. Jackson ou alguns personagens dos filmes do Tarantino.

Depois, explica-nos que, para deixar a Europa, tem um plano infalível de uma empresa de importação de carros por via marítima para o porto de Dakar, que lhe permitirá fazer vida só no Senegal.

- Mas para isso é preciso algum dinheiro, não?

O Isa olha para nós com uma cara que diz: “mas acham mesmo que eu não sei do que é que estou a falar?” Depois, introduz-nos ao contexto da sua presente viagem: a pick up é apenas um dos dois/três veículos em segunda-mão que tem trazido por mês nos últimos seis meses da Europa para o Senegal.

Hoje é Sábado. O Isa apalavrou este carro na Quarta-feira pela internet, viajou Quinta de manhã de Dakar para Madrid, Quinta à tarde fechou negócio com o espanhol, Sexta de madrugada partiu, hoje está aqui, e quer ter o carro vendido Segunda-feira. Ganha entre 4.000 e 6.000€ por viatura. Com um sorriso nikel [cool, traquilo, relaxado, em wolof] conclui:

- Mas já chega. Já fiz o meu pé-de-meia. – e ri-se.

Pela meia-noite, chegamos ao limite do Sara Ocidental (Marrocos), onde pernoitamos, à espera que a fronteira abra, às 09:30 da manhã seguinte. Às 10:30 entramos na no man´s land, e o Alpha Blondy está de novo a descrever uma babilónia pacífica. Já nós, estamos a penetrar numa babilónia de lixo, crateras e sucata. Nem dez metros neste lugar, o carro é abalroado por um bando de árabes criminosos que aproveitam este vazio legal para fazer todo o tipo de negócios obscuros.

O Isa mete os óculos escuros Dolce & Gabbana, trava a pick up, abre a janela, e começa a negociar o câmbio de alguns dos seus Euros para Ouguiya, a moeda mauritana. Os árabes sacam dos telemóveis para darem uso à calculadora respectiva (imagem icónica destas bandas) e, entre apontamentos bem-humorados do Isa, vai-se regateando a taxa de câmbio. Por fim, troca uma nota de 50€ e concluí-se o negócio. Depois, o Isa fecha a janela, engata a primeira, hesita, e não chega a arrancar. Volta a abrir janela:

- Mes amies, on fait encore le business! – exclama, com uma gargalhada tirada a papel químico do Eddie Murphy.

Os árabes voltam a correr, começam a gritar taxas, e espremem-se na janela do 4x4 como carne num passador. Dentro do carro, é ver o emaranhado de mãos, como um insecto gigante, a definhar, esperneando e contorcendo milhares de patas que seguram notas e celulares.

Haja paciência! O Isa agora quer trocar mais 250€. Durante nova eternidade renegoceia-se a taxa de câmbio. Não presto atenção àquilo. Observo apenas o Isa, brilhante como a chapa da 4x4, aprumado na sua camisa de pseudo-veludo violeta, de óculos escuros, pele preta lustrosa, e os dentes brancos como uma banheira limpa a ornamentarem todas as frases. E, no entanto, por vezes o Isa parece-me estrafegado pela camisa, violentado por tanto número e tanta mão, exausto dos últimos três dias. É difícil dizer o que está realmente a pensar.

O câmbio acaba por ser concluído com o mesmo árabe da primeira vez, mas desta, assim que o tipo recebe as notas e que o Isa se prepara para seguir caminho, o primeiro ordena-lhe, muito sério:

- Pára.

-Então? – pergunta o Isa.

O árabe retorque com uma cara carrancuda, aponta-lhe as seis notas de 50€ que recebeu, e diz:

- Este dinheiro não é bom. Quero o meu dinheiro de volta.

Levanta-se um sururu, e as perninhas do insecto espremido na janela agitam-se mais ainda, freneticamente, como as mil patas de uma centopeia, como se estivesse a ser esmagado. Os árabes falam alto, gritam, discutem. Mas o Isa, dando tudo o que tem para conservar o ar mais tranquilo do mundo, diz:

- Nenhum problema, meu, nenhum problema. – mas a verdade é que as suas mãos tremem. A vida não é o Pulp Fiction. – Vamo-nos lá chatear por causa desta merda. Fica tranquilo que eu dou-te o dinheiro de volta. Se achas que o papel não é bom para ti, não há problema. Eu troco-o com outro. Tu é que perdes. Se queres outra taxa de câmbio, também podemos negociar. Eu sou um homem paciente.

- Não te ponhas com conversas. – diz-lhe o árabe – Devolve-me mas é o meu dinheiro.

O Isa não se deixa abater. Ainda com um sorriso estampado nos lábios, desfaz a troca, e os árabes vão-se afastando, muitos deles insultando-nos. Apenas um fica para trás. É jovem, não terá mais do que 25 anos, e guia um Mercedes sem matrícula na no man´s land. Vira-se para o Isa e diz:

- Parece-me que precisas de um guia para chegar ao outro lado. A estrada é perigosa, aqui há minas.

- Quanto é que queres?

- Quinze euros.

- Pá, não te vou dar quinze euros por uma estrada que sei que não tem nada! – diz o Isa.

Não obstante, o miúdo do Mercedes parte, e nós percorremos os três quilómetros seguintes atrás dele. 3km de Alpha Blondy altíssimo, onde brancos e pretos convivem todos de mãos dadas como numa grande roda de miúdos no recreio da pré-primária, mas que neste momento não harmoniza lá muito bem com a série de gestos motores nervosos e aparentemente inverosímeis do Isa: olha para todos os lados, arranca plásticos do tablier do carro, abre livros, apalpa o interior do carro por baixo do volante e dos assentos. Por fim, mete conversa connosco para nos distrair, abre a janela, embrulha os 300€ num papel, e atira-os para o meio do nada (o que explica os seus gestos: procurava um lugar para esconder o dinheiro).

- Meu, estes árabes são paranóicos! – diz-nos, rindo. – Dinheiro falso… Pensam que eu sou estúpido? – e continua a rir-se.

Aproximamo-nos da entrada na Mauritânia, mas, antes de entrarmos no país, o rapaz do Mercedes pára o carro, aproxima-se da nossa pick up, e, à janela, pede de novo quinze euros ao Isa para “chegar a bom porto”.

- Meu, eu já cheguei a bom porto. – diz o Isa com um sorriso arrogante. Parece-me agora genuinamente tranquilo.

O árabe olha com ele com desprezo e com uma cara que diz «tens mesmo a certeza?» e o Isa começa a hesitar, mas é tarde demais. O árabe está já a andar a toda a velocidade a caminho da Mauritânia. Passado o arco que assinala a fronteira, somos mandados encostar por um bisonte de boina enfiada no crânio na diagonal. Até agora, tudo dentro do normal. Mas depois seguem-se duas horas de revista ao carro. As nossas coisas – da roupa interior às necéssaires, de cada bula de cada pacote de medicamentos a cada página de cada livro – e a pick up – do tablier (que é todo desmontado) ao chão do carro (todos os estofos são removidos), do motor (percorrido com pinças longas) aos interstícios entre os faróis –, tudo é minuciosamente verificado.

Entretanto, fez-se meio-dia, o sol está a pique, não comemos nada desde o dia anterior, e estamos a racionar a pouca água que ainda temos. Por nós, passam carros que estavam uns dez lugares na fila atrás de nós na fronteira. Começamos a suspeitar que alguma coisa se passa. Tentamos perguntar ao Isa o que se está a passar, mas apenas conseguimos obter o seguinte:

- Isto é sempre assim. Passo sempre horas aqui. Só querem é dinheiro. – e ri-se – Tudo normal. Pas de probléme. – mas, parece-me a mim, que os risos ornamentadores e o vocabulário paliativo do Isa não disfarçam o desconforto, embora a única coisa visível que o parece estar a apoquentar – ou na qual depositou a sua concentração – seja um serviço de loiça que trás para a mulher, e que os militares insistem em cobiçar, e em abrir e reabrir. Verdade seja dita, ainda não consegui medir exactamente a espessura da carapaça deste senegalês.

Logo a seguir, eu e o André somos chamados pelo bisonte-chefe a uma salinha do posto de controlo. Pedem-nos para nos despirmos até ficarmos em cuecas. Revistam o interior das meias, debaixo das solas dos sapatos, apalpam-nos as virilhas, levantam-me a gola do pólo que tenho vestido, verificam atrás dos nossos cintos das calças ao longo de todo o seu comprimento, e perguntam-nos, pela enésima vez, qual é a nossa ligação ao Isa. Quando saimos da salinha há um miúdo que me vem dizer em segredo:

- Suspeitam de dinheiro falso. – Grande novidade! Infelizmente, não vão a lado nenhum. O dinheiro está diluído algures no meio do resto do lixo da no man´s land.

Frustrados, os bisontes encetaram entretanto nova busca, o que dura mais uma hora. Desfazem-nos as malas uma vez mais, com redobrada minúcia, e nós olhamos para aquela confusão com um desespero resignado. Já só me interessa comer e beber água, o resto é-me indiferente. E, de repente, somos subitamente, e com toda a cordialidade, autorizados a partir, o que nos apanha de surpresa. Tanta coisa e agora desistem assim?

Arrumamos as coisas, aliviados, metemo-nos dentro do carro, e eis que pedem o passaporte ao Iza para podermos seguir caminho. O Isa começa a procurá-lo mas lança imediatamente o aviso:

- Eu tinha o passaporte em cima do tablier e já aqui não está. Desapareceu durante as buscas.

- Monsieur, queira procurar o seu passaporte para o podermos deixar seguir viagem. – diz um militar.

Eu e o André olhamos um para o outro (não nos atrevemos a olhar para o Isa): ambos sabemos quem tem o passaporte.

- Mas eu não tenho. Como é que eu faço? – pergunta o Isa aos militares – Além disso, vocês já viram o meu passaporte…

- Ainda não fizemos nenhum registo da sua entrada, Monsieur Isa. Sem o passaporte não pode entrar na Mauritânia.

- Mas vocês já o viram! – grita o Isa – E eu nem sequer poderia ter saído de Marrocos sem passaporte.

- Desculpe Monsieur, mas não temos nada a ver com Marrocos. Aqui é outro país. Sem passaporte não pode entrar.

O resto é teatro. Durante duas horas, uns quatro ou cinco bisontes diligentes e subitamente simpáticos e atenciosos, juntamente comigo e com o André, encenam uma busca de um objecto que toda a gente sabe que não vai aparecer. Durante esse período, vou tristemente observando o Isa a perder controlo sobre os seus gestos. À sexta busca ao carro, ao sexto pedido para abrir o caixote com o serviço de loiça, o Isa atira com ele ao chão, partindo parte do conteúdo. Mesmo assim, há um polícia-abutre que vem apanhar os copos inteiros no meio dos cacos e que pergunta, desesperantemente, com um sorriso:

- Un cadeaux, pour moi?

E estas horas são liturgicamente pontuadas, como um relógio certo, por um novo militar ou polícia que aparece e nos diz sempre o mesmo, como se se tratasse de uma linha previamente decorada do manual obrigatório do militar fronteiriço:

- Calma. Agora vamos sentar-nos todos em conjunto, relaxar, e pensar tranquilamente no que aconteceu ao passaporte. Ele não pode ter desaparecido assim do nada Monsieur Isa, tem mesmo a certeza que entrou na Mauritânia ainda com o passaporte na mão?

São 4 horas da tarde, continuamos sem comer e sem beber água, e a recorrência infernal destes diálogos absurdos é ainda mais dolorosa que o sol a liquefazer-nos a carne. É um diálogo de uma maldade sem limite, mas é também mais um componente de uma máquina kafkiana implacável feita para dobrar o ferro, para vergar quem quer que seja. E, água mole em pedra dura, tanto dá até que fura: a certa altura, o smooth Isa, personagem caricatural, o traficante mauzão, está a chorar. E eu tenho mesmo pena dele. Pouco depois, acede à única hipótese que lhe apresentam: partir com uma escolta até à capital mauritana, Nouakchott, para ir ao consulado do Senegal.

Pelas 5 da tarde vejo o Isa partir, sem passaporte, dentro de um jipe que vale um dinheirão, com dois militares colossais de cara paralelepipédica mas sem nada na vida (que me cobiçaram até os pólos ranhosos que trazia na mochila – cadeux pour moi?), para o meio do deserto, em direcção a uma cidade que fica a 600km de distância (e, pelo meio, não há outra), sem que exista qualquer registo que este senegalês tenha alguma vez entrado na Mauritânia no dia 9 de Fevereiro de 2009.

Só eu e o André o sabemos. Espero sinceramente que não tenhamos sido os últimos, mas desconfio, sem o dizer levianamente, que assim foi.

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