quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

No man´s land


Franco caiu, a Espanha saiu à pressa das suas colónias e, em 1975, Marrocos disse: o Sara Ocidental é nosso. Mas a Mauritânia disse: não, não, o Sara Ocidental é nosso. E a Argélia disse: desculpem, meus senhores, mas o Sara Ocidental é nosso. Estavam a disputar as toneladas de peixe existentes nos 266.000 km2 de areia do sara ocidental. Também sal, potássio, e, no caso da Argélia, uma oportunidade única de ganhar uma janela para o Atlântico. Reza a história que Marrocos terá pago mais dinheiro a Espanha, e que terá sido assim que o Sara Ocidental se tornou maioritariamente território marroquino. Já a Mauritânia abraçou um terço do seu território.
Entre os territórios do Sara Ocidental (agora Marrocos) e a Mauritânia, as Nações Unidas abriram um corredor de segurança que nós cruzámos na fronteira costeira de Bou L´anouar. Bem-vindos à lua, a Marte, a Júpiter, a um vácuo legislativo, político, geográfico; três quilómetros de areia, calhau, cobertos por um manto de lixo e adornados por cemitérios de carros (ou de esqueletos de carros), a maioria ardidos, esventrados por uma pseudo-estrada muito pior que um caminho de cabras, pior que um trilho para 4x4, uma coisa que não passa de umas poças insignificantes de um alcatrão velho salpicando o chão aqui e ali, e que flutuam entre enormes buracos do tamanho de crateras de granadas ou morteiros.
Surpreendentemente (ou não), nestes 3km inóspitos sem rei nem roque, há homens a fazerem vida, gente que faz da no man´s land o seu dia-a-dia e sustento, e não são capacetes azuis. Um desses homens conduz um Mercedes sem matrícula, que utiliza para andar para trás e para a frente entre as duas fronteiras. Basta passarmos aqui para nos cruzarmos com ele: afinal de contas, não pode ir muito longe porque o carro está confinado a esta terra sem pátria, e, de resto, faz sempre a mesma estrada, já que aqui não há mais nenhuma.
A primeira impressão sobre esta gente poeirenta e sobre este homem que habita Marte na Terra é de assombro. O que há para fazer aqui? Aqui não há governo, não há lei, não há transportes, não há bancos, não há restaurantes, não há casas.
E depois cruzamos a estrada, falamos com ele, e aproveitamos os cinco diferentes controlos policiais das duas fronteiras para o observar. O que há para fazer aqui? A resposta é fácil: tudo. E por isso este homem faz tudo.
É o taxista no sítio certo para os que não têm meios de transporte e estão disponíveis a pagar o que for preciso para escapar ao calor abrasador daqueles três quilómetros, especialmente depois de horas de fila na fronteira a passar polícia, exército, e aduanas de cada uma das fronteiras; é o banqueiro que troca todos os tipos de moeda do mundo a câmbios obviamente despropositados aproveitando desconhecimento e necessidade; é o polícia que detecta notas falsas nestes câmbios (como aconteceu ao senegalês que nos dava boleia); é o cão farejador que pressente passagem de droga, e o justiceiro que denuncia às autoridades aduaneiras dos dois lados estes e outros produtos ocultos; mas é também o amigo que, por uma quantia moderada e bastante negociável, nos sabe ouvir e consegue compreender que todo o tráfico é crime menor perante as dificuldades da vida, escolha forçada num mundo cão. É também o guia iluminado que escolta até porto seguro, com o seu Mercedes, quem se deixa impressionar pela seu atencioso relato de uma estrada pejada de minas, capaz subtrair a vida em terra de ninguém ao viajante desprevenido. E ninguém quer morrer em terra de ninguém, e, aqui, este homem consegue convencer-nos de que é o único capaz de evitá-lo.
Oportunista da ignorância alheia, debicador de desgraças e fraquezas, aproveitador do sistema, parasita, ténia.
Por instantes, enquanto aqueles três quilómetros nos rodearam e permaneceram no nosso horizonte, experimentei, quase comovido, uma violenta nostalgia de ordem, lei e justiça.

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