sábado, 14 de fevereiro de 2009

Guilemim

Em Guilemim, no Sul de Marrocos, às portas do Saara, as estradas começam a afunilar-se. Quase toda a gente que atravessa o deserto passa por aqui e a cidade está cheia da intersecção desses movimentos efémeros. Como um íman, sente-se a atracção do colossal vazio sobre a cidade.
Na rua, nos cafés, nos muitos hotéis e pensões, cruzam-se marroquinos, mauritanos, berberes, Sauris (o povo do sara), e africanos subsaarianos que fazem o caminho inverso ao nosso e que, talvez daqui a umas semanas ou meses, tentarão atravessar o estreito de Gibraltar ou o Mediterrâneo para chegar à Europa. Há também um tipo radicalmente diferente de viajantes, dos quais nós fazemos parte, que fazem aqui um dos últimos abastecimentos antes da viagem: casais norte europeus em colossais camiões todo o terreno (como os do Lisboa-Dakar) que nos fazem sentir pequeninos e ridículos com as nossas mochilas de campismo, caravanas de equipas de filmagem com equipamento fabuloso, mas também uma europeia de bicicleta e uma pele branquíssima que, sozinha, tentará também a sua sorte. Para ela, olhamos e respiramos melhor.
Todas estas pessoas compõem, em Guilemim, um cruzamento bizarro de diferentes rotas para diferentes destinos, produtos e objectivos. Aqui, sem exagero, conspira-se crime, negócio, política e viagem. Regateiam-se carros que se foram buscar às várias máfias que operam no Norte da Mauritânia, processam-se etapas da longa viagem da cocaína, que começou na América do Sul, desembarcou na costa ocidental africana, e passa por aqui antes de chegar à Europa. Negoceiam-se boleias em camiões de fruta e de peixe. Planeiam-se ao pormenor (ou com o pormenor possível, se tivermos em conta que estamos em África) os cerca de 1500km até à fronteira da Mauritânia. Trocam-se informações situação fronteiriça, estradas, visas, câmbios, movimentos militares, etc. Sobretudo, contam-se histórias.
Aceitamos o convite de um velho mauritano envolvido num turbante preto, do qual só vemos os olhos, para nos sentarmos num café, e pedimos um chá. O homem pega numa folha e desenha-nos o mapa da estrada que nos levará daqui até à Mauritânia, e começa a povoar o papel de perigos e o nosso imaginário de calafrios. Dramatiza o risco das boleias: as pessoas transportam frequentemente haxixe e dinheiro falso nos carros e, se somos obrigados a parar num dos inúmeros controlos policiais das estradas do Sul, arriscamo-nos a ganhar uma viagem à prisão marroquina. Enche o mapa de cruzes: as partes do percurso rodeadas de minas. Depois, baixando o tom de voz até ao sussurro e abrindo muito os olhos, narra-nos histórias de boleias mal sucedidas, de raptos, e de ataques da Frente Polisário – rebeldes apoiados pela Argélia (que vê no Saara Ocidental uma forma de ganhar uma janela para o Oceano Atlântico) que lutam pela independência do Sara Ocidental. Todos os tipos possíveis e imaginários de percalços são descritos com uma aura de misticismo, enrolados uns nos outros pela língua do velho até comporem uma enorme planície de areia instável que parece apenas destinada a camiões blindados, e não a dois pontos insignificantes de mochilas às costas. O problema é que escutamos estas histórias, olhamos à nossa volta, para a estranha mistura de etnias e viajantes que nos rodeia, e o seu discurso não nos parece completamente deslocado. As regras aqui mudaram. Este é um dos últimos entrepostos antes do grande deserto e as ruas sofrem essas consequências. Não parecemos mais habitar um Planeta Terra contemporâneo mas uma dessas cidades decadentes e anárquicas do Mad Max. Isto causa-nos uma sensação de vertigem mas também de inevitável atracção: é este poder magnético que se experimenta antes de se entrar no Sara.
Talvez por isso, quando, uns minutos depois, o velho nos explica que a partir de Dakhla o tabaco se torna um valor mais seguro que a moeda, que um volume que aqui podemos comprar por 17€, vale 50€ na Mauritânia, que esse volume pode ser a nossa única oportunidade de conseguir uma boleia entre determinadas cidades, e que dois volumes são um mínimo necessário no kit de sobrevivência da nossa futura viagem, nós acreditamos. Talvez por isso, quando, logo a seguir, nos aparece um tipo a falar italiano e a vender-nos volumes de cigarros contrabandeados American Legend, nós não estranhamos. Ainda assim, uma reminiscência de prudência permite-nos recusar a oferta e, de facto, acabamos por conseguimos encontrar o mesmo volume por 9.5 €, um pouco mais abaixo na mesma rua. Orgulhosos da nossa esperteza, compramos dois volumes de American Legend a quase metade do preço oferecido pelo «italiano», e saímos de Guilemim, sentindo-nos mais seguros com esses 400 cigarros nas mochilas que, imaginamos, serão 400 gestos de «simpatia».
De uma maneira que, agora, me parece óbvia, ao longo dos dias que se seguiram fomos descobrindo que o American Legend é afinal tabaco Argelino de muito baixa qualidade, que ninguém da Mauritânia a Marrocos passando pelo Sara Ocidental o fuma por causa dessa deficit de virtude e que, ainda por cima, se tratam de cigarros contrabandeados a partir da própria Mauritânia, sendo portanto mais baratos nesse país do que em qualquer outro sítio em toda a África.
O poder magnético do sara tirou-nos dos bolsos 20€ (que, aqui, é tanto). Mas, há que dizê-lo, o sucedido tem algo de justo, e é difícil guardar rancor em relação ao velho mauritano: é que pagámos também uma história romântica (e ridícula) de aventura nos quais nós fomos personagens centrais, contada por um tipo com inegável talento para a coisa, nas ruas de uma cidade que, não obstante, constituiu um óptimo palco. Fomos muito bem enganados. De certa forma, cumprimos o nosso papel nesta bizarra peça.

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