domingo, 22 de fevereiro de 2009

El Aaiún (Laâyoune)



O Sara Ocidental é um território enorme, quase três vezes do tamanho de Portugal, mas praticamente desabitado (cerca de 380.000 habitantes, quase todos povoando a principal cidade: El Aaiún (Laâyoune).

El Aaiún é uma ilha, uma cidade encolhida sobre si própria, vergada pela força implacável de enormes condições de isolamento e confinamento mental e geográfico. Primeiro que tudo há o Sara. Está por todo o lado e será porventura mais difícil de atravessar que muitos mares. Depois, há essa falta de homens que galga a pele de cada habitante e que, para além dos seus confins (da pele e da cidade), não deixa nada senão o mutismo de centenas de quilómetros de areia e calhau, no meio dos quais estão semeadas mais quatro ou cinco grandes povoações (o resto são maioritariamente agrupamentos isolados de pescadores e estações de serviço) separadas por estradas intermináveis. Mas talvez a mais dura masmorra desta gente seja a mais subterrânea, aquela que não se vê. Anexado em 75-76 por Marrocos pela força do exército, o Sara Ocidental vive hoje sob o jugo de um país em que a maioria da população não se revê, num clima de permanente tensão entre os seus habitantes e um exército marroquino omnipresente com que inevitavelmente esbarramos a cada esquina. A entrada de jornalistas internacionais é controlada, e a expressão pública de opiniões é abafada e censurada. A população Saauri vive revoltada, conspira constantemente uma guerra impossível de fazer, mas impossível de abandonar, lamenta os seus mártires e os campos de refugiados onde parte da sua gente vive.

Este é o contexto macroscópico de uma estranha passagem por El Aaiún, que nos tinha sido descrita por todo o Marrocos como uma cidade marroquina normal. E, realmente, El Aaiún tem tantas ou mais parabólicas que uma cidade marroquina, está tingida a salmão, tem as mesmas lojas a vender as mesmas coisas, o mesmo pão redondo, os mesmo agrupamentos de homens no café a ver a Liga Espanhola, e, num sentido estético, é até uma cidade mais arranjada e limpa do que a média das cidades marroquinas. Quando, acabados de chegar, pedimos a primeira boleia para o centre ville, essa sensação de não termos mudado de país repete-se: exactamente como tinha acontecido em Agadir, centenas de quilómetros a Norte, este mero pedido de boleia até ao centro acaba num convite para uma estadia em casa do proprietário do veículo, neste caso Ayad, um saauri fluente em castelhano que trabalhou em Espanha durante sete anos. Mas as semelhanças terminam aqui.

Chegamos a casa de Aayad, num bairro novo El Aaiún, e percebemos automaticamente que fomos recebidos por uma família com algumas posses. A seguir, o costume: conhecem-se os numerosos membros do agregado familiar, comemos com os homens do mesmo prato, numa sala à parte, e bebemos chá (e até aqui a única diferença é que o ritual de preparação do chá se esticou para uns bons vinte minutos). Depois, o Ayaad faz um giro de carro connosco, para nos dar a conhecer uma cidade parasitada pelo exército marroquino e por inúmeros jipes das Nações Unidas. Este é um primeiro indício factual de que estamos num lugar diferente, mas é só a partir daqui que essa sensação vai começar a emergir sensorialmente. Pouco depois, juntamo-nos a um pequeno serão com os seus amigos, na garagem onde se costumam encontrar para conversar, ouvir música e relaxar. Reparamos imediatamente que são todos muito simpáticos e enérgicos, talvez até excessivamente. Falam muito e atabalhoadamente connosco e, mesmo considerando que somos estrangeiros, não há dúvidas que nos prestam uma atenção anormal. Não me larga a sensação de que cada gesto meu, cada palavra que articulo, é escrupulosamente seguida por dez pares de olhos. Um exemplo muito simples: dou por mim a seguir com os olhos o movimento de uma formiga branca na parede (nunca tinha visto uma formiga branca!), e tenho subitamente toda a gente a perguntar-me:

- O que é que foi? O que é que foi? – E, quando, percebem, consigo a proeza de pôr dez pessoas a falarem de formigas.

Deitamo-nos tarde, mas, mesmo assim, somos acordados no dia seguinte pelas 8:30 da manhã o que me parece estranho, já que até agora nunca ninguém nos despertou em lado nenhum. Ainda connosco na cama, os olhos estremunhados, entra um arraial de homens e miúdos sala adentro com uma enorme mesa redonda para preparar o pequeno-almoço, que é tomado sob um estranho bombardeamento de olhos sequiosos, perguntas cobiçosas, e frases velozes encavalitadas umas nas outras. De barriga cheia, somos de novo através de toda a cidade: desta, Aayad mostra-nos o edifício da cadeia de televisão, edifícios estatais, o maior café da cidade, a rotunda central, o bairro dos ricos e acabamos por parar num outro café, onde engolimos mais chá e somos introduzidos a novos amigos. Depois leva-nos à zona costeira, onde visitamos a empresa de cimento da família, conhecemos um a um os postes de cimento para electrificação do porto que essa empresa está a construir no porto, visitamos amigos na praia, visitamos o porto de pesca, tiramos fotografias com os pescadores, e sentamo-nos num terceiro café, mais uma hora, a falar com outra gente, a sorver mais chá. Antes de voltarmos para casa ainda temos tempo para ir ao barbeiro com o Aayad, e ficar a vê-lo levar palmadas molhadas de loção perfumada nas bochechas. Às duas horas estamos almoçados e já completamente estoirados de uma manhã preenchida ao milímetro. Tenho a sensação de que ainda não consegui ter um segundo desde que acordei. Decido passar pelas brasas numa sala de estar secundária durante uns dez minutos, e, quando regresso à sala principal, está lá uma tia distante do Aayad que me terá visto espojado no sofá a dormitar e que, nem cinco minutos depois, me está a dizer:

- Tens que ser mais como o teu amigo. Eu gosto mais dele. Aqui no Sara gostamos de pessoas de coração aberto. Não serve de nada seres assim lento e afrouxado, muito menos aqui, por isso tens que mudar isso. Aprende com o teu amigo.

Esforço-me um pouco por ser alegre, e, meia hora depois, está a perguntar-me porque é que não caso com a sua sobrinha: explica-me que só preciso de pelo menos um camelo (não está a brincar), aprender o árabe, e converter-me ao islão. Tenta ensinar-me, à pressão, palavras em árabe, e espanta-se com a minha incapacidade de as decorar a todas (percebe-se que contactou muito pouco ou nada na vida com estrangeiros). A seguir, o Aayad diz-nos:

- Que quieren hacer?

- Aquello que tu quieres.

- No, vosostros deciden.

- Bien. Talvez reposar un poco.

Cinco minutos depois, não sabemos bem como, estamos de novo dentro do seu carro. Agora, leva-nos ao morro onde costuma adorar o crepúsculo e fumar haxixe com os amigos desde miúdo, e segue-se uma terceira esplanada: mais chá, um jogo de cartas, e quinze pessoas que se sentam à nossa volta durante duas horas a rir-se de tudo o que dizemos, a fazer milhares de perguntas, a querer ouvir à força toda que o Sara ocidental é Um, e Marrocos Zero, que o Sara é melhor que Portugal, que viver em El Aaiún é melhor que viver em qualquer outro sítio no mundo; e é escutar incompreensão, desconfiança e protestos bem-dispostos (mas sentidos) se tentamos contrariar levemente estas ideias.

Entretanto são finalmente horas de voltar a casa. Assim que chego, tento ligar meus pais através da internet, mas um irmão do Aayad, com quem não partilhamos nenhuma língua, senta-se ao meu lado a usar o Google translator para traduzir em simultâneo, de árabe para inglês e português, aquilo que lhe vem à cabeça para me dizer. É mesmo muito estranho o facto de ignorar completamente o facto de eu estar a falar ao telefone com a minha mãe. Vai-me interpelando como se isso não estivesse a acontecer. Não consigo concentrar-me nem nos meus pais nem no que ele diz. De qualquer forma, o telefonema é prontamente interrompido pelo toque do sino para jantar. Devorado o Tagin de camelo, sentamo-nos todos (uns sete, entre irmãos, primos, sobrinhos e avós) em frente à televisão (neste país, de resto, parece-me que está tudo sempre a ver TV). O Aayad diz-nos, orgulhoso:

- Aqui em casa temos ligação a quatro satélites. Temos 900 canais!

Depois, para nosso assombro, descreve-nos acuradamente o grafismo de ícones antigos da RTP 1, que conhece apenas daquilo que se poderia denominar de memória-zapping. Ouço aquilo e fico com a certeza inexplicável que a descrição e os 900 canais não são predicados únicos desta casa.

Entretanto, é de novo tempo de ir ter com mais amigos, que estão espojados na rua, nas redondezas. Desta vez estão uns vinte à nossa espera, e somos massacrados durante umas três horas com perguntas e de novo com a mesma insistência no léxico árabe, que somos pressionados a repetir até à exaustão com a nossa pronúncia para eles se rirem. O André, para aliviar a pressão e escapar à milícia das metralhadoras vocabulares, ensaia um truque de magia com uma caneta. Wrong move. Acabámos de dar carta verde ao David Copperfield escondido (e ansioso por se mostrar) dentro de cada um destes saauris. À nossa frente temos agora uns dez pares de mãos a executarem diferentes truques com todo o tipo de objectos – cigarros, caricas, paus de gelado – e cada par associado a uma voz que reclama cegamente atenção e que ignora completamente as outras.

Muito para além do nosso timing, o Aayad diz a toda a gente que são horas de ir dormir porque amanhã trabalha. Isto causa uma desmoralização geral e o nosso alívio, mas lançamos foguetes antes do tempo. Durante mais uma hora, até à 1:30 da manhã, não nos deixam partir enquanto não trocamos contactos, felicitações, grandes abraços, declarações profundas de amizade, confirmação de empatia a roçar a telepatia, e promessas de encontros futuros, telefonemas semanais e viagens a El Aaiún e, somos obrigados a admiti-lo, a garantia de uma forte possibilidade de irmos futuramente para ali viver.

Chegamos a casa, mas temos ainda que tentar transferir as fotografias que entretanto tirámos para o computador da família porque ninguém quer esperar pelo e-mail. Mas entretanto, com o google ali ao lado e a nossa partida eminente, dois ou três amigos do Aayad que entraram connosco em casa, cedem àquilo que me parece ser uma sede de contacto descontrolada. A avalanche comunicacional regressa: damos por nós, não se sabe bem como, a mostrar fotografias dos Açores – querem ver as fotos das vacas mimosas e rirem-se perante a ideia de um mundo em que elas substituem os camelos e se podem encontrar no meio da estrada –, de Lisboa, da Sé, do Mosteiro dos Jerónimos, da Ponte 25 de Abril, do Estádio da Luz, vídeos do voo da águia vitória; e, não sei bem como, esta gente está mesmo interessada nisto tudo: riem-se, fazem mil perguntas, têm uma curiosidade de crianças. Às cinco da manhã conseguimos cair mortos na cama.

Três horas e meia depois somos de novo acordados para um pequeno-almoço comunitário que percebemos ser dedicado à tentativa de persuasão para ficarmos. Pelo que percebemos, já temos até emprego garantido. Só recorrendo a doses maciças de simpatia e delicadeza, elogios à cozinha e à hospitalidade, à família e aos amigos, conseguimos entrar num táxi para Boujdour.

A visita diplomática terminou. O Aayad é um tipo simpático, mas quando nos deixa na praça de táxis nem queremos acreditar. Respiramos ou, melhor, urramos profundamente de alívio. Sinto-me completamente exausto, mas livre como um pássaro. O pequeno pesadelo orwelliano, este aspirar, mamar, sugar da nossa presença, acabou.

A necessidade de comunicação é das mais imperativas necessidades do homem. É por isso que a prisão (o isolamento) é o pior dos castigos. Neste caso para nós, mas sobretudo para eles.

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