segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Välkomnande Agadir

Entrada de Agadir, 18:30. Uma rotunda: em frente, Agadir; para trás, o caminho percorrido pelo camião-cisterna de gás que nos trouxe do interior de Marrocos, de Ouarsasate, e que nos deixou aqui; para a direita segue-se para Sul: Tiznit, Sidi Ifni, Tan Tan, e depois o Sara Ocidental, o nosso destino.
Estamos neste meio de nenhures há vinte minutos e já anoiteceu. Era previsível, devíamos tê-lo adivinhado quando pedimos ao camionista para nos deixar aqui. O que não podíamos ter previsto era que o nosso lado do cruzamento – o que vai para Sul – era o único cuja iluminação da estrada não acenderia. Alguém se esqueceu de carregar no botão, está um fusível fundido, não sabemos, mas anoiteceu e estas luzes apagadas transformam-nos, imagino eu, os corpos em sombras, os polegares estendidos em lâminas, os gorros na cabeça em máscaras, e os nossos esforços para apanhar boleia não resultam em nada. Decidimos ir dormir a Agadir. Voltamos a pé até à rotunda e viramos para a cidade. Falamos com transeuntes que passam nos descampados desolados que rodeiam a rotunda, tentando descobrir onde podemos apanhar um autocarro ou um táxi para o centro, mas estamos com azar: desviam-se, ou não falam francês, ou não estão para se chatear. Sente-se nessa incapacidade de obter uma informação que estamos nas redondezas de uma grande cidade. Continuamos a andar. Por puro acaso, mais à frente, encontramos um Renault com uma matrícula estrangeira encostado à berma. Batemos no vidro e falamos em Inglês, mas o condutor não nos percebe. Tentamos francês, espanhol, italiano, alemão, mas o tipo é marroquino e alterna árabe com uma outra língua estranha que depois vimos a saber ser sueco. Não obstante, conseguimos fazê-lo compreender que queremos ir para Agadir, e ele diz-nos para entrar no carro. Depois vai a viagem toda a repetir:
- You stay at my home, you stay at my home.
- Thanks, we go to a hotel.
- You stay at my home.
- Acabamos por desistir:
- Ok. We stay at your home.
- Välkomnande
– diz sucessivamente, em sueco.
- Shukram. – respondemos, em árabe.
Em casa vivem ele e o irmão mais novo. Para jantar, está também um professor universitário, um intelectual que quer saber as nossas opiniões sobre tudo: geo-política, Obama, guerra no médio oriente, choque de civilizações, crise económica mundial. Vamos respondendo como podemos. Como som de fundo, a Al Jazeera. Bebe-se chá, conversa-se um pouco, muito pouco. Ficamos a saber que o tipo que nos deu boleia emigrou para a Suécia, que tem uma namorada loira, e que é cabeleireiro em Gotemburgo . Depois bebe-se mais chá, e finalmente jantamos. Comemos Tagin de peixe. O irmão mais novo trás uma garrafa de Pepsi da cozinha e começa a servir dois copos.
- Oh, I don´t want, thank you. – diz o André, que nmão gosta de bebidas com gás.
- You don´t? Why not? – pergunta. Parece muito surpreendido
Depois do jantar os dois irmãos convidam-nos a ir dar uma volta.
- Välkomnande. – diz o irmão mais velho, sempre em sueco.
- Shukram.
Entramos no carro: eu, o André, os dois irmãos e o professor, e circulamos pelos subúrbios de Agadir. Passamos ermos, montes de escombros, lugares que parecem campos de batalha. Por fim, o carro pára. O irmão mais novo sai do carro e vimo-lo ir bater a uma porta de latão num edifício meio em ruínas no qual se abre uma pequena portinhola minúscula negra ao nível dos olhos, que não chega a ter largura para conter uma cabeça. Ele volta para o carro, e continuamos.
- O que foste fazer?
- Whisky.
- Whisky?
- Yes. No problem, man. Don´t worry. We take care of everything, man.
O carro continua a atravessar labirintos de ruínas e entulho aos zig-zags, como uma serpente, e paramos numa praça lamacenta e desolada. O irmão mais novo abandona de novo o carro, mergulha na escuridão, e volta com o casaco insuflado. Entra no carro com um sorriso triunfal, e saca de uma garrafa de Bosford´s Dry Gin e outra de Fanta de Laranja. Tira um copo do bolso, e começa a servir shots à vez. Depois, o irmão mais velho mete um techno sueco a um volume incompreensivelmente alto (tão alto que a distorção das colunas torna a música num mero ruído desarticulado e ensurdecedor), e o professor, com uns oculinhos redondos tipo professor Girassol, começa a dançar sozinho. Durante um par de horas, anda-se às voltas por Agadir ao ritmo do gin e do techno.
- Wings, man! – grita, com um sorriso, o irmão mais novo, e que está no lugar do morto. E o carro anda cada vez mais de depressa à medida que os copos de gin saem mais depressa das suas mãos. O volume da música atingiu agora um nível que não permite qualquer tipo de diálogo, não que antes tenhamos falado muito com estas pessoas.
Finalmente, paramos e entramos numa casa nos subúrbios. Lá, juntamo-nos a outros dez marroquinos sentados no chão de uma sala coberta de tapetes. Fuma-se chicha, abrem-se outras bebidas alcoólicas, come-se peixe frito, ouve-se música ocidental e árabe ou marroquina em doses equivalentes, e ilustra-se a diversão, a boa disposição com gritos esporádicos e sonoros em inglês (e não é por estarmos ali): “I´m flying man”, “cool”. Também se usa e abusa da expressão “don´t worry be happy”: serve para quem não quer fumar, para o professor que não quer beber mais um copo, para quem se quer ir embora, para quem mostra não estar especialmente alegre: é argumento contra tudo o que não seja confluência de embriaguez. Eu e o André rimo-nos cumplicemente. Ambos sabemos o que o outro está a ver com os seus olhos: aquela familiar atmosfera vaporosa e fumarenta das salas de jantar da juventude citadina europeia, onde se derretem no sofá corpos bêbados espojados, onde se partilham, durante horas, silêncios zen vegetativos, onde o tempo se queima ociosamente em quantidades industriais, afogado no fumo, na bebida e na musica.
Oferecem-me mais um copo de vinho:
- I don´t want anymore, thanks. I had my share. – digo, entre risos.
- You don´t want, man?! – pergunta-me alguém, estupefacto – Why not? You don´t like? This is good drink, no?
- Välkomnande – grita-nos o emigrante do outro lado da sala.
- Tak. – respondemos.
Depois, metemo-nos mais uma hora de carro. O nosso amigo-välkomnande mandou abaixo uma quantidade considerável de álcool e agora passou a fazer ultrapassagens em traços contínuos, a contornar rotundas fazendo razias aos passeios, e não acerta numa moto por muito, mesmo muito pouco. Eu e o André olhamos um para o outro, mas mais ninguém pareceu ter reparado na coisa. Não obstante, também não se conseguiria o comunicar o sucedido mesmo que se quisesse. O techno sueco continua a castigar-nos os tímpanos.
Levam-nos até uma praia iluminada, na baía de Agadir, um sitio tipo Carcavelos mas com uma marginal atafulhada de discotecas.
- Do you want to go to the disco?
-No thanks, man.
- You don´t want? Why don´t you want? –
poder-se-ia dizer que ele não consegue acreditar nos seus ouvidos. – You don´t want girls? Here we have all you need. Good discos, girls, good music.
Subitamente, o professor, meio embriagado, interrompe-nos:
- Tenho uma coisa importante para vos dizer. Agora vou falar eu: estão a ver aquela montanha ali ao fundo? – trata-se de uma montanha colossal que sobre a baía de Agadir, com holofotes que desenham três palavras de luz em árabe deitadas na sua encosta, palavras tão grandes que creio que poderem ser vistas de um avião – as palavras significam Pátria, Rei, e Deus, os nossos três pilares, meu.
Há um silêncio que dura uns segundos. Estamos todos feitos parvos a olhar para a montanha.
- Välkomnande my friends! – grita o marroquino gotemburguês.
- Shukram.
Metemo-nos de novo no carro. Agora ouve-se hip hop sueco. O professor continua a dançar esporadicamente ao som da distorção sonora, e o único diálogo acontece quando, de vez em quando, o irmão mais novo grita:
- Be happy!! Are you happy? I´m happy.
E o outro irmão:
- Välkomnande
- Tak. Shukram. Thank You.

Acordamos na manhã seguinte todos à mesma hora. Enquanto tomamos o pequeno-almoço, um dos irmãos acende a televisão e ficamos a ver um filme americano onde uns soldados chacinam um exército interminável de árabes que não se sabe de que país são, numa guerra fictícia e absurda.
- Nos filmes americanos os árabes são sempre os bad guys. O que é que acham disto? É idiota, não?
- Euh… - é o que conseguimos obter de resposta.
Vemos mais uma hora de televisão. O André vai vendo as suas sucessivas tentativas de estabelecimento de diálogo goradas pelos gritos dos árabes a morrer.
Estamos num subúrbio de Londres. Falta a Playstation e o poster do Bob Marley, mas devem estar ambos escondidos nalgum lado. Eu e o André somos os parvos que estão a 1500km do mundo dito Ocidental a tentar sair dele sem conseguir. O Mc Donald´s é só a face visível da coisa.

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