segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A estrada


O Sara ocidental é um território vazio que às vezes parece pouco mais que uma estrada numa planície que se estende aos quatro horizontes. E essa estrada é um lugar estranho.

Fizemos a parte final da N1 à boleia com um senegalês magro e eléctrico chamado Iza. É um dos muitos africanos com passaporte europeu que fazem vida apanhando aviões para a Europa para comprar carros e regressarem com eles ao longo da África Ocidental para os vender, muito mais caros, na Mauritânia, Senegal e no Mali. Entrámos na sua pick-up, em Boujdour (Cabo Bojador)… Dahkla, uns 400km mais abaixo, desvia todo o tráfico automóvel, que desaparece por completo. Daqui até à fronteira com a Mauritânia de Bou L´anouar são cerca 350km de estrada estreita e areia, interrompidos por três ou quatro estações de serviço, e chega. Durante quatro horas de viagem não nos cruzamos com nenhum veículo (nem sentido contrário, nem na nossa faixa), nenhuma casa, nenhum arbusto, nenhum bicho, nada. Os quilómetros sucedem-se e o nosso corpo vai-se submergindo sensorialmente num meio novo, diferente de tudo; como se nos mergulhassem à força no mar, ou noutro qualquer espaço com condições físicas radicalmente diversas. O vácuo exterior infiltrasse-nos na mente e já não há nada para dizer. O mundo tornou-se ausente de estímulos. Aqui não há cartazes publicitários ao longo da estrada, ou árvores de formas curiosas para vermos passar e comentar. Viajamos mudos. A mim, pela cabeça, passam-me ideias estéreis, coisas vagas, sem princípio, meio e fim. Todavia, muito de vez em quando, acontece o oposto: recordo situações com uma vivacidade anormal, como num sonho vivo. Interpreto esta variação radical como mais uma componente de uma espécie de síndrome do deserto. É o vazio que nos apaga, mas é também ele a permitir que as coisas emerjam em plena força à sua superfície e tomem conta dele, já que não há lá nada que se lhes oponha.

A única coisa que nos diz que estamos a avançar é a aparição esporádica de bombas de gasolina. Tem sido assim desde Boujdour. Paramos em mais uma para atestarmos o depósito. De dentro de um casebre sai o tipo que trabalha ali (e que, provavelmente, também ali vive) e não consigo perceber se ele tem um aspecto estranhíssimo, se é apenas estranhíssimo encontrar um ser humano neste lugar.

- Como está? – perguntamos.

- Como estou?! Como acham que estou? – retorque, sem meias medidas – Aqui, sou eu e Alá, e mais nada. – grita, e expele uma gargalhada rouca. Levo algum tempo a aperceber-me que o grito e a gargalhada foram extremamente volumosos. Uma vez mais, parece-me ser o deserto a garantir o espaço para esse exagero. Tudo o que fazemos tem talvez que ser decidido e categórico, já que há tanto espaço para preencher.

São precisos mais 30km para a N1 nos oferecer uma nova intersecção no vazio, um ponto de referência, uma nova idiossincrasia para a qual podemos olhar: desta vez, é estação de serviço abandonada, consumida pela ferrugem, mas é impossível não a ficar a ver passar de olhos bem abertos e concentrados. Entretanto, a noite cai. 40 km mais tarde, uma nova estação. Paramos e entramos. Esta é um pouco mais movimentada: há pelo menos mais dois carros parados e seis pessoas dentro da casa da estação, o que torna este lugar no maior ajuntamento de seres humanos que vi nas últimas cinco horas e 300km. Decidimos comer qualquer coisa, mas aqui só chegam produtos empacotados, enlatados, embalados. Empanturramo-nos com uns bolos e umas bolachas.

Saio para tentar urinar lá fora. Assim que atravesso o limiar da aura de luz da estação dou entrada numa escuridão unânime. Em todas as direcções, o mundo é preto. Aproximo-me da entrada da estação, do poste de luz que a anuncia na estrada e que, supostamente, deveria indicar os preços da gasolina e gasóleo, mas os meus olhos ainda não estão habituados ao escuro e apanho um susto quando já estou muito perto do poste. Encostado a ele, jaz, ali por terra, um molho de gente, uma grande família (novo recorde de ajuntamento humano) cheia de mulheres e crianças. Têm imensa bagagem, e uma data de cobertores e edredões dentro de sacos de plástico próprios, daqueles com fecho-éclair. Faz um frio tremendo e não percebo porque não tiram os cobertores dos sacos. Volto para trás, urino noutro sítio, e reentro na estação para me juntar ao Iza e ao André. Lá dentro há um tipo que me pergunta:

- Tens Whisky para vender? Álcool?

- Não.

- O que é que tens para vender?

- O que é que queres?

- Qualquer coisa.

- Qualquer coisa? Tipo o quê?

- O que é que tens para vender? – repete.

Este lugar faz-me arrepios. O melhor é sairmos daqui para fora. Partimos. Um bom bocado depois, no meio de um raio de uns 80 km de desolação plana, está um tipo a andar ao longo da estrada no meio do preto, a fazê-la na mesma direcção que nós. Nem sequer vira as costas para nos ver passar, o que me parece absurdo. Podemos ser o primeiro e último veículo a passar por ele durante horas. Porque raio é que não olha para nós? Dentro do carro, eu, o André e o Iza viramos a cabeça em sintonia à sua passagem, como se ele fosse uma bola de ténis. Passado uma quantidade exagerada de tempo o Iza diz:

- Saiu de casa para ir ao café e não o encontra. – desatamos a rir (como aqui não há nada, podemos pegar numa situação que se passou há muito tempo, comentá-la, ironizá-la, e as pessoas ainda vão saber do que estamos a falar).

Mais à frente, encontramos um triângulo de perigo na estrada. Abrandamos e passamos a 10km/hora por um carro estacionado na berma. Três mulheres marroquinas (pelo menos a julgar pelas roupas) descarregam da mala de trás do carro caixotes de cartão de bananas Chiquita. Não consigo imaginar nenhum argumento verosímil que se adapte ao facto de serem 21h da noite e de estar alguém aqui, neste sítio, a tirar caixotes de um carro para o meio do pó.

Logo a seguir, vindo do nada, um Audi topo de gama com os quatro piscas ligados (o primeiro carro que encontramos) ultrapassa-nos e começa a travar tentando forçar-nos a parar. Estamos tramados, penso. O André olha para mim: também pensa o mesmo; afinal de contas, este tem que ser o melhor sítio do mundo para assaltar um carro. Mas o Senegalês é um bocado avariado (ou já fez esta estrada muitas vezes) e pára a pick-up mesmo ao lado do Audi. Abrem-se ao mesmo tempo os vidros eléctricos das janelas contíguas de ambas as viaturas. Eu estou no lugar do morto e não consigo evitar o pensamento exagerado, de inspiração talvez «hollywoodesca», de que tenho que estar preparado para baixar a cabeça. Aparece-me à frente uma cara enrugada e abrutalhada e o bigode farfalhudo de um árabe horrendo, com um ar tão criminoso como seria de esperar. Estamos decisivamente tramados, penso. Trocamos, cada um de nós, palavras na respectiva língua: árabe, wolof, inglês e francês, mas ninguém se entende. Por fim, o árabe ri-se e diz, em francês:

- Desculpem. Pensava que eram marroquinos. – e o Audi arranca. Absurdo. Então e se fossemos? Sentiu-se sozinho e queria dois dedos de conversa?

Mais adiante, paramos para desentorpecer as pernas. Lá fora, o mais perfeito silêncio presta justa homenagem ao mais cintilante dos céus.

Prosseguimos caminho até avistarmos novamente, ao longe, os quatro piscas de um carro. Vamo-nos aproximando e apercebemo-nos que está estacionado mesmo no meio da estrada. Outra vez o árabe? Diminuímos a velocidade e avizinhamo-nos do carro parado, lentamente. Quando paramos, os quatro piscas apagam-se. Saímos do nosso carro, deixamos os olhos habituarem-se à escuridão, e deparamo-nos com mais uma visão bizarra: a seguir a este automóvel sucede-se uma fila interminável de carros e camiões com as luzes apagadas, como se estivéssemos no meio da hora de ponta do deserto e toda a gente tivesse decidido desligar os carros para poupar gasolina. Depois, aguçamos ainda mais o olhar: afinal há também cobertores e sacos cama ao lado e por cima dos carros. Gente e mais gente a dormir por terra e até em cima dos capots. Chegámos. Estamos na fronteira Mauritânia, que é um país tipo supermercado: só está aberto das 9 às 18. Metemo-nos na caixa da pick-up e preparamo-nos também nós para dormir. A estrada acaba aqui.

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