domingo, 1 de fevereiro de 2009

O vagabundo

Em Ouarzazate (que em árabe quer dizer «sem barulho»), cidade árida e desolada, vive um vagabundo. É negro, tem uma face ampla, quatro ou cinco dentes esverdeados e apodrecidos nas raízes, junto às gengivas, uns olhos pretos enormes, e um corpo magro mas pesado e cansado. Veste sempre um blusão do Real Madrid, e passa os dias sentado numa esquina ventosa e suja com um copo na mão que vai ao outro lado da rua encher de chá ou café. Não tem trabalho nem família. Come a caridade de quem passa.

Uma manhã, vê-nos também a vagabundear do outro lado da estrada, e chama-nos. Atravessamos o asfalto, cumprimentamo-lo, e ele começa a falar imediatamente. Explica-nos que, embora esteja agora reduzido à condição que nós podemos ver, na sua juventude, nos anos 80, foi distinguido como um dos melhores alunos marroquinos e terá sido uma jovem promessa intelectual. Diz que foi traído, que foi reduzido ao que é hoje pelo “sistema”. Ouço isto com algum enfado. Não é uma apresentação que me motive a prosseguir a conversa. Não tenho especial vontade de ficar a ouvir as efabulações de um louco. Contudo, mesmo perante os nossos corpos notoriamente impacientes, ele continua a monologar, e é a voz dele, primeiro que o conteúdo das suas frases, que acaba por nos obrigar a começar a escutá-lo verdadeiramente. Expressa-se num inglês anormalmente distinto, com acento de Inglaterra, num tom grave e compassado. Abrindo-me assim à força coração, destapados os meus ouvidos, descubro que o seu discurso é tudo menos a verborreia desconexa de um demente: este homem escolhe as palavras a dedo, demarca-as bem umas das outras, diverte-se, enquanto fala, a procurar as do seu agrado, a compor o discurso de uma forma ornamentada, como uma tapeçaria: sente-se que possui um imenso prazer no bem falar, e em fazer o outro compreender o que diz. Pela primeira vez, olho para ele com uma estranheza que já não tem nada de desdém: mas o melhor inglês de todo o Marrocos – e os árabes falam muito bem línguas – está mesmo a sair desta boca, deste homem?

Depois, aquilo que todavia ainda me parece um aglomerado de desvarios e fantasias, continua. Descreve-nos uns anos 80 tumultuosos no país, fala-nos da sua adolescência, da energia e rebeldia da juventude, de uma cabeça a fervilhar de ideias e energia, e de uma inevitável rota de colisão contra esse «sistema», palavra com a qual, por enquanto, eu ainda não sei o que pretende dizer. E, subitamente, despeja-nos em cima uma revelação, corolário dessa mistura explosiva de ingredientes, que não consigo decidir se é ou não verdadeira: essa juventude tê-lo-á conduzido ao encarceramento, a sete anos num manicómio, sete anos a comprimidos e injecções, sete anos, nas suas palavras, de sofrimento e tortura, que lhe sugaram o corpo e a juventude. Olhamos para ele: vamos até a um café?

Sentamo-nos numa mesa no mercado e insistimos que coma connosco, mas ele recusa-se. Diz que tem o estômago destruído dos comprimidos e que não pode comer. Todavia, ordenamos três Nubia (prato de feijões). A meio da refeição, o André, apontando para outra mesa, diz qualquer coisa do género: isto é uma das coisas que gosto em Marrocos, as pessoas à volta da mesa a comerem do mesmo prato. Gosto desta partilha, desta outra forma de estar. E o nosso vagabundo, implacável, responde: não te iludas meu amigo. Eles partilham a comida e o prato, mas não se partilham a eles mesmos. Claro que o comentário do André, talvez não ausente de intencionalidade, era tudo o que ele precisava para encarrilar novamente no seu monologar requintado. E nós não nos importamos. Ficamos a ouvi-lo criticar, em linhas gerais, a importância monolítica da família e da religião em Marrocos, e os nossos ouvidos têm dificuldade em acreditar no que ouvem. Afinal de contas, estamos num mercado marroquino numa cidade do interior, no coração da cultura islâmica: neste contexto as palavras deste árabe são, no mínimo, bizarras.
Depois fala do pai: eu via o meu pai a rezar todos os dias, tal como ele viu o pai dele. Mas ele tomou os seus gestos como a verdade, como um macaco imitador, tal como fazem todos à nossa volta, e tal como todo o mundo faz normalmente com a religião. O meu pai nunca se questionou sobre nada. He was na ignorant man. Rezava, comia, e fazia filhos. – ri-se – Ele teve seis mulheres. Morria uma, e arranjava outra. E eu pergunto-vos: é isto que é a vida de um homem? Engravidar seis mulheres? Vocês acham que isto é constituir família? É isto que é amar a própria família, amar o outro? This is easy living. This is a life of an ignorant man. E a nossa religião é que tem a culpa. Sabem como é o «nosso» paraíso? Cada um destes homens que vocês vêem aqui à vossa volta e que reza e faz tudo o que faz porque os pais ignorantes deles também faziam pensa que o paraíso são uma data de mulheres à sua espera. Mulheres e bananas – o vagabundo ri-se – é o que estas pessoas pensam do paraíso. Mulheres e bananas. É esta a imagem deles de um Deus bom, e a profundidade máxima da sua espiritualidade. E também o meu pai era assim. Mulheres e bananas. – e desata-se de novo a rir: uma gargalhada profunda e formidável. Depois, solta outras blasfémias, sempre veiculadas naquele falar lento, pausado, olhos nos olhos, que vai impedindo que as suas palavras duras nos soem raivosas ou vingativas. Diz, contudo, ter inveja dos europeus. Vocês estudam, lêem, e por isso conseguem sair da escravidão da religião. Finalmente, para nossa estupefacção, confessa-se ateu. E é apenas neste momento que eu começo a acreditar que este homem terá mesmo sido enfiado num manicómio, reduzido por essa abstracção chamada “sistema” àquilo que é agora.

Nessa mesma noite, encontramo-lo num internet café. Ao fundo de uma fila de computadores, lá está esse negro maltrapilho, de cabelo desgrenhado e uma barba profusa e mal cuidada, descalço, os olhos muito abertos tensos e injectados num ecrã. E esta imagem cola-se-me à retina. Este homem está absurdamente deslocado de tudo: o seu corpo e roupas desfasados do internet café, as suas ideias do seu país, o seu acento polido de cavalheiro inglês da sua barba e tom de pele, os seus 36 anos do seu corpo fraco e doente, o próprio vigor da voz não parece pertencer a esse mesmo corpo, e a sua inteligência é um inquilino equivocado nessa esquina ventosa onde vive. Que outras surpresas nos reservará este homem?

Entramos no internet café e dão-nos um computador ao lado dele. Eu olho para o seu ecrã e vejo-o a falar num programa de chat. Com quem estás a falar, com a tua irmã? – pergunto-lhe. Não, com o Ziggy Marley. O Ziggy Marley? O filho do Bob Marley? Sim. É um teimoso. Zangamo-nos. Não concordamos em quase nada sobre religião.

No dia seguinte, perguntamos a alguém sobre o que aconteceu a este homem, como chegou até à sua condição, como se tornou num vagabundo. A resposta: Inveja. Sua? Não, dos outros.
«Inveja» não é a resposta que eu estava à espera. Porém, é-me mais que suficiente para, quando agora passo pelo vagabundo de Ouarzazate, na sua esquina poeirenta, ter a certeza que passo por um dos “mais brilhantes alunos de Marrocos”.

Sem comentários:

Enviar um comentário