domingo, 21 de junho de 2009

Bissau. 1ª declinação

Para qualquer português, creio que a primeira impressão infligida por Bissau é geradora de uma profunda nostalgia. Mesmo para quem tenha nascido não só depois do fim do ultramar como para quem tenha crescido contemporaneamente à operação de lobotomia social que vai eficazmente extraindo as ex-colónias do dia-a-dia nacional. O facto é que é difícil chegar a Bissau pela primeira vez e sentir que nunca lá se tinha estado.

Mas não é a presença das barraquinhas de cerveja Sagres, dos sumos Compal, da papelaria Benfica, de uma zona chamada Alvalade ou o facto de se conseguir comprar um pastel de nata em plena costa ocidental africana que torna Bissau familiar. Não é sequer o facto de, esporadicamente, ouvirmos o português, ou aquilo que a princípio inevitavelmente parece uma distorção a roçar o grotesco e o criminoso do nosso vocabulário.

Ao novo explorador, Bissau estimula uma nostalgia muito mais difusa, desamparada e intensa que, precisamente por ser alicerçada em bases tão pantanosas, se ignora ser possível.

Quando chega, um português nascido nos anos 80 ainda não o sabe, não o suspeita, mas não tarda a compreender que Bissau tinha estado sempre presente na sua vida. São talvez – especulo – memórias partilhadas entre ex-combatentes numa mesa contígua de um café às quais prestámos atenção sem o sabermos, fotografias nos livros de História nas quais mergulhámos para escapar à voz monocórdica de um professor, postais velhos a preto e branco de um tio-avô que se aventurou pelos trópicos. É, muito, a arquitectura. Os edifícios na Bissau velha, que se propagam na margem Norte ao longo de um Tejo tropical, são meros cambiantes, variações de coisas que vi em Lisboa. As vivendas lembram Benfica, a zona das embaixadas o Restelo, a Igreja não teria destoado na Avenida de Roma. Do outro lado do rio, por vezes, fico à espera de entrever o Cristo Rei. Mas isto é ainda uma comparação superficial. Quase sempre, as semelhanças são muito mais viscerais, microscópicas e indetectáveis. Estão grudadas a coisas que não sabemos ou não conhecemos bem: estão nas formas dos degraus e das escadas, nos motivos geométricos que adornam os muros das casas, nos postes da electricidade (se calhar em pormenores tão absurdos inimagináveis como numa espécie distância padrão comum entre os candeeiros públicos), na disposição dos canteiros.

Frequentemente, nos sonhos, um amigo ou familiar visita-nos num outro corpo e com um rosto diferente do seu rosto habitual. Mas reconhecemo-lo. O Diabo também costuma transformar a sua aparência. Mas sabemos que é ele. Nestes casos, como em todos os outros em que as entidades se assemelham de forma alquímica, em que partilham a alma mas não a forma, não conseguimos explicar porquê, mas sabemos sempre reconhece-las. Bissau é assim: nunca a vimos mas conhecemo-la de algum lado.

Ou, para por as coisas de outra forma, a Lisboa que senti em Bissau foi uma das infinitas versões possíveis de Lisboa. E a nostalgia de que falo advém precisamente dessa sensação arrepiante de se estar de visita a um universo paralelo ou a uma encarnação.

Depois, claro, há o outro lado. Os sincretismos são sempre palcos de guerra. As roseiras dos canteiros convivem com trepadeiras cefalópodes, nas esquinas, umas pretas orgulhosas da sua gordura assam caju em vez de castanha, os pombos e os pardais deram lugar a corvos e abutres, a cor parece borbulhar das sarjetas, gorgolejar das fissuras das paredes, e tudo querer infectar: as roupas, as fachadas, as plantas.

Um terceiro lado está ligado a estes dois, faz parte da mesma declinação. É um lado igualmente místico. É que em Bissau há fantasmas. E ainda gemem, teimosos, as promessas de um projecto de sincretismo entretanto gorado. Não poderia ser de outra maneira.

No primeiro andar da pensão colonial, agora fechada, um homem de fraque ainda toca um bolero no piano de cauda. Lá dentro ainda dança um casal: um branco com brilhantina no cabelo e uma negra de vestido leve e florido. Ainda há um preto aprumado e cheiroso a servir mojitos ao balcão. Nas estradas esburacadas da cidade ainda circulam automóveis antigos. No Palácio da República, cravado de balas e escavacado por granadas, ainda se discute a exportação do amendoim. Bissau ainda é essa declinação de Lisboa dos anos 50, capital do Império, que eu nunca vi, mas da qual, não se sabe como, julgo lembrar-me muito bem.



Um aparte:

Escrever sobre a Guiné-Bissau é-me muito difícil. A culpa é do meu país, que nunca me disse categoricamente que este lugar existia. Talvez por isso essa nostalgia debilmente cimentada em murmúrios, segredos e imagens embaciadas.

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