segunda-feira, 8 de junho de 2009

Descrição de uma ilha I

A zona composta pelas aldeias de Affignam, Botem e Gila Páu, e suas florestas, por onde me perdi uns dias, ficar-me-á para sempre gravada na memória. Tenho-a como que reservada, mentalmente anotada, para o dia em que decidir renegar de vez a civilização e rasgar o meu Curriculum Vitae.

Fica numa grande baía isolada da Casamance (região Sul do Senegal) à qual se acede normalmente de barco (não há carros nestas aldeias) a partir de Ziguinchor, capital regional. 500CFAs, todos os dias às 15:30 da tarde, com direito a 1h30 de passeio num labirinto de mangais e de lodo onde as garças enfiam as suas patas delicadas, finas como antenas de rádio, e uns peixes gigantes mandam uns saltos fenomenais.

Ao desembarcar em Affignam não vemos aldeia nenhuma; existe apenas floresta. Embora a aldeia conte poucos habitantes, estende-se ao longo de uns 4km de diâmetro. Tem que se andar muito para a apreender, e para perceber que as casas estão por todo o lado, mas escondidas atrás das árvores. Se os elfos existissem, viveriam assim.

Quando a conseguimos entrever na folhagem, Affignam é uma aldeia africana proverbial: tectos de palha, paredes de um tipo de colmo (aqui chamam-lhe bancu), homens a subir às palmeiras para extrair vinho de palma, mulheres a escolher o arroz nuns cestos quase planos ou a bater o que quer que seja nos almofarizes gigantes.

Estamos entre os djola, etnia de pele mais clara e traços mais doces e redondos que os wolof (até aqui dominantes) e, num sentido estranho, mais africana (o wolof típico, alto e espadaúdo, de nariz aquilino e traços finos, parece mais um sueco ou um dinamarquês mergulhado num balde de tinta preta). Os djola são maioritariamente cristãos, encontram-se dispersos pelo Sul do Senegal, norte da Guiné-Bissau e Gâmbia, e, mencionem-se, em abono da verdade, três impressões evidentes que não querem dizer realmente nada: possuem temas de conversa para além da religião (refrescante); são menos educados que os muçulmanos, são menos auto-controlados e comedidos nos comportamentos (na forma de rir, no volume da voz, nas coisas que dizem, etc.) que os muçulmanos/wolof.

Aqui há tudo o que é necessário para se viver (mas quase nada do que nós consideramos essencial): basta pegar numa pequena rede ou numa cana, andar umas centenas de metros, e regressa-se com peixe fresco para o jantar. Se levarmos uma catana podemo-nos meter numa canoa e cortar os pés dos mangais, que trazem ostras agarradas. Mergulhando a mão no lodo, apanha-se outro tipo de bivalves. O peixe, ou então a galinha, o porco e a cabra, que andam à solta por todo o lado, constituem as variações de uma alimentação absolutamente dominada pelo arroz, cultivado nas redondezas. De resto, a aldeia é, em termos alimentares, praticamente auto-suficiente. Nas horas cresce de tudo um pouco: mandioca, tomates, cenouras, couve, amendoins, etc.. Um curto passeio na floresta com um local, e ficamos a conhecer todo um novo espectro de frutos e sabores que é impossível processar, com consistências, cores e composições completamente novas.

Talvez porque apesar de a variedade ser muita, ser sempre a mesma (aqui já não chegam pêras da China ou Vinho do Porto), ou porque esta gente ainda não adquiriu os pruridos da civilização, a dieta local está dilatada ao máximo disponível. Tudo o que é comestível se come. Isto inclui ratazanas do mato (que as crianças caçam enfiando folhas de palmeira a arder nos buracos das tocas para as fazer sair, esperando-as nos buracos opostos com paus e gritos de excitação), formigas, macacos (várias espécies), cães e gatos.

Depois de Affignam, cruzo a floresta por um caminho principal de terra batida. A dimensão de espaço é extraordinária, ainda que se trate de uma planície. É dada pelo interminável troço vermelho, que rasga o verde como uma vara e se estende a perder de vista, pelo céu – majestoso, onde até as nuvens me parecem monstruosas. É dada sobretudo pela floresta, que é esparsa e só cobre o horizonte depois de longa distância, povoada pelas barrigas dilatadas dos embondeiros, e pelos formagiers (este é o nome local da árvore, que não consigo encontrar em português), colunas com trezentos e quatrocentos anos de vinte, trinta metros de altura, as maiores massas vivas que vi até hoje, que arrepiam e nos reduzem à nossa devida insignificância.

Um velho diz-me o seguinte:

- Nasci nesta casa no ano de 1926 e este formagier já aqui estava, nem maior nem mais pequeno.

O silêncio na floresta é quase total, tão grande que as pessoas, quando se cruzam no caminho, continuam a andar e fazem toda a conversa de costas uma para a outra, cada vez mais distantes. Tirando o barulho dos pássaros, o agitar da vegetação a uma rajada de ar esporádica, os miúdos de aspecto selvagem e alegre que me gritam alulum, alulum, [branco] à minha passagem, ou o bramir grave de uma vaca que – como qualquer som – ecoa por toda a floresta e, devido à sensação de espaço, parece espalhar-se pelos quatro cantos do planeta, não se ouve mais nada.

Uma hora de caminho mais tarde chego a Botem. À entrada da aldeia, oito ou nove homens enlameados que estão a escavar um enorme buraco na terra fazem uma pausa para beber chá à sombra de uma mangueira. Estão a fazer tijolos de colmo para uma casa que estão a construir a cinco metros de distância (a isto se chama aproveitamento de recursos locais). Por curiosidade, pergunto quanto custa construir uma casa aqui. Respondem-me que uma casa grande, oito divisões e coisa para durar uns cinquenta anos, fica entre 160 e 200 mil CFAs (200-300€) (dependendo da quantidade de homens a construir a casa).

- E o terreno? – pergunto.

- O terreno? Qual terreno? – ri-se – Já olhaste à tua volta? Isso é coisa que para aí não falta. Eu dou-te um terreno. – diz-me um deles.

Prossigo caminho, mas apercebo-me dos meus males: está demasiado calor, tenho fome e estou cansado de andar. Calha bem estar a entrar na aldeia, pode ser que alguém me dê comida e repouso, penso. Sem a mínima surpresa, nem dez minutos depois, e sem ter pedido nada a ninguém, tenho a mão enfiada num enorme prato de arroz num salão imenso onde não há nada excepto cadeiras e um poster do Ratzinger numa parede.

Uma negra lindíssima aproxima-se, senta-se connosco a comer, e diz-me, com um sorriso malicioso e os olhos brilhantes:

- Vais-me levar contigo para a Europa.

Não consigo articular palavra. O arroz escalda-me a mão e deixo-o cair no chão. Envolto numa nuvem de risos escarnecedores, olho para a ela e penso: não, se calhar fico já aqui.

Não fiquei, mas tivesse ficado e já não tinha mais chatices.

6 comentários:

  1. Obrigado por este texto, informativo e como sempre óptimo de se ler.

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  2. no dia em que rasgar o meu Curriculum Vitae peço-te indicações. como sempre, leio viciada tudo o que escreves.

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  3. Obrigada pelas palavras Ricardo. Obrigado por me seguires. Para mim é inestimável e inédito que um completo desconhecido me leia. Adapto o que alguém dizia no outro dia a propósito de realizar filmes: já sabia que gosto de escrever, assim fico a saber que há também quem gosta que eu escreva.

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  4. O CV é difícil de rasgar. É feito de um tipo de papel muito espesso, parece contraplacado. Mas cá estarei (obviamente de forma imparcial) para dar uma mão na tesoura se um dia te vier a vontade aos dedos.
    Um abraço

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  5. Completo desconhecido, olha que até me insultas ó Chico! Vá desta passa e não levo a mal, pois até percebo que não tenhas percebido quem sou à primeira! Lá tenho que lançar a alcunha... daqui fala o Richie de benfica, Pah!

    Reiterando as tuas palavras, o que dizes continua a se aplicar. Sim, gosto que escrevas e sim gosto de ler o que escreves, consigo visualizar de outra maneira o que se passa, por vos conhecer e aproveito assim para matar de certo modo virtual um desejo que tenho em mim e que vocês concretizam a cada dia de modo real, ir a África.

    Um grande abraço.

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  6. Ritchie!
    Tu (justamente) insultado e eu envergonhado. Pá, não fazia a mínima ideia que eras tu, e para ser honesto, a culpa é dos apelidos. Parece mentira, mas conhecemo-nos há tanto tempo e um gajo não sabe os apelidos dos amigos (mais uma coisa que aqui seria impossível)...
    Bem, ainda que a ideia do desconhecido fosse simpática, ainda fico mais contente por seres tu.
    Ah, e a despropósito, eu e o Salgado já não estamos juntos há uns bons tempos (ele ficou com a Francesca). Tenho estado a viajar by my self. Entretanto o plano era reunirmo-nos a 22 deste mês mas devo voltar para Lisboa para começar a preparar o ano. Mas o Nuno e o Pedro (um amigo meu) parece que vão ter com ele este final de mês num espírito mais de férias de Verão, de viajarem uns dois meses (até Setembro) até à Costa do Marfim. Se te puderes e te apetecer matar o desejo "real" tens aí uma boa oportunidade.
    Um abraço

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