quarta-feira, 24 de junho de 2009

Bissau. 2ª declinação

Homem em Bissau Fotografia de Francesca Fedi


I.

Um elemento unânime de todos os lugares por onde passámos até agora foi essa falta de controlo sobre os dias, que, de rédeas soltas, galopavam para longe de nós próprios. De Ouarsasate a Banjul, de Laayoune a Palmarin, o tempo foi sempre um fluxo de vida que nos foi extraído, manipulado por terceiros a seu bel-prazer. Um sim a um convite para um passeio termina cinco horas depois na enésima dose de chá verde na casa de um camponês desdentado, uma conversa iniciada ao pequeno-almoço ainda não foi rematada com um aperto de mão ao jantar. E depois essa solicitação constante de tudo e de todos, e nós, orgulhosos e exaustos ao mesmo tempo, feitos centros de mesa de nações inteiras.

E, inesperadamente, chegamos à Guiné e estranham-se as ruas embaciadas, estranham-se as pessoas apartadas de nós por uma força centrípeta a que nos tínhamos desabituado. Não se percebe o que se passa. Não se percebe logo, pelo menos. Lentamente, damos por nós a recuperar hábitos antigos: repescar a agenda diária, consagrar períodos matinais e nocturnos, pré-adormecimento, a reflexões de delineação temporal, de construção de itinerários. Impera de novo decidir o que fazer. De repente, também há tempo para ler, para pensar, para escrever (e há muito menos para escrever porque há demasiado tempo para o fazer). Vamos decifrando o fenómeno: é que já não nos chamam para jantar, para ir dormir a casa deles, para irmos submeter a alma à análise de um curandeiro, para passear, para ir dar uma prenda monetária a uma tia que acabou de dar à luz, para ir ver uma circuncisão comunitária de iniciação dos rapazes de uma aldeia no Sábado seguinte. E pensar nesses 5.000km anteriores que me tinham deixado a impressão de uma lei geral africana do magnetismo humano…

Eternamente insatisfeito, dou por mim a sentir saudades da tagarelice marroquina, desses mauritanos fala-barato, dos melgas gambianos, da asfixia social senegalesa.

Não julgo que fale ao acaso, que esteja a fantasiar uma psique comunitária, mesmo tendo tão pouco tempo de Guiné-Bissau, quando digo que esta é uma África hiper-paquidérmica. É certo, as outras também o são, e estou a mentir se não admitir que julguei ter encontrado nas esteiras que cobrem os alpendres das casas e a sombras das árvores de toda costa ocidental africana, de Rabat a Banjul, sucessivos arquétipos do ócio, habitados por legiões de preguiçosos, inúteis, mandriões, indolentes. Mas a Guiné surpreendeu-me. À modorra junta indiferença, compenetração individual.

Num certo sentido psicológico, a Guiné é uma África mais europeia, tímida, retraída, ou, se quisermos, precisamente mais portuguesa, discreta, ou talvez, como elegantemente taxaria o José Gil, com medo de existir. Investigam-nos primeiro, olham-nos de longe, e às vezes não nos chegam mesmo a dizer nada. Um branco pode sentar-se uma tarde inteira no degrau de uma boutique no cruzamento principal de uma vila ou aldeia sem que ninguém venha falar com ele: cenário inconcebível no Senegal, na Gâmbia, na Mauritânia.

Calcorreiam-se as ruas mas a gente é esquiva, escorrega-nos das mãos, responde-nos com monossílabos, parece preferir gozar a sua apatia individualmente. Hedonistas da letargia, é o que eles são. Estão sentados pela terra e pelos degraus com os seus saquinhos de sumo de “cabaceira” (baobá), “bissap” e “veludo” enfiados na boca, estão a chupá-los, embalados pelo vai e vem dos próprios maxilares e bochechas, a fitarem o vazio e as cabras que estão por todo o lado, e não nos ligam nenhuma. Sinto-me sozinho. Afinal de contas, os outros países tinham-me criado a ilusão de que esse simples movimento – caminhar – era suficiente para fazer amigos. Sinto-me sozinho, mas sinto-me em casa.

- Parece Lisboa. – diz uma espanhola que conhece ambos os aglomerados de torpor melancólico.

É isso mesmo. Sem dúvida alguma, andou por aqui muito tempo gente que eu conheço muito bem. E agora estão todos contaminados, infectados, prostrados desse mal.


II.

O país não tem empresas próprias, o mercado do Bandim em Bissau – o principal mercado do país – foi sendo crescentemente dominado por outros africanos, mais espevitados, minimamente maquiavélicos, com espírito de negócio (e como sobreviver em África sem este traço de personalidade?) e agora está absolutamente entregue a oriundos da Conacry, do Senegal, da Libéria, do Mali. A arte de regatear, aqui, quase desapareceu. As coisas custam o que custam, mesmo sem preços tabelados. Pela primeira vez em África, mesmo sendo branco, se me esqueço do troco numa boutique (guineense), o empregado vem atrás de mim para o devolver. Assim não dá.

Este país é inédito. Vive aqui muito boa gente. Mas não parece talhado para o desenvolvimento.

2 comentários:

  1. Ou então o desenvolvimento como o concebemos, não parece talhado para a Guiné-Bissau

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  2. Ou então é isso. Mas a questão é: terão eles hipótese de escolha? O mundo está muito pequenino. Mais do que nunca jogamos todos no mesmo tabuleiro e o movimento de uma insignificante peça num lado afecta o outro. Se querem um desenvolvimento alternativo estão rapidamente a precisar de ideólogos, lideres honestos e carismáticos, che guevaras, gente com ideias e capacidade de mobilização. Bem, talvez o laboratório político que é hoje a América Latina esteja a dar o exemplo de que isso é possível. Mas África pareceu-me sempre demasiado longe disso.

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