quarta-feira, 3 de junho de 2009

«Senegalários»

De vez em quando, na Casamance, choco com um casal composto por uma francesa fissurada pela idade, e o seu marido, um negro musculado de chapéu em forma de fungo a la Bob Marley. Ela é uma dessas entusiastas dos panos coloridos, dos instrumentos musicais típicos, uma dessas pessoas que usa e abusa da palavra africanité” (africanidade) como se ela estivesse a abarrotar de significado. Não obstante, faz um trabalho notável: tem andado por estas bandas sozinha (pelo menos até ter chocado com o Sr. Músculos) há meses a viver em casas «tradicionais», como ela lhes chama, nas aldeias mais recônditas, com as famílias locais, submetendo-se aos seus ritmos, hábitos, horários, afazeres.

O objectivo é estabelecer os alicerces do seu inovador projecto: Rose, de nome, quer criar uma espécie de rede de turismo etnográfico onde se pretende que o turista, em vez de pagar um hotel, se hospede nessas casas «tradicionais», sujeito às suas condições (ou à falta delas) e aos hábitos de cada família (a regra imposta pelo projecto às famílias é de que elas não alterem um milímetro do seu dia-a-dia pela presença de um turista). Neste negócio, Rose limitar-se-á a coordenar a rede de casas e aldeias (no Senegal e Mali), servirá de intermediária entre os turistas e essa rede, e gerirá um website onde, por exemplo, se poderão encontrar fotografias com as famílias nativas expondo um produto emblemático de cada uma das aldeias (o projecto arranca com cerca de 30 aldeias): óleo de palma, caju, amendoins, etc. Segundo ela o conceito é absolutamente original e inventado pela própria, e, se isto é verdade, os meus parabéns por uma ideia tão simples e tão genial.

No entanto, isto não me impede de desfazer na senhora.

- Mas e Bissau? É aqui ao lado… Chegou a ir? Também vai estar incluído no projecto? – pergunto-lhe.

- Estive dois meses e não gostei. Muito desapontada. – responde Rose, sem hesitar.

- Porquê? – pergunto, mesmo muito admirado.

- Não têm cultura. É um país sem cultura.

- Sem cultura? – repito, atónito. Pensava que era o melhor carnaval da região, a capital oeste-africana da dança, onde se encontram os grigris (amuletos) mais poderosos e os melhores feiticeiros, um melting-pot de etnias extraordinário para a dimensão do território.

- Sim, sem costumes. Tu sais, no Mali, por exemplo, as pessoas usam roupas africanas, tecidos assim deste género – e ela aponta-me para as mulheres do barco onde nos encontramos, unanimemente vestidas com esses tecidos garridos azul-turquesa, amarelo semáforo, vermelho escarlate, onde podem sobressair os mais variados motivos, de Nossa Senhora a peixinhos, do Bin Laden a pombas brancas, de resto, todos fabricados no Gana e na Costa do Marfim. – Mas é duro, no Mali é muito duro. – e Rose acabrunha-se repentinamente – A gente passa mal. – e explode de novo – Já em Bissau é só roupas ocidentais. Só ligam ao comércio. Usam jeans! – exclama Rose, atingindo o zénite da sua argumentação – Sabes, andei pelas aldeias da Guiné e não vi tradições… só tudo com jeans! Ah, la ils aiment le comerce! Não é como aqui. Aqui há gente autêntica.

Eu estou à beira de entrar na Guiné-Bissau, e o retrato desaponta-me, e por isso continuo a tentar fazer com que Rose, suposta conhecedora da região, desembuche o seu desagrado. Mas por mais que o faça, só lhe sai da boca um país vestido de jeans.

Muito por causa da minha costela de antropólogo, a conversa acaba eventualmente por me cansar. Parece-me que nem aqui, dentro desta piroga onde nos encontramos, aprisionados no meio destes mangais magníficos, à torreira do sol, com um épico cheiro a catinga, o ocidental perde esse gosto irresistível de essencializar o outro. A sua busca pelo «autêntico» e pelo «tradicional» levam-no a confundir cultura com casas de colmo, tecidos aparentemente feitos à mão, e cozinha a lenha. Há uma confusão entre atraso e cultura, isolamento e magia ou fantasia, ignorância e inocência, e que advém da vontade de ver o outro como um animal exótico.

O que faz impressão é que as pessoas não querem visitar o Senegal, mas um «senegalário», não a Mauritânia mas um «mauritanário». E os elementos fora do ecossistema imaginado são chocantes e recebidos com repugnância: como os jeans. Para continuar a metáfora marinha, é como ver um desses peixes vermelhos cobertos de lodo que deviam estar no Jardim da Estrela a comer bocados de papo-seco atirados ao lago por uma velha, a nadar no oceanário do Parque das Nações, lado a lado com uma raia majestosa, ou com um cardume irrequieto de peixes tropicais coloridos.

O turista não quer encontrar um nativo com as suas próprias calças. Sente-se ofendido, enganado, pois não pagou para passear na sua própria cidade. Negros com calças de ganga é o que não falta a importuná-los nos ghettos de migrantes das suas próprias cidades. É por isso que a Rose quer mandar os turistas (e se quer mandar a si própria) para o meio de nenhures, e é por isso que penso que o plano dela funcionará.

E ninguém consegue perceber que a palavra «autêntico» é oca, que não há assim nada de tão sobrenatural num tipo que nunca viu um frigorífico, e que é perigoso pensar o contrário. Arriscamo-nos a cair no erro perigoso de julgar que é melhor ou pior que nós próprios, mais ou menos interessante.

Ah, flutuar para sempre no mar multicolor das etnicidades…

Sem comentários:

Enviar um comentário