domingo, 14 de junho de 2009

O estoiro

Dentro da arena um miúdo aparentemente desengonçado vestindo a camisola do Rooney rodopia sobre um adversário. Depois sobre outro, a papel químico. Passa um terceiro em velocidade e o público agita-se. Bruaaa. Faz uma tabela com um companheiro de equipa e parte os joelhos de um inimigo com um jogo de ancas. Aplaude-se. Inchado de confiança, lança-se num sprint desvairado ao longo da linha, contorna uma termiteira, flecte de novo para o miolo do terreno e desfaz-se da bola. Mas ela é-lhe imediatamente devolvida. Agora está encurralado por um adversário. Que fazer? Simples, Rooney volta para trás da termiteira, que é suficientemente alta e gorda para o ocultar, e engana o adversário saindo pelo mesmo lado. A assistência desmancha-se a rir, especialmente as mulheres, que apreciaram o golpe de mágica. E Rooney, como que para dizer basta, já mostrei do que sou capaz, desfaz-se orgulhosamente do esférico entregando-o com displicência ao mais novo de todos os jogadores, um minorca de seis ou sete anos que não chega à cintura dos mais altos. O público está animado e o mais novo quer mostrar serviço. Ameaça um bailado com os pés pequenos mas alguém berra:
- Sur place! Sur place! [No mesmo lugar. No mesmo lugar!] – e as papoilas saltitantes imobilizam-se para deixar passar três ou quadro madames envoltas nos seus trapos coloridos, bamboleando as nádegas descomunais, com alguidares de amendoins e tomates equilibrados na cabeça. Alguns optam por se cristalizar num movimento congelado, joelhos flectidos, corpo inclinado para a frente, pronto a largar a correr. Dois ou três protestam com um elemento da equipa adversária:
- Tu não estavas aí! Volta lá para trás.
O outro resmunga, refila, e acaba por voltar para o sítio.
Assim que as senhoras ultrapassam os limites do campo a criança com a bola sofre uma tesoura criminosa de um adversário mastodôntico com uns bons quinze anos a mais do que ela. Ainda por cima o tipo está a jogar descalço e não se sabe como não parte um dedo do pé no calhau que ali desponta. O futebol não é para meninas, é o que se lê na sua expressão tensa e zangada quando emerge da nuvem de pó, respondendo assim a algumas assobiadelas. Violência gratuita à parte, o essencial é que a entrada é bem sucedida e a bola muda finalmente de lado. É passada em chuveirinho da defesa para o ataque, para um vulto relâmpago que vai a fazer um sprint tresloucado, mas vem demasiado esticada, e dá tempo a um adversário que ganhe o mesmo balanço felino. Enfiam-se os dois por baixo da caixa de um camião estacionado no canto do esquerdo do terreno e o primeiro, mais próximo da bola, empurrado sem piedade pelo segundo, escapa por um triz à esquina inferior metálica do atrelado do Scania. Segura a bola e lutam os dois, de costas dobradas, debaixo do camião. A batalha demora. A bola atasca-se numa poça de água, lama e óleo, depois prende-se debaixo de um pneu e os pontapés desferidos pelos dois nos pólos antagónicos do pequeno globo anulam um ao outro o movimento cinético imprimido. Por fim, o que chegou primeiro logra sair com a bola controlada, e o seu corpo abre-se todo quando chega cá fora, o peito estica-se, insufla, como se tivesse saído de uma caverna. Dribla um rival, passa por outro com uma simulação que solta “olés” e “uis” a quem percebe de futebol e que deixará de rastos a auto-estima de quem a sofreu. Excessivamente entusiasmado, dispara um estoiro verdadeiramente absurdo que falha a baliza, e a bola penteia o nariz batatudo de uma velha sentada, que permanece impávida e serena tal terá sido a quantidade de boladas que o seu nariz já encaixou na vida. Depois, enfia-se a direito na esquina aguçada de uma folha ondulante de zinco que faz de muro de uma casa e que, sem clemência pelo divertimento humano, usa da sua estática indiferença para lhe desferir um golpe profundo e doloroso, que toda a gente sente no corpo.
Expedito, o mais pequeno de todos enfia-se agilmente contra a terra num buraco debaixo da chapa, escavado pelos cães, túnel de intenso tráfego de galinhas, e regressa pouco depois sob uma chuva de solicitações ansiosas dos companheiros, apenas para lhes exibir a bola murcha, feita em papa.
- Acabou. – diz alguém, resignado. Todos para casa.
Aqui não há estratégias em losango, cattenacio e ninguém sabe o que quer dizer «futebol macrocéfalo» (uma das expressões predilectas do Rui Santos). Aqui só há uns descampados-estrada cheios de pedregulhos onde se passam horas todos os dias do ano a correr e a partir pés.

Adeus Senegal. Foi um prazer.

(Não ia “publicar” este texto mas pensei que, no contexto futebolístico internacional da semana, fazia algum sentido).

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