sexta-feira, 10 de abril de 2009

A dúvida de Touba


Imagem da mesquita de Touba (fonte: Wikipedia).


I.

Peito insuflado, voz aclarada, corpo firme, olhos nos olhos, encho-me finalmente da coragem de expor a minha duvida sobre Touba.

Primeiro ainda, tempo para me repetir (dedicado a quem não leu textos anteriores); um breve resumo do mouridismo: trata-se da principal confraria muçulmana do Senegal, com milhões de fiéis ao redor do mundo, e uma peregrinação anual de quatro milhões de pessoas à cidade de Touba, seu centro espiritual. É uma seita islâmica de inspiração sufista, com tónica no pacifismo e no anti-materialismo, virtudes professadas pelo seu fundador, Serigne Touba (Sheick Ahmadou Bamba), uma espécie de Ghandi senegalês, tanto no teor da sua mensagem, como no papel desempenhado na independência do seu país, como, até, na própria fisionomia. Homem baixo, frágil e magro, de quarenta quilos, sem posses materiais, Bamba percorreu a vida apenas com o Corão na mão e o tapete para rezar enrolado debaixo do braço, tendo incansavelmente combatido a colonização francesa recorrendo apenas à palavra e recusando sempre a violência.

Depois de um mês a escutar filosofia mouride em todos os cantos do Senegal (os seus fiéis são extraordinariamente mais activos e interventivos que os outros muçulmanos, e arriscaria dizer que é impossível passar mais do que uma semana no Senegal sem se chocar com uma tentativa de doutrinação mouride), a observar essa gente forte, espiritualmente couraçada, com a boca atafulhada de palavras e que, mesmo sem dinheiro, mesmo sem nada, doa o pouco que tem à confraria, e a ver os seus filhos vestidos em trapos oleosos que não vão à escola para ficarem na rua a recolherem esmolas para os marabouts (guias religiosos), chegara a altura de deixar rebentar esta dúvida que me apertava o peito: como podem esses mesmos guias religiosos ousar passear-se em automóveis de luxo, habitar mansões, e ao mesmo tempo professarem o anti-materialismo e a palavra de Bamba e ainda viverem de consciência (hipoteticamente) tranquila num país tão pobre como o Senegal? Como pode uma das mulheres de um dos principais Marabouts do movimento, com quem travámos conhecimento, viver esparramada num sofá em Touba entregue a uma apatia ociosa e opulenta, como explicar que os familiares dos Marabouts sejam invariavelmente gente envolvida em tudo o que é negócios de grande escala, da pesca aos telemóveis? Mas, sobretudo (!), como podem as pessoas acreditarem nesta gente?

Foram-me dadas duas respostas, em dois diferentes lugares do Senegal, por dois simples crentes, a quem questionei apenas por neles ter encontrado uma abertura mental tão grande, que tinha a garantia que as minhas interrogações não seriam tomadas como ofensas, mas como dúvidas sérias e legítimas. Qual das respostas a mais desarmante:

Primeira resposta. Dada à noite, por Ibrahima, um jovem artesão com pouco mais na vida que o colchão em que dorme no seu exíguo e bafiento quarto arrendado (por cerca de 6€ ao mês), e as suas mãos, com que esculpe a madeira que vende aos turistas, os dois sentados em cima de um muro:

- Olha para aquele candeeiro ao fundo da rua. Diz-me o que vês nele? – retorque o Ibrahima, com doçura, depois de escutar atentamente a minha perplexidade verbalizada numa torrente excessivamente revolta e agitada de palavras.

Estudo o candeeiro demoradamente, suspeitando de que a pergunta tem ratoeira, e acabo por optar pela resposta mais elementar e despretensiosa.

- Vejo um poste, e no cimo dele uma lâmpada que emite uma luz.

- Francisco, permite-me que te corrija, mas vês mal. O importante, naquela luz, não é a luz em si, mas o que ela ilumina. E, com isto, julgo ter dito tudo. – e Ibrahima aponta-me para a estrada, para as casas, para tudo o que está envolvido pela aura do candeeiro, como quem diz, o importante não é o Marabout, o carro em que ele anda, a roupa que enverga, mas a sua palavra, e o que a sua palavra causa nos que a ouvem, nos que são abraçados pela sua aura; o importante é, literalmente, quem (e o que) a palavra ilumina.

Segunda resposta. Por Papis, um soldador desempregado, tenaz estudioso do Corão e da palavra de Bamba, mas também um incompreendido do bairro local, um metafísico de rua, um amante do discurso que se mostrou deliciado por ser interrogado, e por me poder responder.

- Compreendo perfeitamente a tua dúvida, mas tens que perceber que a posse material real e o anti-materialismo espiritual podem não estar em contradição. É necessário compreender o porquê desses bens. De onde eles vêm. Porque por trás de tudo o que vemos há sempre uma história, um contexto. É verdade que o Marabout X [opto por não mencionar o nome], por exemplo, tem um Porche, e que costuma andar de Porche, mas o essencial, quando o vemos passar nesse carro, é saber que este lhe foi oferecido. Não podemos julgar as coisas pela primeira impressão que nos causam. Tudo aquilo que tu vês na televisão e que é posse dos Marabouts não foi comprado por eles. Os Marabouts, na realidade, são pessoas sem nada. As roupas que utilizam, os carros que guiam, as casas onde vivem, são ofertas dos seus discípulos, e o Marabout é obrigado a aceitá-las. Estes Marabouts frequentemente até nem gostam desse tipo de prendas extravagantes, mas estas prendas são-lhes feitas por pessoas que lhes querem demonstrar o seu amor por eles. Há mesmo Marabouts idosos e fracos, que são obrigados a envergar roupas pesadas e faustosas que lhes dificultam o movimento, apenas porque lhes foram oferecidas pelo amor dos seus talibes (estudantes teológicos). O Marabout não pode recusar o que lhe oferecem. Isso seria uma ofensa para o seu discípulo, que nada pretende senão oferecer-lhe uma prova do seu amor.

II.

É muito difícil encontrar morais límpidas universais, escalas de valores cristalinas absolutas, e basta passear um bocadinho para se perceber imediatamente que, para o bem e para o mal, estamos condenados ao pluralismo de opiniões e de interpretações da realidade.

Passeando um bocadinho mais longe, compreendemos que o mundo é feito de rotas, de pessoas e de histórias que nunca ninguém vai ouvir falar, e que são as mais impressionantes de todas; o mundo é um conjunto de obras-primas do cinema que nunca ninguém viu, protagonizados por actores que ninguém conhece. O dia-a-dia de um europeu, tal como o de um senegalês, ignora-as, e esbarra incessantemente nos confins das suas próprias normas tácitas e pré-definidas. Comparando-se a naturalidade paralela mas divergente dos dois quotidianos, obtém-se um dado tão evidente quanto insuperável: a percepção de aquilo que para nós é a liberdade pode ser a prisão de outros, e de que a prisão de outros é a liberdade de uns.

A aldeia global cosmopolita, pacífica e tolerante – o lugar onírico da paz mundial – assemelha-se a uma espécie de campo forçado de antropologia: é apenas na obrigação radical de co-vivência com o outro, na emergência de condições tais que, se não nos partilharmos com esse outro, não podemos nós mesmos avançar, viver, que somos finalmente obrigados a admitir a existência de caminhos que são, muito simplesmente, diferentes.

A verdadeira tolerância só começa (e a arrogância e o chauvinismo só terminam) muito depois do que a maior parte das pessoas pensa, num lugar estranho, rumoroso, onde reina uma considerável anarquia de valores, uma balbúrdia de concepções do mundo, uma dose permanente de estática e de interferência, um lugar onde os pontos de referência se tornaram tão débeis e variados que temos dificuldade em reconhecer o que está à nossa volta. Em suma, um lugar que quase ninguém consegue suportar.

De Touba, do mouridismo, guardo esta dor de cabeça, e uma intolerância que me lembra de quem sou.

6 comentários:

  1. sigo a vossa viagem aqui da Alta cinzentona, não sem uma ligeiríssima inveja. belas pérolas, Francisco...
    beijos, Inês

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  2. Francisco, vim aqui parar por causa de uma amiga comum. Elogiou a escrita e fez-me notar que és formado em Antropologia, o que acaba por ser evidente: um olhar tão híbrido de argúcia e sensibilidade só pode emergir de alguém que coloca o ser humano no centro das suas reflexões.

    Duas observações, antes que o comentário fique enorme:

    Este blog é a ilustração blogosférica daquilo a que Steinbeck, em "Viagens com o Charley", chama de "vacillar", verbo espanhol que denota uma actividade menos mística que uma peregrinação, menos teleológica que uma viagem e mais concentrada que o acto de vaguear/vagabundar. Ir em direcção a qualquer coisa, sem se saber muito bem para onde se vai; a jornada vale por si e não pela meta. Só por isso, sou leitor fiel.

    Segunda observação, mais curta: espero que estas entradas estejam a ser guardadas e, futuramente, sejam editadas em livro. Lembram-me Bruce Chatwin.

    Abraço e boa caminhada, que a meta não é assim tão importante.

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  3. Boas Chico.

    É uma resposta pertinente sem dúvida, mas não nos iludamos com certezas absolutas, palavras são palavras.

    Francamente me parece, no que toca aos julgamentos de valor, que o prezado Ibrahima tem razão, não querendo generalizar, mas muitas vezes fazemos julgamentos de valor sem saber o que está por trás. Eu faço-o e já muitas vezes fui alvo e continuarei a ser... Isto acontecerá até que um entendimento superior e percepção nos mude.

    Relativamente ao desprendimento do materialismo, existem níveis aceitáveis e sustentáveis para tal. Permite-me que discorde quando se diz que quando um discípulo oferece algo se tem a obrigação aceitar. O discípulo peca só pelo facto de nem perceber o que está em causa.
    Pessoalmente, se me oferecerem um salto para o poço eu não vou deixar de rejeita-lo só porque parece mal para quem o oferece.

    Pelo que foi aqui retratado e correndo o risco de me enganar, concluirei. O Sr. Marabout não compreende sequer o facto de que o seu caminho tem implicações para outros e para gerações futuras, aceitando qualquer oferta e não subentendo-se ao que parece correcto, estando numa posição para tal. Que tal vender a sua casa e carro iniciando projectos humanitários e ambientais tão necessários no Senegal. Não é isso que o impedirá de espalhar a palavra, pelo contrário assim sim estaria a dar o exemplo.

    Note-se que esta questão não se associa apenas a este caso ou religião, mas talvez a uma grande maioria de casos neste contexto...

    A questão da oferta quanto a mim me parece apenas uma desculpa de mau pagador. Admitamos no mínimo que o fazemos e deixemos-nos de demagogias.

    Se o mundo precisa de ser mudado, não será a colocar pessoas no pedestal que se conseguirá, não será através do continuo descarte de responsabilidades e através da perseguição de caminhos egoístas intolerantes e indiferentes.

    Uma acção vale mais do que mil palavras.

    Despeço-me com um grande abraço e boa escrita sem dúvida, uma válida aprendizagem quanto a mim.

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  4. Inês,
    Obrigado pelo elogio. Vindo de ti, tem sabor especial.
    Quanto à "ligeiríssima inveja", resolve-se com um bilhete de avião ;)
    Beijos

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  5. LPB, como remata Miguel Torga em "Viagem", "o que importa é partir, não é chegar".

    Se o perfume desse limbo, que fica entre o arranjar constantemente coragem para partir, e o saber que não há nenhum lado onde chegar - e que é onde me encontro - te chegou eventualmente ao olfacto, terei ganho um pouco mais de coragem para continuar. Porque não encontro outra definição de viagem: fabricar perfumes.

    Um abraço, e obrigado por me teres oferecido um espelho.

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  6. Olá Ricardo,
    Antes de tudo, obrigado pelo comentário.

    Infelizmente, tenho muita dificuldade em contrariá-lo (e assim encetaríamos uma agradável tertúlia!) ou mesmo em fazer de advogado do diabo numa discussão onde, de facto, existiria todo o interesse em que alguém desempenhe esse papel (fazem-nos falta aqui as palavras, na primeira pessoa, do Ibrahima ou do Papis – mas, tal como nas Ciências Sociais, fazem falta as vozes do “Oriente” ou do hemisfério Sul sobre a nossa própria cultura, que nos situem a nós mesmos e às nossas opiniões. Como introdução ao tema, aconselho-te vivamente o livro “Orientalismo”, de Edward Said). Eu não posso desempenhar esse papel – e, por isso mesmo, limitei-me a dar-lhes voz – precisamente porque partilho da maioria dos teus pontos de vista, porque somos ambos filhos de uma mesma tradição moral, de uma educação que, só perante a convicção de um “outro que não está aqui” se tornaria relativa, localizada.

    Mas posso-te garantir que dificilmente encontrarás um senegalês que encontre contradições entre a opulência da legião de marabouts e a pobreza do país. Como um outro mouride me disse, eles oferecem coisas aos marabouts para que eles rezem por eles, e assim os protejam, salvem, lhes dêem uma vida melhor. Poderíamos imaginar este sistema como um sistema de trocas. A diferença entre o Porche que se dá e o bem espiritual que recebe não existe. “Nós” – porque não cremos – é que não a vemos.

    Coisas a que chamamos demagogia, atentados aos direitos humanos, compadrio, injustiça, “idolaterização” de personalidades (para não dizer outras como as dimensões de espaço e de tempo) possuem aqui valores muito diferentes. Tal como concluo no texto do blog, esses “valores alternativos”, pessoalmente, dizem-me muito mais sobre quem sou, do que sobre o que os outros deviam ser. A nossa moral (às vezes) cristalina, enfrenta aqui uma avalanche, um bombardeamento constante de sistemas de pensamento diferentes.

    A discussão entre o relativismo total, e a tentativa de se encontrar valores mínimos comuns para a Humanidade, é talvez o grande desafio dos nossos dias. Talvez seja por causa da monumentalidade da questão que tenha tanta dificuldade em te responder (e talvez também porque agora me encontro, temporariamente, “do outro lado”).

    Um abraço,
    Francisco
    PS: Não hesites em responder, se o meu comentário te suscitar uma resposta.

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